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Bruna Frascolla
November 4, 2024
© Photo: Public domain

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

Quem realmente estiver empenhado em descobrir o que se passa no oriente médio e não for um monoglota, já sabe que o governo Netanyahu é guiado pela meta do Grande Israel, tão cara ao sionismo religioso. O Reino de Israel deveria se estender do Nilo ao Eufrates, tal como no tempo do Rei David. Israel invadir o sul do Líbano não é novidade, nem é movimento defensivo. Israel já ocupou o Líbano de 1982 a 2000. Sua meta é anexar o país inteiro e avançar rumo à Síria e ao Iraque – áreas de interesse dos neoconservadores de Washington. A esse respeito, é muito recomendável ler os textos de Alastair Crooke aqui mesmo nesta SCF. Você pode clicar aqui e ler os artigos no seu idioma favorito.

Pois bem: outra coisa que já deu para notar é que não há uma relação necessária entre a desgraça dos palestinos e o sucesso de Israel. O projeto sionista deve fracassar; ainda assim, os palestinos podem continuar comendo o pão que o diabo amassou – sobretudo se considerarmos que Gaza agora é só entulho, e que seria necessário um plano Marshall para deixar o local habitável. No entanto, Israel há muito tem o projeto de deixar Gaza inabitável com o fito de reduzir a população (seja por ela se ver obrigada a emigrar, ou por morrer com as más condições sanitárias). Enquanto Israel controlar o local, os palestinos serão tratados como “animais humanos”, para usar a expressão de Yoav Gallant. Israel pode fracassar em seu expansionismo, mas conseguir segurar Gaza e a Cisjordânia.

Ainda assim, a empreitada expansionista de Israel tem tornado a sua bestialidade cada vez mais visível, e sua causa, cada vez mais difícil de apoiar. Foi-se o tempo em que todas as imagens sangrentas eram descartadas como uma ficção de “Pallywood”. Agora, ninguém mais tem coragem de dizer que as crianças não estão morrendo; que os palestinos carregam bonecas em vez de cadáveres; que se lambuzam de ketchup para se fingir de vítimas. Agora, diz-se (e cada vez menos gente diz) que é tudo culpa do Hamas, porque Israel tem o direito de se defender. Os cadáveres de crianças são sempre dano colateral de uma “ação cirúrgica”.

Em seu isolamento, os palestinos podiam ser pintados como seres de outro mundo, que babam de ódio antissemita 24 horas por dia e são terroristas desde a mais tenra idade. De repente o mundo viu os libaneses serem incluídos na mesma classe de ETs, já que Israel destrói prédios residenciais e bombardeia crianças do mesmo jeito, com as mesmas justificativas. É mais difícil mentir sobre os libaneses, porque eles não passaram a maior parte do tempo controlados por Israel, e porque eles têm uma imensa diáspora cristã bem sucedida pelas Américas. No Brasil, mesmo, tivemos de 2016 a 2018 um presidente cidadão libanês; e tanto à esquerda como à direita há políticos notáveis de origem libanesa (sem pensar muito, cito o vice-presidente Alckmin, o ministro Haddad, o eterno Paulo Maluf, ACM Neto…).

Se há esperança para os palestinos, ela reside num retumbante fracasso do sionismo. Um retumbante fracasso que deixe clara não só a sua brutalidade contra civis inocentes (o que já está muito claro), como também o caráter expansionista e genocida da sua doutrina. É preciso ficar claro que Netanyahu é semelhante a Hitler, já que pretende conquistar um Lebensraum enquanto reduz à miséria e à servidão os poucos nativos sobreviventes. É preciso lembrar que Hitler não pretendia simplesmente eliminar os eslavos, mas sim reduzi-los à miséria e à servidão, destruindo quaisquer marcas de um passado glorioso. É isso que acontece hoje com os palestinos, e é isso que os sionistas desejam para todos os gentios entre o Nilo e o Eufrates.

