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Bruna Frascolla
January 9, 2025
© Photo: Public domain

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

Uma ideia compartilhada por antissemitas e supremacistas judaicos é a de que os judeus são um grupo racial específico que atravessa o tempo e o espaço mantendo intactas as suas características físicas e culturais, sem sofrer nenhuma influência dos gentios que os rodeiam. Não obstante, os judeus têm uma relação simbiótica com o protestantismo, marcado por uma troca de influências. O judaísmo reformado e as correntes mais exaltadas do judaísmo liberal são dois exemplos evidentes da influência protestante exercida sobre as sinagogas ocidentais.

Se o nome “Reformado” fala por si, vale explicar que, no mundo anglófono do século XIX, a vertente liberal era a oposição da vertente fundamentalista do protestantismo. Enquanto os fundamentalistas defendiam o apego à letra da Bíblia como baliza até para a ciência (tendo surgido assim o terraplanismo…), os liberais punham a ciência em primeiro lugar e questionavam toda forma de autoridade, dando plena liberdade aos fiéis para decidirem todas as questões teológicas e morais. Numa sinagoga liberal mais radical, o judeu converso decide até se quer se circuncidar ou não.

O fundamentalismo também influenciou os judeus, e de uma maneira muito estranha. O leitor já notou que os sionistas citam muito a autoridade da Bíblia? Isso é estranho por duas razões: primeiro, o sionismo, em sua origem, é um movimento formado por judeus ateus da Europa central e oriental; segundo, a Bíblia é composta por Velho e Novo Testamento, sendo somente o Velho Testamento aceito pelos judeus. Mais intuitivo seria falarem em Torá em vez de Bíblia.

Em A invenção do povo judeu, o historiador israelense Shlomo Sand explica o enigma. Na Europa do século XIX, houve a emancipação dos judeus e, ao mesmo tempo, despontaram os nacionalismos. Na Prússia, o romantismo alemão urdia a nacionalidade em torno do folclore, da mitologia e da raça. Assim, os judeus alemães estavam excluídos do nacionalismo alemão, já que suas origens, em tese, remontavam à antiga Judeia e não aos povos germânicos descritos por Tácito. Respirando esses ares, o historiador judeu prussiano Heinrich Groetz resolve fazer um nacionalismo judaico nos mesmos moldes; mas, se não há nenhum folclore respeitável (judeus germanizados desprezavam a cultura iídiche), resta a respeitabilíssima Bíblia. O Velho Testamento passa então a ser encarado como a certidão de nascimento da raça-cultura judaica, um documento ao mesmo tempo mitológico e historiográfico. A Bíblia se torna völkisch.

Somando-se a essa demanda por uma história nacional, há, ao mesmo tempo, um ambiente de exagerado otimismo com a ciência, aí incluso o racismo científico. Ateus tendem a ser cientificistas, cientificistas do século XIX tendiam a ser racistas convictos. Esse era o caso de Moses Hess, outro nome importante para o sionismo, que em Roma e Jerusalém se empenhou em afirmar uma identidade racial judaica imutável, dotada de uma excepcionalidade diante do resto da espécie humana.

Unindo história e racismo, então, os sionistas usaram a Bíblia para defender a tese de que a Palestina era o seu lar nacional, do qual foram expulsos na Antiguidade. Os judeus religiosos da época, por outro lado, não se interessavam nem pela História, nem por ciências; em vez disso, esperavam a volta do Messias e não viam sentido em estudar o passado por outras fontes que não os livros sagrados.

Ora, a comprovação da veracidade literal da Bíblia é um projeto de parte significativa do protestantismo anglófono – a parte que é fundamentalista, ou fica ao lado dos fundamentalistas quando se trata de enfrentar os liberais. Assim, já na década de 1920, o arqueólogo metodista William Albright, dos EUA, passou a ensinar os sionistas na Palestina a desenvolver a “arqueologia bíblica”. William Albright acreditava que até mesmo o Gênesis era um documento histórico.

Os sionistas seguiriam os passos tanto do metodista quanto do historiador romântico Groetz, e chegaram ao ponto de criar, no sistema universitário israelense, duas cátedras distintas de História: a História Geral e a História do Povo Judeu. Nesta última, os parâmetros eram bem menos sérios do que na historiografia convencional.

Assim, o que temos é que judeus sionistas ateus e protestantes fervorosos compartilhavam o propósito de provar que a Bíblia é um documento histórico: os primeiros, para lastrear seu projeto etno-nacionalista de Blut und Boden (sangue e solo); os segundos, para lastrear sua fé.

