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Hugo Dionísio
January 28, 2024
© Photo: Social media

O Fórum Económico Mundial dá-nos o privilégio excepcional de estudo que só os fósseis vivos nos podem dar.

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O Fórum Económico Mundial dá-nos o privilégio excepcional de estudo que só os fósseis vivos nos podem dar. Representativo de uma era que podemos assumir como em processo de superação, senão materialmente, pelo menos na tendência observada, em Davos encontramos tudo o que é a ideologia neoliberal e supremacista ocidental, todas as suas potencialidades, falácias e as próprias causas da sua destruição. Como num fóssil vivo, em cada palavra, em cada expressão, tema ou conclusão, encontramos as razões fundamentais, pelas quais, a espécie não venceu, nem poderia vencer.

Davos fala-nos, sobretudo, de um problema de adaptação ao mundo real. A todo o momento, o Fórum Económico Mundial revelou, em toda a sua extensão, o ressentimento, a amargura e a desilusão, em relação a um mundo que revelou e insiste em revelar, cada vez mais teimosamente, não aceitar as premissas que fariam do neoliberalismo um sistema hegemónico duradouro e universal.

Nesse sentido, o Fórum de Davos constitui uma lição moral. Uma lição moral do ocidente à maioria global, numa espécie de choro recriminatório por esta não aceitar as soluções que tão “sábia e racionalmente” este tinha para transmitir; mas também uma lição de moral da maioria global ao ocidente, que esta aproveitou, em cada oportunidade, em cada exíguo momento de atenção dispensada, para transmitir as razões, pelas quais, o contrato proposto nunca seria aceitável.

Os temas escolhidos revelam, sobretudo, aquelas que são as grandes preocupações e desilusões do ocidente, bem como os que considera serem os pilares constitutivos de uma tentativa de regresso a um paradigma perdido. Um paradigma que, hoje, o ocidente sente escapar-se-lhe entre os dedos.

O primeiro tema é emblemático e diz muito do nível de desilusão: “Alcançando Segurança e Cooperação num Mundo Fracturado”. Se, por um lado, revela que o ocidente se sente inseguro, ao eleger a “segurança” como um dos pontos de partida da sua análise, por outro lado, revela também as dificuldades com que o ocidente se confronta quanto à imposição do seu modelo de “cooperação”, cada vez mais renitentemente aceite pelos países da maioria global. O resultado e a causa estavam bem espelhados no próprio tema, quando classificou o estado actual geopolítico como “mundo fragmentado”.

Neste “mundo fragmentado” encontramos o alfa e o ómega do discurso hegemónico. A recusa, cada vez mais explícita, por parte da maioria global, em aceitar os ditames da “nação indispensável”, “da nação liderante”, resulta, aos olhos desta gente como uma fragmentação, um vazio de poder. O sinal é evidente: os EUA continuam com dificuldades em encontrar o seu espaço no mundo, sendo que, tal dificuldade constitui um perigo imenso. Uns EUA nervosos, com crise de identidade e em estado de negação, são um perigo para si próprios, mas também são um perigo para os outros, para mais considerando todo o potencial destrutivo aos eu dispor. Ao eleger a “segurança”, quase podemos dizer que, lá no fundo, e sem nunca o assumirem, os EUA sabem de onde vem, realmente, o problema.

As condições de “segurança” definidas pelos EUA, também estão omnipresentes em Davos, na qualidade de “espectador ausente”. Um mundo seguro é um mundo sem Rússia, país removido, autoritária e discricionariamente, do evento. Diz muito de um evento que se diz “mundial”, a remoção da maior potência nuclear e uma das duas maiores potências militares do planeta. Trata-se, também, do maior país do mundo em território, com maior diversidade/quantidade de recursos naturais, um parceiro estratégico de importantes países, que representam mais de metade da população mundial, como China, India e Irão; um líder tecnológico na área espacial, aeroespacial, nuclear, naval, militar; e um dos maiores produtores de alimentos e cereais do mundo. Falar em “segurança”, “cooperação”, “energia”, “natureza” e “clima” sem envolver a Rússia, só pode ser uma brincadeira de mau gosto. Mas, para os EUA e, logo, para Davos, um mundo “seguro” é um mundo sem contradição de qualquer espécie, daí que não vejamos nenhum dos renegados habituais, como Cuba, Nicarágua ou República Popular da Coreia. É a política externa dos EUA que nos diz, a todos, quem faz, ou não, parte do “fórum mundial”.

Mas este conceito de “segurança” é aprofundado com um acontecimento espectacular, nunca visto na história da diplomacia: falar de paz entre dois países, envolvendo apenas um deles. Não lembraria aos maiores ditadores da história, mesmo que fosse para fazer de conta. Com os EUA, quais luminárias da “democracia liberal”, nem para fazer de conta. Com efeito, e para sinalizar bem ao mundo que, para o Fórum Económico Mundial – desculpem, para os EUA – “segurança” significa “aceitar as condições unilaterais impostas e sem pestanejar”, o evento abre com uma conferência de imprensa que dá conta de uma reunião entre os Assessores de Segurança Nacional (a 4ª) para alcançar uma “paz justa e duradoura na Ucrânia”.

Uma “paz justa” que não é negociada, mas imposta; uma paz com “justiça” que não envolve negociações com um dos países envolvidos no conflito; quer-se “duradoura” uma paz que tenha sido construída à revelia do principal, e mais forte, dos interessados. Bem-vindos ao “quero, posso e mando”, que é responsável pela derrota do ocidente, como tão bem escreveu Emmanuel Todd no seu último livro “La Défaite de l’óccident”.

Claro que, alguém minimamente sério teria de se questionar sobre a credibilidade disto tudo. Como é suposto fazer cumprir um plano de paz que não é negociado, mas imposto, para mais, por quem não tem capacidade para o fazer. E aqui somos imediatamente chegados ao objectivo fundamental do WEF: continuar a vender a ilusão de um mundo impossível, dominado em toda a extensão pelo ocidente, e em especial, pelos EUA.