Se Israel tiver apenas um fracasso moderado; isto é, se apenas se retirar do Líbano e desistir de atacar o Irã, a vida dos palestinos poderá continuar na mesma, apenas com uma piora na qualidade de vida legada pela retaliação à Operação Dilúvio de Al-Aqsa.

Quem entendeu o sionismo sabe que isso é um delírio, mas a mais recente entrevista de Bassem Youssef a Piers Morgan me fez crer que o establishment liberal já tem uma rota de fuga pronta para um fracasso moderado do sionismo: culpar a extrema-direita. Sendo ela um fenômeno global de classificação arbitrária, esse é, no limite, um jeito de dizer que a culpa pelo genocídio palestino é de todo aquele que ache que mulheres não têm pênis. Afinal, ser contra a ideologia de gênero não é extremismo de direita?

Piers Morgan tem sido uma espécie de gatekeeper da discussão sobre a Palestina desde a Operação Dilúvio de Al-Aqsa. Ele chegou a ouvir até Norman Finkelstein, e sua disposição para ouvir até o mais odiado judeu antissionista dos EUA (que é também o maior especialista em Gaza do mundo e um fenômeno de audiência online desde a operação) foi contrabalançada pela sua insistência na pergunta: “Você condena o Hamas?”

Ainda assim, quem conseguiu desmontar Piers Morgan, e viralizou, foi o comediante egípcio Bassem Youssef, cuja esposa é palestina. Com seu humor sarcástico, ele disse que tenta matar a esposa, mas não consegue; que tenta pegá-la, mas ela usa as crianças como escudo humano. Reclamou do cunhado em Gaza, que mentiu que as IDF não avisam antes de bombardear, ao contrário do que dizem Ben Shapiro e em Ron De Santis. Diante da pergunta de se condena o Hamas, Youssef lastimou a morte de civis israelenses – mas apresentou um gráfico que comparava as mortes de palestinos às de israelenses ao longo dos anos, e cobrou de Piers Morgan uma cotação do valor da vida dos palestinos em relação à dos israelenses.

Desde então, Piers Morgan o convidou para voltar lá mais duas vezes, sempre pessoalmente, porque Youssef reclamou de ficar num cubículo recebendo somente som. A segunda vez se deu em virtude da imensa repercussão da primeira. A terceira, em 23 de outubro de 2024, foi praticamente uma comemoração do aniversário da primeira. Bassem Youssef se saiu mais uma vez muito bem ao escapar das provocações de Piers Morgan (que chegou a insinuar antissemitismo) e defendeu a causa palestina com fatos (denunciando, por exemplo, as fake news dos bebês decapitados e do estupro em massa inventado pelo New York Times). Não bastasse isso, ele ainda conseguiu fazer com que Piers Morgan admitisse que Israel tem ocupações na Palestina e denunciou a falta de liberdade de expressão nos EUA. Toda vez que Piers Morgan pedia que ele falasse mal do Hamas, ele falava com muita ênfase que eram horríveis, que eram vampiros, pois não queria que o FBI aparecesse na porta dele.

Esse é um argumento bom, e é um argumento liberal. Bassem Youssef é um liberal. Ele saiu do Egito, onde era médico, após a Primavera Árabe. Foi para os EUA, ganhou cidadania e sempre manifesta horror a Putin e solidariedade à Ucrânia. Creio que essa seja a principal razão pela qual ele tenha recebido terceiro convite: dar visibilidade a uma crítica liberal do Estado de Israel e uma defesa liberal da causa palestina, e começar a lavar a reputação da esmagadora maioria liberal que interpretou Israel X Palestina como Civilização X Barbárie. De quebra, há o fato de que o sionismo de direita é religioso – e podemos até nos perguntar em que medida a força da religião em Israel não se deve à presença de judeus árabes e judeus russos. Isso poderia então reconduzir os liberais de volta à oposição entre Civilização (americanos e europeus ocidentais laicistas) e Barbárie (russos e árabes religiosos).