De posse do poder mobilizador do mito, os judeus ateus do século XX fizeram algo que só os calvinistas haviam feito até então: consideraram-se um povo especial com direito a uma Terra Prometida, espelharam-se nas conquistas militares de Josué e se dedicaram a exterminar os habitantes nativos dessa terra. Antes, a fé havia levado peregrinos, puritanos e bôeres a se enxergarem como Povo Escolhido que tinham na América e na África suas terras prometidas. As ciências arqueológicas e raciais levaram os judeus ateus a se sentirem no direito de repetir os seus supostos antepassados e varrer da Canaã bíblica os seus habitantes. Isso foi, portanto, uma curiosa influência de cristãos exercida sobre judeus ateus.

Agora vamos à influência em mão reversa: no texto anterior, vimos que os intelectuais ateus dos países protestantes têm forjado uma aliança com cristãos. Eles louvam a superioridade moral do cristianismo e, no fundo, querem simplesmente mobilizar a tal “civilização judaico-cristã ocidental” do choque de civilizações inventado por Samuel Huntington, que é o guru neocon substituto de Fukuyama.

Nisso, o mundo protestante está imitando o judaico. Afinal, o projeto sionista só alcançou densidade demográfica com a adesão dos religiosos. A religião judaica, porém, teve que mudar. Antes do sionismo, a maioria dos rabinos, baseada no Talmude da Babilônia, considerava herético querer voltar para a Terra Santa antes da volta do Messias. Com o sionismo, a heresia virou normalidade entre os judeus religiosos. Assim, pode-se dizer que eles aceitaram a liderança dos ateus supremacistas que cultuam a ciência.

Até que ponto a cristandade não seguirá um rumo semelhante?

Quando os protestantes fundamentalistas influenciaram os judeus ateus

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Uma ideia compartilhada por antissemitas e supremacistas judaicos é a de que os judeus são um grupo racial específico que atravessa o tempo e o espaço mantendo intactas as suas características físicas e culturais, sem sofrer nenhuma influência dos gentios que os rodeiam. Não obstante, os judeus têm uma relação simbiótica com o protestantismo, marcado por uma troca de influências. O judaísmo reformado e as correntes mais exaltadas do judaísmo liberal são dois exemplos evidentes da influência protestante exercida sobre as sinagogas ocidentais.

Se o nome “Reformado” fala por si, vale explicar que, no mundo anglófono do século XIX, a vertente liberal era a oposição da vertente fundamentalista do protestantismo. Enquanto os fundamentalistas defendiam o apego à letra da Bíblia como baliza até para a ciência (tendo surgido assim o terraplanismo…), os liberais punham a ciência em primeiro lugar e questionavam toda forma de autoridade, dando plena liberdade aos fiéis para decidirem todas as questões teológicas e morais. Numa sinagoga liberal mais radical, o judeu converso decide até se quer se circuncidar ou não.

O fundamentalismo também influenciou os judeus, e de uma maneira muito estranha. O leitor já notou que os sionistas citam muito a autoridade da Bíblia? Isso é estranho por duas razões: primeiro, o sionismo, em sua origem, é um movimento formado por judeus ateus da Europa central e oriental; segundo, a Bíblia é composta por Velho e Novo Testamento, sendo somente o Velho Testamento aceito pelos judeus. Mais intuitivo seria falarem em Torá em vez de Bíblia.

Em A invenção do povo judeu, o historiador israelense Shlomo Sand explica o enigma. Na Europa do século XIX, houve a emancipação dos judeus e, ao mesmo tempo, despontaram os nacionalismos. Na Prússia, o romantismo alemão urdia a nacionalidade em torno do folclore, da mitologia e da raça. Assim, os judeus alemães estavam excluídos do nacionalismo alemão, já que suas origens, em tese, remontavam à antiga Judeia e não aos povos germânicos descritos por Tácito. Respirando esses ares, o historiador judeu prussiano Heinrich Groetz resolve fazer um nacionalismo judaico nos mesmos moldes; mas, se não há nenhum folclore respeitável (judeus germanizados desprezavam a cultura iídiche), resta a respeitabilíssima Bíblia. O Velho Testamento passa então a ser encarado como a certidão de nascimento da raça-cultura judaica, um documento ao mesmo tempo mitológico e historiográfico. A Bíblia se torna völkisch.

Somando-se a essa demanda por uma história nacional, há, ao mesmo tempo, um ambiente de exagerado otimismo com a ciência, aí incluso o racismo científico. Ateus tendem a ser cientificistas, cientificistas do século XIX tendiam a ser racistas convictos. Esse era o caso de Moses Hess, outro nome importante para o sionismo, que em Roma e Jerusalém se empenhou em afirmar uma identidade racial judaica imutável, dotada de uma excepcionalidade diante do resto da espécie humana.