Reminiscente de uma era de “cooperação” em que, ou as nações aceitavam, ou eram imediatamente sancionadas, excluídas do comércio diplomático, político, financeiro, militar e até cultural, todo o discurso relativamente à “segurança”, “cooperação” é enquadrado num outro conceito: “refazer a confiança”.

Para os EUA e o ocidente colectivo, é tudo muito claro, a cooperação está em perigo porque “não existe confiança entre as partes”. Mas como em tudo o que envolve a doutrina hegemónica e as narrativas encomendadas, a análise nunca vai às últimas consequências; a análise nunca vai ao ponto de colocar o dedo na ferida. Afinal, fazendo-o, rapidamente o WEF perderia o seu efeito propagandístico e doutrinador. Talvez nem pudesse existir.

Não é, portanto, de admirar que um dos pilares teóricos do Fórum de Davos, deste ano, seja o “Barómetro da Cooperação Global 2024” em colaboração com a sempre expedita, competente e bem mandada Mackinsey. Segundo este “Barómetro” – e sobretudo considerando as palavras de Jane Harman (Freedom House, “pro-free trade”, “pro-free market” e “progressive” (falta saber em quê) e ex-congressista) -, a cooperação global está pelas ruas da amargura. É claro que, bem vistas as coisas, e olhando para os dados, percebemos que, em 2012, o índice de cooperação estaria nos 0,87, em 2020 (período definido como de referência), estaria nos 0,97 e, em 2022, nos 0,96. Ou seja, em 2012, período em que os EUA ainda chafurdavam impunemente na sua prepotência hegemónica, o índice de cooperação era inferior. Então, porque está mal agora?

A verdade é que, olhando às várias formas de cooperação definidas (comercio e capital; clima e natureza; Inovação e tecnologia; saúde e bem-estar; paz e segurança), existem apenas duas que estão abaixo dos níveis de 2020: a saúde e bem-estar (pouco) e a paz e segurança (muito abaixo). E por aqui, percebemos, imediatamente, a grande preocupação e o que está por detrás da agenda, deste ano, do WEF, e o porquê do “problema” da Cooperação.

Uma vez mais, os EUA dão-nos uma lição da sua proverbial falta de vergonha: o que terá acontecido para a cooperação em segurança ter caído tanto, especialmente a partir de 2015? O que terá motivado tal falta de confiança? Qual o foi o país que, de repente, rasgou todos os tratados de não proliferação de armas nucleares que tinha com a Rússia? Qual foi o país que formou o QUAD, o Aukus, que expandiu a NATO para o leste europeu, afectando a confiança com dois dos principais pólos mundiais de cooperação militar: a China e a Rússia? Que país cujos dirigentes falaram, constantemente, em “derrota estratégica da Rússia”; “contenção da China” e “aniquilação do Irão”? O que terá isto a ver com a degradação dos níveis e confiança?

E na saúde e bem-estar? Quem é que utilizou o Covid-19 como arma de arremesso contra a China? Quem prolifera e proliferou laboratórios secretos de investigação biológica, especialmente à volta da Rússia e China? Como disse, os relatórios e análises do Fórum Económico Mundial têm uma virtude fantástica: todos estamos a ver quem é o culpado, mas eles insistem em nunca o apontar.

No único exemplo real de cooperação entre iguais, com respeito pela diversidade de cada um e com a capacidade de olhar para o que une, ao invés do que separa, sem imposições, autoritarismos, birrinhas e discricionariedades; num exemplo concreto de emancipação dos países em desenvolvimento e revelador da sua capacidade de cooperação, união e tomada do seu próprio futuro nas suas mãos; o WEF achou por bem apenas atribuir-lhe um secundaríssimo painel, em que a jornalista esteve mais preocupada em desenterrar diferenças e divergências, do que pontos de cooperação real. Refiro-me aos BRICS. Por aqui tiramos duas conclusões imediatas: o modelo de cooperação entre iguais, que os BRICS representam, não é valorizado, mas ostracizado, pelos EUA; os EUA e seus vassalos continuam à procura de “vender” um modelo neocolonial de cooperação. Cooperar, para os EUA é um jogo em que só um é que ganha, daí que o conceito de “coopetição” introduzido, seja perfeito: revela, em si, toda a intenção por detrás da tal “cooperação”, que é “competir” e aniquilar o opositor, fazendo-o acreditar que se está a “cooperar”. Acho demasiado a China ter comprado a coisa, mas, sabendo que os chineses jogam no longo prazo… esperaremos para ver.

Mas, então, porque razão o BRICS teve direito a um painel? Quer porque os EUA queriam demonstrar que não têm receio de projectos “menores” de cooperação, quer porque sucumbiram a alguma pressão da China e India, para o provar, o facto é que lá tiveram de o aceitar. Contudo, mostrando bem claramente o espaço que lhe atribuem no cenário das relações políticas globais. A ver vamos por quanto tempo mais conseguirão secundarizar este bloco de interesses convergentes.

Contudo, do lado de cá, a realidade insiste em impor-se e demonstrar que nada mudou, por mais narrativas que se criem. Um exemplo concreto? A negociação do acordo EU-Mercosul. Depois de acordada a versão provisória do acordo, eis que a EU faz chegar ao Brasil uma proposta final, contendo um anexo que prevê a aplicação de sanções aos países amazónicos, no caso de incumprimento das metas de protecção florestal amazónica. Tudo feito unilateralmente, sem ouvir os interessados. Eis o que significa “refazer a confiança”.

Se, o Barómetro da cooperação, nos diz muito do que pretende o Fórum Económico Mundial, não menos explícito é o “Relatório sobre os Riscos Globais 2024”. Aí encontramos a razão de viver de grande parte dos discursos pseudocientíficos que pululam pelo Fórum de Davos. O relatório deste ano aponta como principal risco o da “desinformação e informação errada”. A recente derrota ocidental na narrativa sionista, deve ter tocado todas as sirenes. Se lhe adicionarmos o facto de a maioria global não ter comprado a narrativa ucraniana… Não há dúvida de que, nos tempos que correm, o ambiente não está muito propício às falaciosas narrativas dos EUA. Sobre a forma de combate a esta “desinformação”, também estamos apresentados: no fórum falou-se de “educação”, na prática censuram-se as redes sociais; omitem-se buscas no google, controlam-se os meios de comunicação, censuram-se os meios de comunicação da Rússia e perseguem-se jornalistas como o Julien Assange.