Nos mais róseos sonhos dos liberais, a direita israelense seria substituída por sionistas woke que seriam totalmente obedientes a Washington, e que, ao invadir e ocupar territórios árabes, o faria em nome dos direitos LGBTQIA+ e do empoderamento feminino. O problema é que jamais um regime conseguiu se legitimar com base nessas bandeiras. O próprio fundador do sionismo, Theodor Herzl, era ateu. Em Der Judenstaat ele propunha um Estado laico para receber os judeus, definidos como vítimas do antissemitismo e não como um povo eleito ou praticante de uma religião. Para o sionismo atrair massas de judeus pobres, não bastou o antissemitismo; foi preciso tornar-se religioso.

É possível fazer uma crítica liberal do expansionismo sionista. No entanto, toda crítica liberal pode voltar-se contra regimes populares e soberanos que são religiosos, como o do Irã e o de uma eventual Palestina livre governada pelo Hamas. Por isso mesmo, é preciso mostrar as semelhanças entre o sionismo e o nazismo, já que este último era laico e tinha uma forte componente cientificista que o aproximava do liberalismo (vale lembrar que a Fundação Rockefeller subsidiou a eugenia na Alemanha ainda antes da ascensão do nazismo). Além disso, um recuo no tempo mostrará que a limpeza étnica sionista começou com a própria fundação do Estado de Israel, sob a batuta do socialista laico Ben Gurion, cujas intenções expansionistas estão muito bem registradas nos seus diários.

Quando Israel ficar insustentável, tudo será culpa da “extrema direita”

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Quem realmente estiver empenhado em descobrir o que se passa no oriente médio e não for um monoglota, já sabe que o governo Netanyahu é guiado pela meta do Grande Israel, tão cara ao sionismo religioso. O Reino de Israel deveria se estender do Nilo ao Eufrates, tal como no tempo do Rei David. Israel invadir o sul do Líbano não é novidade, nem é movimento defensivo. Israel já ocupou o Líbano de 1982 a 2000. Sua meta é anexar o país inteiro e avançar rumo à Síria e ao Iraque – áreas de interesse dos neoconservadores de Washington. A esse respeito, é muito recomendável ler os textos de Alastair Crooke aqui mesmo nesta SCF. Você pode clicar aqui e ler os artigos no seu idioma favorito.

Pois bem: outra coisa que já deu para notar é que não há uma relação necessária entre a desgraça dos palestinos e o sucesso de Israel. O projeto sionista deve fracassar; ainda assim, os palestinos podem continuar comendo o pão que o diabo amassou – sobretudo se considerarmos que Gaza agora é só entulho, e que seria necessário um plano Marshall para deixar o local habitável. No entanto, Israel há muito tem o projeto de deixar Gaza inabitável com o fito de reduzir a população (seja por ela se ver obrigada a emigrar, ou por morrer com as más condições sanitárias). Enquanto Israel controlar o local, os palestinos serão tratados como “animais humanos”, para usar a expressão de Yoav Gallant. Israel pode fracassar em seu expansionismo, mas conseguir segurar Gaza e a Cisjordânia.

Ainda assim, a empreitada expansionista de Israel tem tornado a sua bestialidade cada vez mais visível, e sua causa, cada vez mais difícil de apoiar. Foi-se o tempo em que todas as imagens sangrentas eram descartadas como uma ficção de “Pallywood”. Agora, ninguém mais tem coragem de dizer que as crianças não estão morrendo; que os palestinos carregam bonecas em vez de cadáveres; que se lambuzam de ketchup para se fingir de vítimas. Agora, diz-se (e cada vez menos gente diz) que é tudo culpa do Hamas, porque Israel tem o direito de se defender. Os cadáveres de crianças são sempre dano colateral de uma “ação cirúrgica”.