Unindo história e racismo, então, os sionistas usaram a Bíblia para defender a tese de que a Palestina era o seu lar nacional, do qual foram expulsos na Antiguidade. Os judeus religiosos da época, por outro lado, não se interessavam nem pela História, nem por ciências; em vez disso, esperavam a volta do Messias e não viam sentido em estudar o passado por outras fontes que não os livros sagrados.

Ora, a comprovação da veracidade literal da Bíblia é um projeto de parte significativa do protestantismo anglófono – a parte que é fundamentalista, ou fica ao lado dos fundamentalistas quando se trata de enfrentar os liberais. Assim, já na década de 1920, o arqueólogo metodista William Albright, dos EUA, passou a ensinar os sionistas na Palestina a desenvolver a “arqueologia bíblica”. William Albright acreditava que até mesmo o Gênesis era um documento histórico.

Os sionistas seguiriam os passos tanto do metodista quanto do historiador romântico Groetz, e chegaram ao ponto de criar, no sistema universitário israelense, duas cátedras distintas de História: a História Geral e a História do Povo Judeu. Nesta última, os parâmetros eram bem menos sérios do que na historiografia convencional.

Assim, o que temos é que judeus sionistas ateus e protestantes fervorosos compartilhavam o propósito de provar que a Bíblia é um documento histórico: os primeiros, para lastrear seu projeto etno-nacionalista de Blut und Boden (sangue e solo); os segundos, para lastrear sua fé.

De posse do poder mobilizador do mito, os judeus ateus do século XX fizeram algo que só os calvinistas haviam feito até então: consideraram-se um povo especial com direito a uma Terra Prometida, espelharam-se nas conquistas militares de Josué e se dedicaram a exterminar os habitantes nativos dessa terra. Antes, a fé havia levado peregrinos, puritanos e bôeres a se enxergarem como Povo Escolhido que tinham na América e na África suas terras prometidas. As ciências arqueológicas e raciais levaram os judeus ateus a se sentirem no direito de repetir os seus supostos antepassados e varrer da Canaã bíblica os seus habitantes. Isso foi, portanto, uma curiosa influência de cristãos exercida sobre judeus ateus.

Agora vamos à influência em mão reversa: no texto anterior, vimos que os intelectuais ateus dos países protestantes têm forjado uma aliança com cristãos. Eles louvam a superioridade moral do cristianismo e, no fundo, querem simplesmente mobilizar a tal “civilização judaico-cristã ocidental” do choque de civilizações inventado por Samuel Huntington, que é o guru neocon substituto de Fukuyama.

Nisso, o mundo protestante está imitando o judaico. Afinal, o projeto sionista só alcançou densidade demográfica com a adesão dos religiosos. A religião judaica, porém, teve que mudar. Antes do sionismo, a maioria dos rabinos, baseada no Talmude da Babilônia, considerava herético querer voltar para a Terra Santa antes da volta do Messias. Com o sionismo, a heresia virou normalidade entre os judeus religiosos. Assim, pode-se dizer que eles aceitaram a liderança dos ateus supremacistas que cultuam a ciência.

Até que ponto a cristandade não seguirá um rumo semelhante?

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

Uma ideia compartilhada por antissemitas e supremacistas judaicos é a de que os judeus são um grupo racial específico que atravessa o tempo e o espaço mantendo intactas as suas características físicas e culturais, sem sofrer nenhuma influência dos gentios que os rodeiam. Não obstante, os judeus têm uma relação simbiótica com o protestantismo, marcado por uma troca de influências. O judaísmo reformado e as correntes mais exaltadas do judaísmo liberal são dois exemplos evidentes da influência protestante exercida sobre as sinagogas ocidentais.

Se o nome “Reformado” fala por si, vale explicar que, no mundo anglófono do século XIX, a vertente liberal era a oposição da vertente fundamentalista do protestantismo. Enquanto os fundamentalistas defendiam o apego à letra da Bíblia como baliza até para a ciência (tendo surgido assim o terraplanismo…), os liberais punham a ciência em primeiro lugar e questionavam toda forma de autoridade, dando plena liberdade aos fiéis para decidirem todas as questões teológicas e morais. Numa sinagoga liberal mais radical, o judeu converso decide até se quer se circuncidar ou não.

O fundamentalismo também influenciou os judeus, e de uma maneira muito estranha. O leitor já notou que os sionistas citam muito a autoridade da Bíblia? Isso é estranho por duas razões: primeiro, o sionismo, em sua origem, é um movimento formado por judeus ateus da Europa central e oriental; segundo, a Bíblia é composta por Velho e Novo Testamento, sendo somente o Velho Testamento aceito pelos judeus. Mais intuitivo seria falarem em Torá em vez de Bíblia.

