O genocídio em Gaza mostra que muito dos preconceitos liberais devem cair por terra.
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O genocídio em Gaza fez com que a direita conservadora pró OTAN levasse a sua incoerência a patamares nunca antes vistos: no eterno afã de denunciar a “hipocrisia da esquerda”, o direitista típico mostra que o mundo árabe em geral não é gay friendly, ao passo que Israel tem parada gay e feminismo. Ora bolas, se você se pretende conservador e anti-woke, qual é o sentido então de apoiar incondicionalmente o único país com parada gay e feminismo na região?
Extrapolando o raciocínio, podemos apontar ainda que o conservador pró OTAN deveria, grosso modo, rechaçar a OTAN e apoiar os países que estão alinhados contra ela. A Rússia criminalizou a propaganda LGBT, a Ucrânia escalou um travesti militar dos EUA para fazer propaganda de guerra. (Quem imaginaria isso em 2014?!) Há uma margem de erro – por exemplo, a Hungria é da OTAN e, desde Orbán, é conservadora; o México não é conservador e não é da OTAN –, mas a ideologia da OTAN é essa. Até a China do Partido Comunista é mais conservadora e anti-woke que a OTAN. Se Israel não dependesse do apoio da direita pentecostal, já teriam posto uma divisão travesti fazendo vídeos no TikTok.
Do lado esquerdista, ocorre algo parecido. Diante das imagens de fetos já formados mortos, a esquerda “pró escolha” aponta a incoerência da direita pró vida, que apoia o massacre de palestinos no ventre. Agora vejamos bem: se matar ou deixar de matar a vida intrauterina é uma mera questão de escolha, então aqueles fetos nada mais são que “escolhas” provisoriamente negadas e Israel não matou ninguém. Todas as mulheres em idade fértil podem escolher engravidar, e antes de fazê-lo podem pensar nisso como uma abstração. Uma vez que engravidem, porém, tem-se uma vida humana em concreto. É possível escolher matá-la – assim como é possível escolher matar um vizinho. Como permanecer um firme defensor do direito humano ao aborto e condenar Israel por matar palestinos no ventre?
Numa entrevista recente ao Opera Mundi, o presidente da Federação Árabe Palestina no Brasil, Ualid Rabah, ressaltou a importância demográfica da vida intrauterina no genocídio em curso. Perguntado sobre os números dos mortos por Israel, respondeu que os números atuais, que desprezam a subnotificação e as mortes decorrentes das condições precárias causadas por Israel (por exemplo, doentes que ficaram sem diálise porque Israel destruiu toda a infraestrutura que a oferecia), são 77.646, ou 3,39% da demografia de Gaza, segundo os Médicos Sem Fronteiras. No entanto, outro número muito importante é o de 12 mil nascimentos a menos em um ano: segundo o sinistro UNFPA, o malthusiano Fundo de Populações da ONU, houve no primeiro semestre de 2025 41% nascimentos a menos do que no período equivalente em 2024. A suposta guerra de Israel mata mais mulheres do que qualquer guerra normal – e a vida intrauterina não entra nas estatísticas.
Ao fim e ao cabo, a ideologia segundo a qual a vida humana só conta a partir do parto serve para Israel mirar em grávidas e matar, por assim dizer, dois pelo preço de um.
Mas de onde vem essa ideologia? A direita costuma apontar para a URSS, porque foi o primeiro país a legalizar o aborto. No entanto, a URSS teve uma postura variável, já que criminalizou o aborto quando teve problemas demográficos. O país que capitaneia a propaganda pró contracepção e aborto no mundo são os Estados Unidos, cujo memorando NSSM-200, redigido pelo judeu sionista Henry Kissinger em 1974, via a demografia de 13 países do terceiro mundo (Brasil, Colômbia, México, Índia, Bangladexe, Paquistão, Nigéria, Indonésia, Filipinas, Tailândia, Egito, Turquia, Etiópia) como uma ameaça existencial aos EUA e prescrevia o fomento do aborto, por meio de ONGs, como um remédio para essa situação. Indira Gandhi ganhou um prêmio da UNFPA pelo seu trabalho na contenção demográfica da Índia, que incluiu esterilização forçada.
No ano anterior (1973), os EUA fizeram a ação de maior impacto malthusiano dentro do próprio país: a Suprema Corte proibiu a criminalização do aborto em todo o país, com Roe v. Wade. O documento da decisão alega que não há meios científicos de decidir quando começa a vida e revisa os embasamentos das duas posições opostas: uma segundo a qual a vida começa com a concepção e portanto proíbe o aborto desde a concepção, que é a posição dos católicos, e outra, segundo a qual a vida só começa no nascimento, de modo que o aborto pode ser feito em qualquer período gestacional (matando o bebê antes do parto). Essa posição é atribuída aos estoicos, à fé judaica em sua maioria e a grande parte dos protestantes. Dado que em 1993 saiu outra decisão, a Planned Parenthood v. Casey, que permitia que os estados criassem leis que liberam o aborto sem fixar um prazo, podemos concluir que a “atitude predominante da fé judaica” prevaleceu – e que muito do que se diz científico ou técnico é, na verdade, um jeito de lavar posições teológicas num Estado laico. Mesmo com a derrubada de Roe v. Wade em 2022, ainda é possível fazer um “aborto tardio” no Alasca, por exemplo.
O assunto religião nos leva de volta à entrevista de Ualid Rabah. Perguntado sobre os planos de Israel, respondeu que os sionistas têm que resolver um problema demográfico, pois não há judeus suficientes para povoar um Grande Israel (seja por existirem poucos judeus, seja por eles não estarem dispostos a se mudar das Américas e da Europa para o Oriente Médio). A solução encontrada por Israel seria, então, levar cristãos israelizados para povoar esse vazio. No Rio de Janeiro, há o tele-evangelista Edir Macedo fantasiado de rabino, há submetralhadoras Uzi (israelenses) no crime organizado e, finalmente, há o Complexo de Israel (sobre o qual o colega Raphael Machado já escreveu aqui). Segundo Ualid Rabah, haveria uma substituição não apenas de população, mas também de cristianismos: a ingerência dos EUA no Oriente Médio sempre reduz a população cristã histórica. Assim, sairiam de lá os cristãos católicos e ortodoxos, e entrariam os cristãos sionistas com os judeus conversos. E nem se trata de uma questão racial, pois Israel recebe até índio peruano como judeu para colocar na Cisjordânia. É uma questão religiosa.
Diante desse evidente problema de valores, vale citarmos o judeu ateu e antissionista Norman Finkelstein: “O veredito da História é cristalino: aqueles que obedeciam à ciência – os ‘progressistas’ – estavam errados, aqueles que se aferravam à religião – os ‘regressistas’ – estavam certos. O direito de esterilizar dizia respeito à interferência do governo no processo reprodutivo; o direito a abortar diz respeito a impedir a interferência do governo aí. Mas no fim, pode-se dizer que a questão moral é a mesma: a sacralidade da vida humana. Os religiosos se opuseram à esterilização à época e se opõem ao aborto agora, ao passo que os progressistas apoiaram a esterilização à época e apoiam o aborto agora” (I will burn that bridge when I get to it!, p. 40).
A esquerda mainstream julga que a religião é uma coisa deletéria em si mesma, e que seu obscurantismo deve ser superado pela ciência. O laicismo, que todas as religiões são iguais e devem ter igual direito de cidade. O genocídio em Gaza mostra que não é bem assim, e muito dos preconceitos liberais devem cair por terra.