O Fórum Económico Mundial revela-se de uma utilidade confrangedora para os críticos dos EUA: as soluções que aponta para o futuro, podem ser observadas, em tempo real, totalmente ao contrário, pelos EUA e seus vassalos. Quase como se, nos quisessem transmitir, indirectamente, o seguinte: “estão a ver esta medida? Os EUA e seus vassalos, fazem-na ao contrário”!

Mas, o resto dos temas são eles próprios reveladores das preocupações ocidentais: a carência de mão de obra em “criando crescimento e empregos para a nova era”, ao mesmo tempo que na União Europeia e nos EUA se impede a dignificação das condições de trabalho dos trabalhadores das plataformas informáticas e se descobre o escândalo, através do qual a Uber comprou o favor dos governos europeus e em que se usam as tecnologias digitais para suprimir postos de trabalho e degradar os salários; o domínio da inteligência artificial em “inteligência artificial como uma força motriz da economia e sociedade”, ao mesmo tempo que movem a guerra de semicondutores contra a China, para impedir este país, e os seus aliados, de atingirem a fronteira tecnológica, principalmente na área militar; o domínio da energia em “uma estratégia climática de longo-prazo, natureza e energia”, ao mesmo tempo que guerreiam pelo petróleo no médio oriente, tentam a internacionalização (ou será “ocidentalização”) da amazónia e a imposição e condicionalidades climáticas que impedem os países empobrecidos de se desenvolverem e afirmarem a sua soberania. Um autêntico cardápio de intenções maliciosas.

Para quem pretende dar uma lição ao mundo sobre o futuro, a elite globalista de Davos comete demasiados pecados, só explicáveis pelo seu proverbial complexo de superioridade. Desde logo, o da arrogância, ao partirem do princípio de que a elite ocidental tem algo a ensinar a quem quer que seja. O supremacismo, bem presente quando vemos Klaus Shwab elogiar o louco Milei por trazer a “argentina de volta aos valores ocidentais”, demonstra o que é Davos, um pólo de propaganda da ideia civilizacional ocidental, mesmo que à custa de um país destruído e um povo na mais abjecta miséria. Por aqui, Klaus Shwab diz-nos: não importa que fiquem todos na miséria, contanto que venham em direcção “aos valores ocidentais”.

O cinismo é outra das características das elites globalistas, neoliberais ou neoconservadoras. Davos é um festival de doutrinação do resto do mundo, à custa do apagamento, do silenciamento e condicionamento do debate crítico dos problemas, apenas dando voz à narrativa ocidental. Por fim, o elitismo de quem se acha superior aos demais, também está bem presente na constituição dos painéis, esmagadoramente ocidentais, maioritariamente americanos e recorrendo, aqui e ali, a alguém do sul global, apenas para dar uma ideia de diversidade.

Debate aberto, crítica, confronto de ideias, argumentação e contra-argumentação, cooperação real, no verdadeiro sentido da palavra, reunindo o que une e afastando o que separa, tomando decisões em conjunto, ao invés de contra alguém, respeito pela diversidade étnica, cultural, ideológica, como uma visão verdadeiramente democrática pressupõe, respeito pelas crenças, tradições e características de cada povo, como deve uma visão universalista… Nada disso vimos em Davos.

Em Davos assistimos a um império em luta consigo (com a “desinformação”) e com os outros (“segurança”), incapaz de encontrar um lugar num mundo que se recusa a vê-los como superiores… Daí a tentativa de revestir o monstro com trajes atractivos, mas que se revela, mesmo assim, pela sua latente brutalidade…

Como em tudo… Em Davos vende-se o que ninguém quer comprar…. Daí o tanto marketing que se faz!

Davos é um fóssil vivo de um império em guerra consigo e com os outros

O Fórum Económico Mundial dá-nos o privilégio excepcional de estudo que só os fósseis vivos nos podem dar.

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O Fórum Económico Mundial dá-nos o privilégio excepcional de estudo que só os fósseis vivos nos podem dar. Representativo de uma era que podemos assumir como em processo de superação, senão materialmente, pelo menos na tendência observada, em Davos encontramos tudo o que é a ideologia neoliberal e supremacista ocidental, todas as suas potencialidades, falácias e as próprias causas da sua destruição. Como num fóssil vivo, em cada palavra, em cada expressão, tema ou conclusão, encontramos as razões fundamentais, pelas quais, a espécie não venceu, nem poderia vencer.

Davos fala-nos, sobretudo, de um problema de adaptação ao mundo real. A todo o momento, o Fórum Económico Mundial revelou, em toda a sua extensão, o ressentimento, a amargura e a desilusão, em relação a um mundo que revelou e insiste em revelar, cada vez mais teimosamente, não aceitar as premissas que fariam do neoliberalismo um sistema hegemónico duradouro e universal.

Nesse sentido, o Fórum de Davos constitui uma lição moral. Uma lição moral do ocidente à maioria global, numa espécie de choro recriminatório por esta não aceitar as soluções que tão “sábia e racionalmente” este tinha para transmitir; mas também uma lição de moral da maioria global ao ocidente, que esta aproveitou, em cada oportunidade, em cada exíguo momento de atenção dispensada, para transmitir as razões, pelas quais, o contrato proposto nunca seria aceitável.

Os temas escolhidos revelam, sobretudo, aquelas que são as grandes preocupações e desilusões do ocidente, bem como os que considera serem os pilares constitutivos de uma tentativa de regresso a um paradigma perdido. Um paradigma que, hoje, o ocidente sente escapar-se-lhe entre os dedos.