Em seu isolamento, os palestinos podiam ser pintados como seres de outro mundo, que babam de ódio antissemita 24 horas por dia e são terroristas desde a mais tenra idade. De repente o mundo viu os libaneses serem incluídos na mesma classe de ETs, já que Israel destrói prédios residenciais e bombardeia crianças do mesmo jeito, com as mesmas justificativas. É mais difícil mentir sobre os libaneses, porque eles não passaram a maior parte do tempo controlados por Israel, e porque eles têm uma imensa diáspora cristã bem sucedida pelas Américas. No Brasil, mesmo, tivemos de 2016 a 2018 um presidente cidadão libanês; e tanto à esquerda como à direita há políticos notáveis de origem libanesa (sem pensar muito, cito o vice-presidente Alckmin, o ministro Haddad, o eterno Paulo Maluf, ACM Neto…).

Se há esperança para os palestinos, ela reside num retumbante fracasso do sionismo. Um retumbante fracasso que deixe clara não só a sua brutalidade contra civis inocentes (o que já está muito claro), como também o caráter expansionista e genocida da sua doutrina. É preciso ficar claro que Netanyahu é semelhante a Hitler, já que pretende conquistar um Lebensraum enquanto reduz à miséria e à servidão os poucos nativos sobreviventes. É preciso lembrar que Hitler não pretendia simplesmente eliminar os eslavos, mas sim reduzi-los à miséria e à servidão, destruindo quaisquer marcas de um passado glorioso. É isso que acontece hoje com os palestinos, e é isso que os sionistas desejam para todos os gentios entre o Nilo e o Eufrates.

Se Israel tiver apenas um fracasso moderado; isto é, se apenas se retirar do Líbano e desistir de atacar o Irã, a vida dos palestinos poderá continuar na mesma, apenas com uma piora na qualidade de vida legada pela retaliação à Operação Dilúvio de Al-Aqsa.

Quem entendeu o sionismo sabe que isso é um delírio, mas a mais recente entrevista de Bassem Youssef a Piers Morgan me fez crer que o establishment liberal já tem uma rota de fuga pronta para um fracasso moderado do sionismo: culpar a extrema-direita. Sendo ela um fenômeno global de classificação arbitrária, esse é, no limite, um jeito de dizer que a culpa pelo genocídio palestino é de todo aquele que ache que mulheres não têm pênis. Afinal, ser contra a ideologia de gênero não é extremismo de direita?

Piers Morgan tem sido uma espécie de gatekeeper da discussão sobre a Palestina desde a Operação Dilúvio de Al-Aqsa. Ele chegou a ouvir até Norman Finkelstein, e sua disposição para ouvir até o mais odiado judeu antissionista dos EUA (que é também o maior especialista em Gaza do mundo e um fenômeno de audiência online desde a operação) foi contrabalançada pela sua insistência na pergunta: “Você condena o Hamas?”

Ainda assim, quem conseguiu desmontar Piers Morgan, e viralizou, foi o comediante egípcio Bassem Youssef, cuja esposa é palestina. Com seu humor sarcástico, ele disse que tenta matar a esposa, mas não consegue; que tenta pegá-la, mas ela usa as crianças como escudo humano. Reclamou do cunhado em Gaza, que mentiu que as IDF não avisam antes de bombardear, ao contrário do que dizem Ben Shapiro e em Ron De Santis. Diante da pergunta de se condena o Hamas, Youssef lastimou a morte de civis israelenses – mas apresentou um gráfico que comparava as mortes de palestinos às de israelenses ao longo dos anos, e cobrou de Piers Morgan uma cotação do valor da vida dos palestinos em relação à dos israelenses.

Desde então, Piers Morgan o convidou para voltar lá mais duas vezes, sempre pessoalmente, porque Youssef reclamou de ficar num cubículo recebendo somente som. A segunda vez se deu em virtude da imensa repercussão da primeira. A terceira, em 23 de outubro de 2024, foi praticamente uma comemoração do aniversário da primeira. Bassem Youssef se saiu mais uma vez muito bem ao escapar das provocações de Piers Morgan (que chegou a insinuar antissemitismo) e defendeu a causa palestina com fatos (denunciando, por exemplo, as fake news dos bebês decapitados e do estupro em massa inventado pelo New York Times). Não bastasse isso, ele ainda conseguiu fazer com que Piers Morgan admitisse que Israel tem ocupações na Palestina e denunciou a falta de liberdade de expressão nos EUA. Toda vez que Piers Morgan pedia que ele falasse mal do Hamas, ele falava com muita ênfase que eram horríveis, que eram vampiros, pois não queria que o FBI aparecesse na porta dele.

