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Tanto apologistas cristãos quanto ateus têm adotado uma versão nietzschiana da História antiga: gregos e romanos teriam sido guerreiros heroicos e impiedosos, até que o cristianismo surgiu como uma força contrária a essas civilizações e impôs a compaixão com os fracos. Digo que isso é uma versão nietzschiana porque se trata, simplesmente, da “moral de escravo” que Nietzsche acusava o cristianismo de introduzir no maravilhoso mundo antigo. A diferença entre o apologista cristão e o nietzschiano é somente o nome: o que Nietzsche chamava pejorativamente de moral de escravo, o apologista elogia como uma especial compaixão cristã.
Ultimamente, quem tem juntado as duas vertentes é Tom Holland, um historiador pop inglês, e um ateu ao estilo Dawkins. Esse tipo de ateu que se cansou de xingar os religiosos de burros e, diante da ameaça islâmica (real ou imaginária), passou a elogiar o cristianismo em virtude de suas qualidades civilizacionais. É uma aliança liberal entre ateus cientificistas e cristãos simpatizantes de Israel. O pano de fundo é a teoria do “choque de civilizações” de Samuel Huntington. Em resumo, depois de a profecia de Fukuyama não se concretizar (pois a Rússia e o Iraque não viraram democracias de livre mercado), Huntington o substituiu como ideólogo, afirmando que há um inevitável choque de civilizações. O problema dos russos e dos árabes é civilizacional, cultural. Se nem todos os povos aderem à democracia liberal e ao livre mercado, é porque sua civilização está em choque com a civilização judaico-cristã ocidental.
Mas voltemos ao suposto antagonismo civilizacional defendido pelos nietzschianos. Haverá alguma civilização muito antiga que revele compaixão e cuidado com os mais fracos desde o princípio? Não creio. É fato consabido que o próprio Deus da Bíblia se abrandou entre o Velho Testamento, escrito em hebraico, e o Novo Testamento, escrito em grego durante o Império Romano. Por outro lado, é fácil encontrar civilizações avançadas que, mesmo em meio à opulência e ao progresso técnico, optam por manter a desumanidade para com os mais fracos. Exemplos disso são o Egito antigo e o Império Asteca – ou ainda o avançadíssimo III Reich. O mundo greco-romano teve um abrandamento peculiar, anterior ao cristianismo. As civilizações de Sócrates e Cícero já vinham desenvolvendo uma noção universalista de bem que valoriza o homem e defende que se seja humanus com os mais fracos. Humano já era um adjetivo elogioso com os pagãos do tempo de Cícero, e tinha o mesmo significado de hoje. Assim, toda civilização antiga teve os seus tempos ásperos, mas só os greco-romanos desenvolveram um humanitarismo, do qual brotou o cristianismo.
Podemos dizer que o terreno no Império Romano estava preparado para receber a religião nova surgida em sua periferia, criada por judeus helenizados que queriam romper barreiras tribais e converter toda a humanidade. Caso o cristão queira representar a transformação moral promovida por sua religião como algo miraculoso, fará melhor em usar a história do México, seja por causa da moralidade prévia, ou do enigma científico que é a tilma do índio Juan Diego. Uma investigação da moral do Império Asteca talvez levasse os nietzschianos de plantão concluírem que o Übermensch, o hiperbóreo, tem a tez morena, e que o cristianismo levado pelos brancos lhe impôs uma moral de escravos…
Pois bem: um certo universalismo humanista não é uma coisa essencialmente cristã, já que ele antecede o cristianismo e, de certa forma, preparou-lhe o terreno; por outro lado, o cristianismo, em sua raiz, é universalista e humanista. Tanto a moral greco-romana quanto a religião cristã são excepcionais na história da humanidade, que no geral é eivada de belicosos particularismos tribais.
Ao longo da história da modernidade, houve tentativas de se livrar do cristianismo enquanto se mantinha tal universalismo. O liberalismo, o positivismo e o comunismo foram tentativas dessa natureza: um criou os Direitos Humanos, outro criou a Religião da Humanidade e outro aguardou a transformação da terra inteira no paraíso.
O que quero apontar, porém, é a tentativa de se livrar do cristianismo, transformando-o numa espécie de feitiçaria que serve a fins particulares e não tem nenhum conteúdo moral. Por certo, o calvinismo já foi muito criticado em virtude do seu exclusivismo; mas o que vemos desde o advento do televangelismo é uma redução do cristianismo a uma feitiçaria utilitária. Se a modernidade quis jogar fora o cristianismo e reter o universalismo, a pós-modernidade quer jogar fora o universalismo, ocultando o seu radicalismo por meio da manutenção de um cristianismo descristianizado. O cristianismo vem sendo, na prática, substituído por New Thought.