O primeiro tema é emblemático e diz muito do nível de desilusão: “Alcançando Segurança e Cooperação num Mundo Fracturado”. Se, por um lado, revela que o ocidente se sente inseguro, ao eleger a “segurança” como um dos pontos de partida da sua análise, por outro lado, revela também as dificuldades com que o ocidente se confronta quanto à imposição do seu modelo de “cooperação”, cada vez mais renitentemente aceite pelos países da maioria global. O resultado e a causa estavam bem espelhados no próprio tema, quando classificou o estado actual geopolítico como “mundo fragmentado”.

Neste “mundo fragmentado” encontramos o alfa e o ómega do discurso hegemónico. A recusa, cada vez mais explícita, por parte da maioria global, em aceitar os ditames da “nação indispensável”, “da nação liderante”, resulta, aos olhos desta gente como uma fragmentação, um vazio de poder. O sinal é evidente: os EUA continuam com dificuldades em encontrar o seu espaço no mundo, sendo que, tal dificuldade constitui um perigo imenso. Uns EUA nervosos, com crise de identidade e em estado de negação, são um perigo para si próprios, mas também são um perigo para os outros, para mais considerando todo o potencial destrutivo aos eu dispor. Ao eleger a “segurança”, quase podemos dizer que, lá no fundo, e sem nunca o assumirem, os EUA sabem de onde vem, realmente, o problema.

As condições de “segurança” definidas pelos EUA, também estão omnipresentes em Davos, na qualidade de “espectador ausente”. Um mundo seguro é um mundo sem Rússia, país removido, autoritária e discricionariamente, do evento. Diz muito de um evento que se diz “mundial”, a remoção da maior potência nuclear e uma das duas maiores potências militares do planeta. Trata-se, também, do maior país do mundo em território, com maior diversidade/quantidade de recursos naturais, um parceiro estratégico de importantes países, que representam mais de metade da população mundial, como China, India e Irão; um líder tecnológico na área espacial, aeroespacial, nuclear, naval, militar; e um dos maiores produtores de alimentos e cereais do mundo. Falar em “segurança”, “cooperação”, “energia”, “natureza” e “clima” sem envolver a Rússia, só pode ser uma brincadeira de mau gosto. Mas, para os EUA e, logo, para Davos, um mundo “seguro” é um mundo sem contradição de qualquer espécie, daí que não vejamos nenhum dos renegados habituais, como Cuba, Nicarágua ou República Popular da Coreia. É a política externa dos EUA que nos diz, a todos, quem faz, ou não, parte do “fórum mundial”.

Mas este conceito de “segurança” é aprofundado com um acontecimento espectacular, nunca visto na história da diplomacia: falar de paz entre dois países, envolvendo apenas um deles. Não lembraria aos maiores ditadores da história, mesmo que fosse para fazer de conta. Com os EUA, quais luminárias da “democracia liberal”, nem para fazer de conta. Com efeito, e para sinalizar bem ao mundo que, para o Fórum Económico Mundial – desculpem, para os EUA – “segurança” significa “aceitar as condições unilaterais impostas e sem pestanejar”, o evento abre com uma conferência de imprensa que dá conta de uma reunião entre os Assessores de Segurança Nacional (a 4ª) para alcançar uma “paz justa e duradoura na Ucrânia”.

Uma “paz justa” que não é negociada, mas imposta; uma paz com “justiça” que não envolve negociações com um dos países envolvidos no conflito; quer-se “duradoura” uma paz que tenha sido construída à revelia do principal, e mais forte, dos interessados. Bem-vindos ao “quero, posso e mando”, que é responsável pela derrota do ocidente, como tão bem escreveu Emmanuel Todd no seu último livro “La Défaite de l’óccident”.

Claro que, alguém minimamente sério teria de se questionar sobre a credibilidade disto tudo. Como é suposto fazer cumprir um plano de paz que não é negociado, mas imposto, para mais, por quem não tem capacidade para o fazer. E aqui somos imediatamente chegados ao objectivo fundamental do WEF: continuar a vender a ilusão de um mundo impossível, dominado em toda a extensão pelo ocidente, e em especial, pelos EUA.

Reminiscente de uma era de “cooperação” em que, ou as nações aceitavam, ou eram imediatamente sancionadas, excluídas do comércio diplomático, político, financeiro, militar e até cultural, todo o discurso relativamente à “segurança”, “cooperação” é enquadrado num outro conceito: “refazer a confiança”.

Para os EUA e o ocidente colectivo, é tudo muito claro, a cooperação está em perigo porque “não existe confiança entre as partes”. Mas como em tudo o que envolve a doutrina hegemónica e as narrativas encomendadas, a análise nunca vai às últimas consequências; a análise nunca vai ao ponto de colocar o dedo na ferida. Afinal, fazendo-o, rapidamente o WEF perderia o seu efeito propagandístico e doutrinador. Talvez nem pudesse existir.

Não é, portanto, de admirar que um dos pilares teóricos do Fórum de Davos, deste ano, seja o “Barómetro da Cooperação Global 2024” em colaboração com a sempre expedita, competente e bem mandada Mackinsey. Segundo este “Barómetro” – e sobretudo considerando as palavras de Jane Harman (Freedom House, “pro-free trade”, “pro-free market” e “progressive” (falta saber em quê) e ex-congressista) -, a cooperação global está pelas ruas da amargura. É claro que, bem vistas as coisas, e olhando para os dados, percebemos que, em 2012, o índice de cooperação estaria nos 0,87, em 2020 (período definido como de referência), estaria nos 0,97 e, em 2022, nos 0,96. Ou seja, em 2012, período em que os EUA ainda chafurdavam impunemente na sua prepotência hegemónica, o índice de cooperação era inferior. Então, porque está mal agora?

A verdade é que, olhando às várias formas de cooperação definidas (comercio e capital; clima e natureza; Inovação e tecnologia; saúde e bem-estar; paz e segurança), existem apenas duas que estão abaixo dos níveis de 2020: a saúde e bem-estar (pouco) e a paz e segurança (muito abaixo). E por aqui, percebemos, imediatamente, a grande preocupação e o que está por detrás da agenda, deste ano, do WEF, e o porquê do “problema” da Cooperação.