Esse é um argumento bom, e é um argumento liberal. Bassem Youssef é um liberal. Ele saiu do Egito, onde era médico, após a Primavera Árabe. Foi para os EUA, ganhou cidadania e sempre manifesta horror a Putin e solidariedade à Ucrânia. Creio que essa seja a principal razão pela qual ele tenha recebido terceiro convite: dar visibilidade a uma crítica liberal do Estado de Israel e uma defesa liberal da causa palestina, e começar a lavar a reputação da esmagadora maioria liberal que interpretou Israel X Palestina como Civilização X Barbárie. De quebra, há o fato de que o sionismo de direita é religioso – e podemos até nos perguntar em que medida a força da religião em Israel não se deve à presença de judeus árabes e judeus russos. Isso poderia então reconduzir os liberais de volta à oposição entre Civilização (americanos e europeus ocidentais laicistas) e Barbárie (russos e árabes religiosos).

Nos mais róseos sonhos dos liberais, a direita israelense seria substituída por sionistas woke que seriam totalmente obedientes a Washington, e que, ao invadir e ocupar territórios árabes, o faria em nome dos direitos LGBTQIA+ e do empoderamento feminino. O problema é que jamais um regime conseguiu se legitimar com base nessas bandeiras. O próprio fundador do sionismo, Theodor Herzl, era ateu. Em Der Judenstaat ele propunha um Estado laico para receber os judeus, definidos como vítimas do antissemitismo e não como um povo eleito ou praticante de uma religião. Para o sionismo atrair massas de judeus pobres, não bastou o antissemitismo; foi preciso tornar-se religioso.

É possível fazer uma crítica liberal do expansionismo sionista. No entanto, toda crítica liberal pode voltar-se contra regimes populares e soberanos que são religiosos, como o do Irã e o de uma eventual Palestina livre governada pelo Hamas. Por isso mesmo, é preciso mostrar as semelhanças entre o sionismo e o nazismo, já que este último era laico e tinha uma forte componente cientificista que o aproximava do liberalismo (vale lembrar que a Fundação Rockefeller subsidiou a eugenia na Alemanha ainda antes da ascensão do nazismo). Além disso, um recuo no tempo mostrará que a limpeza étnica sionista começou com a própria fundação do Estado de Israel, sob a batuta do socialista laico Ben Gurion, cujas intenções expansionistas estão muito bem registradas nos seus diários.

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

Quem realmente estiver empenhado em descobrir o que se passa no oriente médio e não for um monoglota, já sabe que o governo Netanyahu é guiado pela meta do Grande Israel, tão cara ao sionismo religioso. O Reino de Israel deveria se estender do Nilo ao Eufrates, tal como no tempo do Rei David. Israel invadir o sul do Líbano não é novidade, nem é movimento defensivo. Israel já ocupou o Líbano de 1982 a 2000. Sua meta é anexar o país inteiro e avançar rumo à Síria e ao Iraque – áreas de interesse dos neoconservadores de Washington. A esse respeito, é muito recomendável ler os textos de Alastair Crooke aqui mesmo nesta SCF. Você pode clicar aqui e ler os artigos no seu idioma favorito.

Pois bem: outra coisa que já deu para notar é que não há uma relação necessária entre a desgraça dos palestinos e o sucesso de Israel. O projeto sionista deve fracassar; ainda assim, os palestinos podem continuar comendo o pão que o diabo amassou – sobretudo se considerarmos que Gaza agora é só entulho, e que seria necessário um plano Marshall para deixar o local habitável. No entanto, Israel há muito tem o projeto de deixar Gaza inabitável com o fito de reduzir a população (seja por ela se ver obrigada a emigrar, ou por morrer com as más condições sanitárias). Enquanto Israel controlar o local, os palestinos serão tratados como “animais humanos”, para usar a expressão de Yoav Gallant. Israel pode fracassar em seu expansionismo, mas conseguir segurar Gaza e a Cisjordânia.