O New Thought Movement foi inventado nos EUA, no século XIX, por um charlatão chamado Phineas Quimby. A ideia dele é essa que nós vemos espalhada por aí de forma anônima: que nosso pensamento tem poder, então devemos pensar positivo para alcançar as coisas que desejamos. No começo, isso era voltado para a cura de doenças. Se o doente não ficasse bom, a culpa era dele, que não mentalizou direito. Se o doente ficasse bom, provava a eficácia do novo método.
Não dando certo na saúde, o New Thought fincou raízes no esoterismo, na autoajuda e… nas seitas protestantes. Já no século XIX, uma paciente de Quimby chamada Mary Baker Eddy fundou uma religião chamada Ciência Cristã, na qual a oração funciona como o pensamento positivo e é responsável pela cura. Em virtude disso, há muito tempo membros dessa igreja enfrenta processos por curandeirismo e negligência médica. De todo modo, a oração virou mandinga lá nos EUA, já no XIX, e no Brasil posterior ao televangelismo é fácil ver crentes falando que vão “profetizar” para que uma dada coisa aconteça.
Para constatar a descristianização do cristianismo, nada mais útil que observar as finalidades dos fiéis. Pelo menos no Brasil, as igrejas evangélicas já têm calendários temáticos: em distintos dias da semana, oferece-se saúde, resolução de problemas familiares ou amorosos e dinheiro. Os fiéis vão à igreja, portanto, para pedir as mesmas coisas que se pedem à cartomante ou ao feiticeiro: saúde, amor, paz familiar e dinheiro.
É usual apontar-se a influência africana nesse tipo de religião. De fato, uma coisa não exclui outra, e ao New Thought somaram-se traços do paganismo africano. Nele, é recorrente a possessão por espíritos (em História Noturna, Carlo Ginzburg observa que fora da África há a figura do xamã que visita o mundo dos mortos; na África negra, porém, há apenas a possessão por espíritos). Nos EUA, esse traço marcante africano foi ressignificado pelos pentecostais como possessão pelo Espírito Santo e caiu como uma luva em países de relevante presença negra. Em algumas áreas negras do Brasil, é possível ver evangélicos negros rodopiando ao som de tambores e falando em línguas, possuídos não por Xangô ou Oxum, mas pelo Espírito Santo…
Seja como for, nas religiões tradicionais de origem africana, há uma hierarquia sólida e ritos muito trabalhosos. Nesse novo cristianismo, há o tal fast food da fé. Mais ainda: há até a figura do “desigrejado”, já que é possível alcançar bênçãos usando do próprio pensamento positivo, i. e., “profetizando”. Os fiéis se importam tão pouco com a verdade, que escolhem suas igrejas conforme o perfil social: tem igreja de surfista, igreja de jovem que parece balada, igreja para homossexuais, igreja com nome de bairro… É oferta de serviço, e serviço pode ser ofertado por empresas concorrentes.
Assim, pela primeira vez na história da civilização ocidental, vemos se espalhar uma religião destituída de qualquer conteúdo universalista e até mesmo social – já que orar para tirar na Mega Sena ou para trazer de volta a pessoa amada são coisas pessoais, e são o máximo a que os devotos dessa religiosidade aspiram.
Destituídos de qualquer conteúdo moral, resta-lhes o utilitarismo. Assim, não é de admirar que os adeptos desse novo cristianismo sirvam de massa de manobra para ateus que querem urdir um conflito de civilizações, ou para judeus que querem cometer genocídio no Oriente Médio impunemente. A relação desses cristãos com esses judeus, aliás, é a melhor prova de que a chave de sua religiosidade é o utilitarismo. A Bíblia Scofield, por eles usada, manda que os cristãos abençoem Israel para serem abençoados – não porque Israel é bom, não porque os palestinos são maus, mas sim porque eles querem receber as tais bênçãos.
Esses cristãos amorais e individualistas estão dispostos a tudo, desde que tenham uma vida confortável. Porque o seu próprio bem-estar é a única coisa que importa, e seu Deus existe para servi-los. Foram além do calvinismo, e nem se preocupam mais em enxergar indícios do favor divino. Em vez disso, estão dispostos a comprá-lo para obter benesses que são fins em si mesmos.