Uma vez mais, os EUA dão-nos uma lição da sua proverbial falta de vergonha: o que terá acontecido para a cooperação em segurança ter caído tanto, especialmente a partir de 2015? O que terá motivado tal falta de confiança? Qual o foi o país que, de repente, rasgou todos os tratados de não proliferação de armas nucleares que tinha com a Rússia? Qual foi o país que formou o QUAD, o Aukus, que expandiu a NATO para o leste europeu, afectando a confiança com dois dos principais pólos mundiais de cooperação militar: a China e a Rússia? Que país cujos dirigentes falaram, constantemente, em “derrota estratégica da Rússia”; “contenção da China” e “aniquilação do Irão”? O que terá isto a ver com a degradação dos níveis e confiança?

E na saúde e bem-estar? Quem é que utilizou o Covid-19 como arma de arremesso contra a China? Quem prolifera e proliferou laboratórios secretos de investigação biológica, especialmente à volta da Rússia e China? Como disse, os relatórios e análises do Fórum Económico Mundial têm uma virtude fantástica: todos estamos a ver quem é o culpado, mas eles insistem em nunca o apontar.

No único exemplo real de cooperação entre iguais, com respeito pela diversidade de cada um e com a capacidade de olhar para o que une, ao invés do que separa, sem imposições, autoritarismos, birrinhas e discricionariedades; num exemplo concreto de emancipação dos países em desenvolvimento e revelador da sua capacidade de cooperação, união e tomada do seu próprio futuro nas suas mãos; o WEF achou por bem apenas atribuir-lhe um secundaríssimo painel, em que a jornalista esteve mais preocupada em desenterrar diferenças e divergências, do que pontos de cooperação real. Refiro-me aos BRICS. Por aqui tiramos duas conclusões imediatas: o modelo de cooperação entre iguais, que os BRICS representam, não é valorizado, mas ostracizado, pelos EUA; os EUA e seus vassalos continuam à procura de “vender” um modelo neocolonial de cooperação. Cooperar, para os EUA é um jogo em que só um é que ganha, daí que o conceito de “coopetição” introduzido, seja perfeito: revela, em si, toda a intenção por detrás da tal “cooperação”, que é “competir” e aniquilar o opositor, fazendo-o acreditar que se está a “cooperar”. Acho demasiado a China ter comprado a coisa, mas, sabendo que os chineses jogam no longo prazo… esperaremos para ver.

Mas, então, porque razão o BRICS teve direito a um painel? Quer porque os EUA queriam demonstrar que não têm receio de projectos “menores” de cooperação, quer porque sucumbiram a alguma pressão da China e India, para o provar, o facto é que lá tiveram de o aceitar. Contudo, mostrando bem claramente o espaço que lhe atribuem no cenário das relações políticas globais. A ver vamos por quanto tempo mais conseguirão secundarizar este bloco de interesses convergentes.

Contudo, do lado de cá, a realidade insiste em impor-se e demonstrar que nada mudou, por mais narrativas que se criem. Um exemplo concreto? A negociação do acordo EU-Mercosul. Depois de acordada a versão provisória do acordo, eis que a EU faz chegar ao Brasil uma proposta final, contendo um anexo que prevê a aplicação de sanções aos países amazónicos, no caso de incumprimento das metas de protecção florestal amazónica. Tudo feito unilateralmente, sem ouvir os interessados. Eis o que significa “refazer a confiança”.

Se, o Barómetro da cooperação, nos diz muito do que pretende o Fórum Económico Mundial, não menos explícito é o “Relatório sobre os Riscos Globais 2024”. Aí encontramos a razão de viver de grande parte dos discursos pseudocientíficos que pululam pelo Fórum de Davos. O relatório deste ano aponta como principal risco o da “desinformação e informação errada”. A recente derrota ocidental na narrativa sionista, deve ter tocado todas as sirenes. Se lhe adicionarmos o facto de a maioria global não ter comprado a narrativa ucraniana… Não há dúvida de que, nos tempos que correm, o ambiente não está muito propício às falaciosas narrativas dos EUA. Sobre a forma de combate a esta “desinformação”, também estamos apresentados: no fórum falou-se de “educação”, na prática censuram-se as redes sociais; omitem-se buscas no google, controlam-se os meios de comunicação, censuram-se os meios de comunicação da Rússia e perseguem-se jornalistas como o Julien Assange.

O Fórum Económico Mundial revela-se de uma utilidade confrangedora para os críticos dos EUA: as soluções que aponta para o futuro, podem ser observadas, em tempo real, totalmente ao contrário, pelos EUA e seus vassalos. Quase como se, nos quisessem transmitir, indirectamente, o seguinte: “estão a ver esta medida? Os EUA e seus vassalos, fazem-na ao contrário”!

Mas, o resto dos temas são eles próprios reveladores das preocupações ocidentais: a carência de mão de obra em “criando crescimento e empregos para a nova era”, ao mesmo tempo que na União Europeia e nos EUA se impede a dignificação das condições de trabalho dos trabalhadores das plataformas informáticas e se descobre o escândalo, através do qual a Uber comprou o favor dos governos europeus e em que se usam as tecnologias digitais para suprimir postos de trabalho e degradar os salários; o domínio da inteligência artificial em “inteligência artificial como uma força motriz da economia e sociedade”, ao mesmo tempo que movem a guerra de semicondutores contra a China, para impedir este país, e os seus aliados, de atingirem a fronteira tecnológica, principalmente na área militar; o domínio da energia em “uma estratégia climática de longo-prazo, natureza e energia”, ao mesmo tempo que guerreiam pelo petróleo no médio oriente, tentam a internacionalização (ou será “ocidentalização”) da amazónia e a imposição e condicionalidades climáticas que impedem os países empobrecidos de se desenvolverem e afirmarem a sua soberania. Um autêntico cardápio de intenções maliciosas.