Ainda assim, a empreitada expansionista de Israel tem tornado a sua bestialidade cada vez mais visível, e sua causa, cada vez mais difícil de apoiar. Foi-se o tempo em que todas as imagens sangrentas eram descartadas como uma ficção de “Pallywood”. Agora, ninguém mais tem coragem de dizer que as crianças não estão morrendo; que os palestinos carregam bonecas em vez de cadáveres; que se lambuzam de ketchup para se fingir de vítimas. Agora, diz-se (e cada vez menos gente diz) que é tudo culpa do Hamas, porque Israel tem o direito de se defender. Os cadáveres de crianças são sempre dano colateral de uma “ação cirúrgica”.

Em seu isolamento, os palestinos podiam ser pintados como seres de outro mundo, que babam de ódio antissemita 24 horas por dia e são terroristas desde a mais tenra idade. De repente o mundo viu os libaneses serem incluídos na mesma classe de ETs, já que Israel destrói prédios residenciais e bombardeia crianças do mesmo jeito, com as mesmas justificativas. É mais difícil mentir sobre os libaneses, porque eles não passaram a maior parte do tempo controlados por Israel, e porque eles têm uma imensa diáspora cristã bem sucedida pelas Américas. No Brasil, mesmo, tivemos de 2016 a 2018 um presidente cidadão libanês; e tanto à esquerda como à direita há políticos notáveis de origem libanesa (sem pensar muito, cito o vice-presidente Alckmin, o ministro Haddad, o eterno Paulo Maluf, ACM Neto…).

Se há esperança para os palestinos, ela reside num retumbante fracasso do sionismo. Um retumbante fracasso que deixe clara não só a sua brutalidade contra civis inocentes (o que já está muito claro), como também o caráter expansionista e genocida da sua doutrina. É preciso ficar claro que Netanyahu é semelhante a Hitler, já que pretende conquistar um Lebensraum enquanto reduz à miséria e à servidão os poucos nativos sobreviventes. É preciso lembrar que Hitler não pretendia simplesmente eliminar os eslavos, mas sim reduzi-los à miséria e à servidão, destruindo quaisquer marcas de um passado glorioso. É isso que acontece hoje com os palestinos, e é isso que os sionistas desejam para todos os gentios entre o Nilo e o Eufrates.

Se Israel tiver apenas um fracasso moderado; isto é, se apenas se retirar do Líbano e desistir de atacar o Irã, a vida dos palestinos poderá continuar na mesma, apenas com uma piora na qualidade de vida legada pela retaliação à Operação Dilúvio de Al-Aqsa.

Quem entendeu o sionismo sabe que isso é um delírio, mas a mais recente entrevista de Bassem Youssef a Piers Morgan me fez crer que o establishment liberal já tem uma rota de fuga pronta para um fracasso moderado do sionismo: culpar a extrema-direita. Sendo ela um fenômeno global de classificação arbitrária, esse é, no limite, um jeito de dizer que a culpa pelo genocídio palestino é de todo aquele que ache que mulheres não têm pênis. Afinal, ser contra a ideologia de gênero não é extremismo de direita?

Piers Morgan tem sido uma espécie de gatekeeper da discussão sobre a Palestina desde a Operação Dilúvio de Al-Aqsa. Ele chegou a ouvir até Norman Finkelstein, e sua disposição para ouvir até o mais odiado judeu antissionista dos EUA (que é também o maior especialista em Gaza do mundo e um fenômeno de audiência online desde a operação) foi contrabalançada pela sua insistência na pergunta: “Você condena o Hamas?”