Em A invenção do povo judeu, o historiador israelense Shlomo Sand explica o enigma. Na Europa do século XIX, houve a emancipação dos judeus e, ao mesmo tempo, despontaram os nacionalismos. Na Prússia, o romantismo alemão urdia a nacionalidade em torno do folclore, da mitologia e da raça. Assim, os judeus alemães estavam excluídos do nacionalismo alemão, já que suas origens, em tese, remontavam à antiga Judeia e não aos povos germânicos descritos por Tácito. Respirando esses ares, o historiador judeu prussiano Heinrich Groetz resolve fazer um nacionalismo judaico nos mesmos moldes; mas, se não há nenhum folclore respeitável (judeus germanizados desprezavam a cultura iídiche), resta a respeitabilíssima Bíblia. O Velho Testamento passa então a ser encarado como a certidão de nascimento da raça-cultura judaica, um documento ao mesmo tempo mitológico e historiográfico. A Bíblia se torna völkisch.

Somando-se a essa demanda por uma história nacional, há, ao mesmo tempo, um ambiente de exagerado otimismo com a ciência, aí incluso o racismo científico. Ateus tendem a ser cientificistas, cientificistas do século XIX tendiam a ser racistas convictos. Esse era o caso de Moses Hess, outro nome importante para o sionismo, que em Roma e Jerusalém se empenhou em afirmar uma identidade racial judaica imutável, dotada de uma excepcionalidade diante do resto da espécie humana.

Unindo história e racismo, então, os sionistas usaram a Bíblia para defender a tese de que a Palestina era o seu lar nacional, do qual foram expulsos na Antiguidade. Os judeus religiosos da época, por outro lado, não se interessavam nem pela História, nem por ciências; em vez disso, esperavam a volta do Messias e não viam sentido em estudar o passado por outras fontes que não os livros sagrados.

Ora, a comprovação da veracidade literal da Bíblia é um projeto de parte significativa do protestantismo anglófono – a parte que é fundamentalista, ou fica ao lado dos fundamentalistas quando se trata de enfrentar os liberais. Assim, já na década de 1920, o arqueólogo metodista William Albright, dos EUA, passou a ensinar os sionistas na Palestina a desenvolver a “arqueologia bíblica”. William Albright acreditava que até mesmo o Gênesis era um documento histórico.

Os sionistas seguiriam os passos tanto do metodista quanto do historiador romântico Groetz, e chegaram ao ponto de criar, no sistema universitário israelense, duas cátedras distintas de História: a História Geral e a História do Povo Judeu. Nesta última, os parâmetros eram bem menos sérios do que na historiografia convencional.

Assim, o que temos é que judeus sionistas ateus e protestantes fervorosos compartilhavam o propósito de provar que a Bíblia é um documento histórico: os primeiros, para lastrear seu projeto etno-nacionalista de Blut und Boden (sangue e solo); os segundos, para lastrear sua fé.

De posse do poder mobilizador do mito, os judeus ateus do século XX fizeram algo que só os calvinistas haviam feito até então: consideraram-se um povo especial com direito a uma Terra Prometida, espelharam-se nas conquistas militares de Josué e se dedicaram a exterminar os habitantes nativos dessa terra. Antes, a fé havia levado peregrinos, puritanos e bôeres a se enxergarem como Povo Escolhido que tinham na América e na África suas terras prometidas. As ciências arqueológicas e raciais levaram os judeus ateus a se sentirem no direito de repetir os seus supostos antepassados e varrer da Canaã bíblica os seus habitantes. Isso foi, portanto, uma curiosa influência de cristãos exercida sobre judeus ateus.

Agora vamos à influência em mão reversa: no texto anterior, vimos que os intelectuais ateus dos países protestantes têm forjado uma aliança com cristãos. Eles louvam a superioridade moral do cristianismo e, no fundo, querem simplesmente mobilizar a tal “civilização judaico-cristã ocidental” do choque de civilizações inventado por Samuel Huntington, que é o guru neocon substituto de Fukuyama.

Nisso, o mundo protestante está imitando o judaico. Afinal, o projeto sionista só alcançou densidade demográfica com a adesão dos religiosos. A religião judaica, porém, teve que mudar. Antes do sionismo, a maioria dos rabinos, baseada no Talmude da Babilônia, considerava herético querer voltar para a Terra Santa antes da volta do Messias. Com o sionismo, a heresia virou normalidade entre os judeus religiosos. Assim, pode-se dizer que eles aceitaram a liderança dos ateus supremacistas que cultuam a ciência.

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The views of individual contributors do not necessarily represent those of the Strategic Culture Foundation.

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January 1, 2025
December 30, 2024

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