Para quem pretende dar uma lição ao mundo sobre o futuro, a elite globalista de Davos comete demasiados pecados, só explicáveis pelo seu proverbial complexo de superioridade. Desde logo, o da arrogância, ao partirem do princípio de que a elite ocidental tem algo a ensinar a quem quer que seja. O supremacismo, bem presente quando vemos Klaus Shwab elogiar o louco Milei por trazer a “argentina de volta aos valores ocidentais”, demonstra o que é Davos, um pólo de propaganda da ideia civilizacional ocidental, mesmo que à custa de um país destruído e um povo na mais abjecta miséria. Por aqui, Klaus Shwab diz-nos: não importa que fiquem todos na miséria, contanto que venham em direcção “aos valores ocidentais”.

O cinismo é outra das características das elites globalistas, neoliberais ou neoconservadoras. Davos é um festival de doutrinação do resto do mundo, à custa do apagamento, do silenciamento e condicionamento do debate crítico dos problemas, apenas dando voz à narrativa ocidental. Por fim, o elitismo de quem se acha superior aos demais, também está bem presente na constituição dos painéis, esmagadoramente ocidentais, maioritariamente americanos e recorrendo, aqui e ali, a alguém do sul global, apenas para dar uma ideia de diversidade.

Debate aberto, crítica, confronto de ideias, argumentação e contra-argumentação, cooperação real, no verdadeiro sentido da palavra, reunindo o que une e afastando o que separa, tomando decisões em conjunto, ao invés de contra alguém, respeito pela diversidade étnica, cultural, ideológica, como uma visão verdadeiramente democrática pressupõe, respeito pelas crenças, tradições e características de cada povo, como deve uma visão universalista… Nada disso vimos em Davos.

Em Davos assistimos a um império em luta consigo (com a “desinformação”) e com os outros (“segurança”), incapaz de encontrar um lugar num mundo que se recusa a vê-los como superiores… Daí a tentativa de revestir o monstro com trajes atractivos, mas que se revela, mesmo assim, pela sua latente brutalidade…

Como em tudo… Em Davos vende-se o que ninguém quer comprar…. Daí o tanto marketing que se faz!

O Fórum Económico Mundial dá-nos o privilégio excepcional de estudo que só os fósseis vivos nos podem dar.

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Escreva para nós: info@strategic-culture.su

O Fórum Económico Mundial dá-nos o privilégio excepcional de estudo que só os fósseis vivos nos podem dar. Representativo de uma era que podemos assumir como em processo de superação, senão materialmente, pelo menos na tendência observada, em Davos encontramos tudo o que é a ideologia neoliberal e supremacista ocidental, todas as suas potencialidades, falácias e as próprias causas da sua destruição. Como num fóssil vivo, em cada palavra, em cada expressão, tema ou conclusão, encontramos as razões fundamentais, pelas quais, a espécie não venceu, nem poderia vencer.

Davos fala-nos, sobretudo, de um problema de adaptação ao mundo real. A todo o momento, o Fórum Económico Mundial revelou, em toda a sua extensão, o ressentimento, a amargura e a desilusão, em relação a um mundo que revelou e insiste em revelar, cada vez mais teimosamente, não aceitar as premissas que fariam do neoliberalismo um sistema hegemónico duradouro e universal.

Nesse sentido, o Fórum de Davos constitui uma lição moral. Uma lição moral do ocidente à maioria global, numa espécie de choro recriminatório por esta não aceitar as soluções que tão “sábia e racionalmente” este tinha para transmitir; mas também uma lição de moral da maioria global ao ocidente, que esta aproveitou, em cada oportunidade, em cada exíguo momento de atenção dispensada, para transmitir as razões, pelas quais, o contrato proposto nunca seria aceitável.

Os temas escolhidos revelam, sobretudo, aquelas que são as grandes preocupações e desilusões do ocidente, bem como os que considera serem os pilares constitutivos de uma tentativa de regresso a um paradigma perdido. Um paradigma que, hoje, o ocidente sente escapar-se-lhe entre os dedos.

O primeiro tema é emblemático e diz muito do nível de desilusão: “Alcançando Segurança e Cooperação num Mundo Fracturado”. Se, por um lado, revela que o ocidente se sente inseguro, ao eleger a “segurança” como um dos pontos de partida da sua análise, por outro lado, revela também as dificuldades com que o ocidente se confronta quanto à imposição do seu modelo de “cooperação”, cada vez mais renitentemente aceite pelos países da maioria global. O resultado e a causa estavam bem espelhados no próprio tema, quando classificou o estado actual geopolítico como “mundo fragmentado”.

Neste “mundo fragmentado” encontramos o alfa e o ómega do discurso hegemónico. A recusa, cada vez mais explícita, por parte da maioria global, em aceitar os ditames da “nação indispensável”, “da nação liderante”, resulta, aos olhos desta gente como uma fragmentação, um vazio de poder. O sinal é evidente: os EUA continuam com dificuldades em encontrar o seu espaço no mundo, sendo que, tal dificuldade constitui um perigo imenso. Uns EUA nervosos, com crise de identidade e em estado de negação, são um perigo para si próprios, mas também são um perigo para os outros, para mais considerando todo o potencial destrutivo aos eu dispor. Ao eleger a “segurança”, quase podemos dizer que, lá no fundo, e sem nunca o assumirem, os EUA sabem de onde vem, realmente, o problema.

As condições de “segurança” definidas pelos EUA, também estão omnipresentes em Davos, na qualidade de “espectador ausente”. Um mundo seguro é um mundo sem Rússia, país removido, autoritária e discricionariamente, do evento. Diz muito de um evento que se diz “mundial”, a remoção da maior potência nuclear e uma das duas maiores potências militares do planeta. Trata-se, também, do maior país do mundo em território, com maior diversidade/quantidade de recursos naturais, um parceiro estratégico de importantes países, que representam mais de metade da população mundial, como China, India e Irão; um líder tecnológico na área espacial, aeroespacial, nuclear, naval, militar; e um dos maiores produtores de alimentos e cereais do mundo. Falar em “segurança”, “cooperação”, “energia”, “natureza” e “clima” sem envolver a Rússia, só pode ser uma brincadeira de mau gosto. Mas, para os EUA e, logo, para Davos, um mundo “seguro” é um mundo sem contradição de qualquer espécie, daí que não vejamos nenhum dos renegados habituais, como Cuba, Nicarágua ou República Popular da Coreia. É a política externa dos EUA que nos diz, a todos, quem faz, ou não, parte do “fórum mundial”.