Ainda assim, quem conseguiu desmontar Piers Morgan, e viralizou, foi o comediante egípcio Bassem Youssef, cuja esposa é palestina. Com seu humor sarcástico, ele disse que tenta matar a esposa, mas não consegue; que tenta pegá-la, mas ela usa as crianças como escudo humano. Reclamou do cunhado em Gaza, que mentiu que as IDF não avisam antes de bombardear, ao contrário do que dizem Ben Shapiro e em Ron De Santis. Diante da pergunta de se condena o Hamas, Youssef lastimou a morte de civis israelenses – mas apresentou um gráfico que comparava as mortes de palestinos às de israelenses ao longo dos anos, e cobrou de Piers Morgan uma cotação do valor da vida dos palestinos em relação à dos israelenses.

Desde então, Piers Morgan o convidou para voltar lá mais duas vezes, sempre pessoalmente, porque Youssef reclamou de ficar num cubículo recebendo somente som. A segunda vez se deu em virtude da imensa repercussão da primeira. A terceira, em 23 de outubro de 2024, foi praticamente uma comemoração do aniversário da primeira. Bassem Youssef se saiu mais uma vez muito bem ao escapar das provocações de Piers Morgan (que chegou a insinuar antissemitismo) e defendeu a causa palestina com fatos (denunciando, por exemplo, as fake news dos bebês decapitados e do estupro em massa inventado pelo New York Times). Não bastasse isso, ele ainda conseguiu fazer com que Piers Morgan admitisse que Israel tem ocupações na Palestina e denunciou a falta de liberdade de expressão nos EUA. Toda vez que Piers Morgan pedia que ele falasse mal do Hamas, ele falava com muita ênfase que eram horríveis, que eram vampiros, pois não queria que o FBI aparecesse na porta dele.

Esse é um argumento bom, e é um argumento liberal. Bassem Youssef é um liberal. Ele saiu do Egito, onde era médico, após a Primavera Árabe. Foi para os EUA, ganhou cidadania e sempre manifesta horror a Putin e solidariedade à Ucrânia. Creio que essa seja a principal razão pela qual ele tenha recebido terceiro convite: dar visibilidade a uma crítica liberal do Estado de Israel e uma defesa liberal da causa palestina, e começar a lavar a reputação da esmagadora maioria liberal que interpretou Israel X Palestina como Civilização X Barbárie. De quebra, há o fato de que o sionismo de direita é religioso – e podemos até nos perguntar em que medida a força da religião em Israel não se deve à presença de judeus árabes e judeus russos. Isso poderia então reconduzir os liberais de volta à oposição entre Civilização (americanos e europeus ocidentais laicistas) e Barbárie (russos e árabes religiosos).

Nos mais róseos sonhos dos liberais, a direita israelense seria substituída por sionistas woke que seriam totalmente obedientes a Washington, e que, ao invadir e ocupar territórios árabes, o faria em nome dos direitos LGBTQIA+ e do empoderamento feminino. O problema é que jamais um regime conseguiu se legitimar com base nessas bandeiras. O próprio fundador do sionismo, Theodor Herzl, era ateu. Em Der Judenstaat ele propunha um Estado laico para receber os judeus, definidos como vítimas do antissemitismo e não como um povo eleito ou praticante de uma religião. Para o sionismo atrair massas de judeus pobres, não bastou o antissemitismo; foi preciso tornar-se religioso.

É possível fazer uma crítica liberal do expansionismo sionista. No entanto, toda crítica liberal pode voltar-se contra regimes populares e soberanos que são religiosos, como o do Irã e o de uma eventual Palestina livre governada pelo Hamas. Por isso mesmo, é preciso mostrar as semelhanças entre o sionismo e o nazismo, já que este último era laico e tinha uma forte componente cientificista que o aproximava do liberalismo (vale lembrar que a Fundação Rockefeller subsidiou a eugenia na Alemanha ainda antes da ascensão do nazismo). Além disso, um recuo no tempo mostrará que a limpeza étnica sionista começou com a própria fundação do Estado de Israel, sob a batuta do socialista laico Ben Gurion, cujas intenções expansionistas estão muito bem registradas nos seus diários.

The views of individual contributors do not necessarily represent those of the Strategic Culture Foundation.

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September 30, 2024

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