Mas este conceito de “segurança” é aprofundado com um acontecimento espectacular, nunca visto na história da diplomacia: falar de paz entre dois países, envolvendo apenas um deles. Não lembraria aos maiores ditadores da história, mesmo que fosse para fazer de conta. Com os EUA, quais luminárias da “democracia liberal”, nem para fazer de conta. Com efeito, e para sinalizar bem ao mundo que, para o Fórum Económico Mundial – desculpem, para os EUA – “segurança” significa “aceitar as condições unilaterais impostas e sem pestanejar”, o evento abre com uma conferência de imprensa que dá conta de uma reunião entre os Assessores de Segurança Nacional (a 4ª) para alcançar uma “paz justa e duradoura na Ucrânia”.

Uma “paz justa” que não é negociada, mas imposta; uma paz com “justiça” que não envolve negociações com um dos países envolvidos no conflito; quer-se “duradoura” uma paz que tenha sido construída à revelia do principal, e mais forte, dos interessados. Bem-vindos ao “quero, posso e mando”, que é responsável pela derrota do ocidente, como tão bem escreveu Emmanuel Todd no seu último livro “La Défaite de l’óccident”.

Claro que, alguém minimamente sério teria de se questionar sobre a credibilidade disto tudo. Como é suposto fazer cumprir um plano de paz que não é negociado, mas imposto, para mais, por quem não tem capacidade para o fazer. E aqui somos imediatamente chegados ao objectivo fundamental do WEF: continuar a vender a ilusão de um mundo impossível, dominado em toda a extensão pelo ocidente, e em especial, pelos EUA.

Reminiscente de uma era de “cooperação” em que, ou as nações aceitavam, ou eram imediatamente sancionadas, excluídas do comércio diplomático, político, financeiro, militar e até cultural, todo o discurso relativamente à “segurança”, “cooperação” é enquadrado num outro conceito: “refazer a confiança”.

Para os EUA e o ocidente colectivo, é tudo muito claro, a cooperação está em perigo porque “não existe confiança entre as partes”. Mas como em tudo o que envolve a doutrina hegemónica e as narrativas encomendadas, a análise nunca vai às últimas consequências; a análise nunca vai ao ponto de colocar o dedo na ferida. Afinal, fazendo-o, rapidamente o WEF perderia o seu efeito propagandístico e doutrinador. Talvez nem pudesse existir.

Não é, portanto, de admirar que um dos pilares teóricos do Fórum de Davos, deste ano, seja o “Barómetro da Cooperação Global 2024” em colaboração com a sempre expedita, competente e bem mandada Mackinsey. Segundo este “Barómetro” – e sobretudo considerando as palavras de Jane Harman (Freedom House, “pro-free trade”, “pro-free market” e “progressive” (falta saber em quê) e ex-congressista) -, a cooperação global está pelas ruas da amargura. É claro que, bem vistas as coisas, e olhando para os dados, percebemos que, em 2012, o índice de cooperação estaria nos 0,87, em 2020 (período definido como de referência), estaria nos 0,97 e, em 2022, nos 0,96. Ou seja, em 2012, período em que os EUA ainda chafurdavam impunemente na sua prepotência hegemónica, o índice de cooperação era inferior. Então, porque está mal agora?

A verdade é que, olhando às várias formas de cooperação definidas (comercio e capital; clima e natureza; Inovação e tecnologia; saúde e bem-estar; paz e segurança), existem apenas duas que estão abaixo dos níveis de 2020: a saúde e bem-estar (pouco) e a paz e segurança (muito abaixo). E por aqui, percebemos, imediatamente, a grande preocupação e o que está por detrás da agenda, deste ano, do WEF, e o porquê do “problema” da Cooperação.

Uma vez mais, os EUA dão-nos uma lição da sua proverbial falta de vergonha: o que terá acontecido para a cooperação em segurança ter caído tanto, especialmente a partir de 2015? O que terá motivado tal falta de confiança? Qual o foi o país que, de repente, rasgou todos os tratados de não proliferação de armas nucleares que tinha com a Rússia? Qual foi o país que formou o QUAD, o Aukus, que expandiu a NATO para o leste europeu, afectando a confiança com dois dos principais pólos mundiais de cooperação militar: a China e a Rússia? Que país cujos dirigentes falaram, constantemente, em “derrota estratégica da Rússia”; “contenção da China” e “aniquilação do Irão”? O que terá isto a ver com a degradação dos níveis e confiança?

E na saúde e bem-estar? Quem é que utilizou o Covid-19 como arma de arremesso contra a China? Quem prolifera e proliferou laboratórios secretos de investigação biológica, especialmente à volta da Rússia e China? Como disse, os relatórios e análises do Fórum Económico Mundial têm uma virtude fantástica: todos estamos a ver quem é o culpado, mas eles insistem em nunca o apontar.

No único exemplo real de cooperação entre iguais, com respeito pela diversidade de cada um e com a capacidade de olhar para o que une, ao invés do que separa, sem imposições, autoritarismos, birrinhas e discricionariedades; num exemplo concreto de emancipação dos países em desenvolvimento e revelador da sua capacidade de cooperação, união e tomada do seu próprio futuro nas suas mãos; o WEF achou por bem apenas atribuir-lhe um secundaríssimo painel, em que a jornalista esteve mais preocupada em desenterrar diferenças e divergências, do que pontos de cooperação real. Refiro-me aos BRICS. Por aqui tiramos duas conclusões imediatas: o modelo de cooperação entre iguais, que os BRICS representam, não é valorizado, mas ostracizado, pelos EUA; os EUA e seus vassalos continuam à procura de “vender” um modelo neocolonial de cooperação. Cooperar, para os EUA é um jogo em que só um é que ganha, daí que o conceito de “coopetição” introduzido, seja perfeito: revela, em si, toda a intenção por detrás da tal “cooperação”, que é “competir” e aniquilar o opositor, fazendo-o acreditar que se está a “cooperar”. Acho demasiado a China ter comprado a coisa, mas, sabendo que os chineses jogam no longo prazo… esperaremos para ver.

Mas, então, porque razão o BRICS teve direito a um painel? Quer porque os EUA queriam demonstrar que não têm receio de projectos “menores” de cooperação, quer porque sucumbiram a alguma pressão da China e India, para o provar, o facto é que lá tiveram de o aceitar. Contudo, mostrando bem claramente o espaço que lhe atribuem no cenário das relações políticas globais. A ver vamos por quanto tempo mais conseguirão secundarizar este bloco de interesses convergentes.

Contudo, do lado de cá, a realidade insiste em impor-se e demonstrar que nada mudou, por mais narrativas que se criem. Um exemplo concreto? A negociação do acordo EU-Mercosul. Depois de acordada a versão provisória do acordo, eis que a EU faz chegar ao Brasil uma proposta final, contendo um anexo que prevê a aplicação de sanções aos países amazónicos, no caso de incumprimento das metas de protecção florestal amazónica. Tudo feito unilateralmente, sem ouvir os interessados. Eis o que significa “refazer a confiança”.

Se, o Barómetro da cooperação, nos diz muito do que pretende o Fórum Económico Mundial, não menos explícito é o “Relatório sobre os Riscos Globais 2024”. Aí encontramos a razão de viver de grande parte dos discursos pseudocientíficos que pululam pelo Fórum de Davos. O relatório deste ano aponta como principal risco o da “desinformação e informação errada”. A recente derrota ocidental na narrativa sionista, deve ter tocado todas as sirenes. Se lhe adicionarmos o facto de a maioria global não ter comprado a narrativa ucraniana… Não há dúvida de que, nos tempos que correm, o ambiente não está muito propício às falaciosas narrativas dos EUA. Sobre a forma de combate a esta “desinformação”, também estamos apresentados: no fórum falou-se de “educação”, na prática censuram-se as redes sociais; omitem-se buscas no google, controlam-se os meios de comunicação, censuram-se os meios de comunicação da Rússia e perseguem-se jornalistas como o Julien Assange.

O Fórum Económico Mundial revela-se de uma utilidade confrangedora para os críticos dos EUA: as soluções que aponta para o futuro, podem ser observadas, em tempo real, totalmente ao contrário, pelos EUA e seus vassalos. Quase como se, nos quisessem transmitir, indirectamente, o seguinte: “estão a ver esta medida? Os EUA e seus vassalos, fazem-na ao contrário”!

Mas, o resto dos temas são eles próprios reveladores das preocupações ocidentais: a carência de mão de obra em “criando crescimento e empregos para a nova era”, ao mesmo tempo que na União Europeia e nos EUA se impede a dignificação das condições de trabalho dos trabalhadores das plataformas informáticas e se descobre o escândalo, através do qual a Uber comprou o favor dos governos europeus e em que se usam as tecnologias digitais para suprimir postos de trabalho e degradar os salários; o domínio da inteligência artificial em “inteligência artificial como uma força motriz da economia e sociedade”, ao mesmo tempo que movem a guerra de semicondutores contra a China, para impedir este país, e os seus aliados, de atingirem a fronteira tecnológica, principalmente na área militar; o domínio da energia em “uma estratégia climática de longo-prazo, natureza e energia”, ao mesmo tempo que guerreiam pelo petróleo no médio oriente, tentam a internacionalização (ou será “ocidentalização”) da amazónia e a imposição e condicionalidades climáticas que impedem os países empobrecidos de se desenvolverem e afirmarem a sua soberania. Um autêntico cardápio de intenções maliciosas.

Para quem pretende dar uma lição ao mundo sobre o futuro, a elite globalista de Davos comete demasiados pecados, só explicáveis pelo seu proverbial complexo de superioridade. Desde logo, o da arrogância, ao partirem do princípio de que a elite ocidental tem algo a ensinar a quem quer que seja. O supremacismo, bem presente quando vemos Klaus Shwab elogiar o louco Milei por trazer a “argentina de volta aos valores ocidentais”, demonstra o que é Davos, um pólo de propaganda da ideia civilizacional ocidental, mesmo que à custa de um país destruído e um povo na mais abjecta miséria. Por aqui, Klaus Shwab diz-nos: não importa que fiquem todos na miséria, contanto que venham em direcção “aos valores ocidentais”.

O cinismo é outra das características das elites globalistas, neoliberais ou neoconservadoras. Davos é um festival de doutrinação do resto do mundo, à custa do apagamento, do silenciamento e condicionamento do debate crítico dos problemas, apenas dando voz à narrativa ocidental. Por fim, o elitismo de quem se acha superior aos demais, também está bem presente na constituição dos painéis, esmagadoramente ocidentais, maioritariamente americanos e recorrendo, aqui e ali, a alguém do sul global, apenas para dar uma ideia de diversidade.

Debate aberto, crítica, confronto de ideias, argumentação e contra-argumentação, cooperação real, no verdadeiro sentido da palavra, reunindo o que une e afastando o que separa, tomando decisões em conjunto, ao invés de contra alguém, respeito pela diversidade étnica, cultural, ideológica, como uma visão verdadeiramente democrática pressupõe, respeito pelas crenças, tradições e características de cada povo, como deve uma visão universalista… Nada disso vimos em Davos.

Em Davos assistimos a um império em luta consigo (com a “desinformação”) e com os outros (“segurança”), incapaz de encontrar um lugar num mundo que se recusa a vê-los como superiores… Daí a tentativa de revestir o monstro com trajes atractivos, mas que se revela, mesmo assim, pela sua latente brutalidade…

Como em tudo… Em Davos vende-se o que ninguém quer comprar…. Daí o tanto marketing que se faz!

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