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Raphael Machado
December 15, 2024
© Photo: Social media

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

Ninguém apostaria, no início de 2024, que até o final do ano cairia o governo de Bashar Al-Assad e a Síria seria tomada por organizações terroristas wahhabis. Mas foi o que aconteceu em dezembro de 2024, conforme Assad se exilava em Moscou e o Tahrir al-Sham ocupava Damasco. Os detalhes dessa queda meteórica ainda estão sendo investigados e desvendados, mas é provável que muitos fatos permaneçam ocultos por um longo tempo. As teorias sobre os eventos da queda abundam – traição de generais? desistência de Assad? acordo russo-turco-irano-israelense? – mas aquilo que é realmente importante agora sobre os eventos que testemunhamos são os interesses geopolíticos em choque na Síria.

Porque, de fato, na Síria e na queda de Assad nos deparamos com o choque entre pretensões que transcendem a soberania e o futuro da Síria enquanto Estado-nação. Rússia, Irã, China, EUA, Turquia e Israel (e ainda outras potências regionais) pensam a Síria em seus respectivos projetos e esses vários projetos podem ser ocasionalmente conciliáveis – mas usualmente se chocam violentamente, o que ficou muito mais claro agora.

Nesse sentido, a queda de Assad não representa o fim do jogo geopolítico, apenas o desdobramento de uma nova fase que precisará levar em consideração os riscos de caos e de fragmentação territorial, bem como a modificação nas relações locais de poder e as consequências da circulação de elites.

Rússia

Como um dos principais parceiros históricos da Síria, a Rússia é também o país cujos interesses foram mais significativamente afetados pela queda de Assad. Seria simples demais resumir a questão à base naval em Tartus e à base aérea em Khmeimim (na província de Latakia), mas é necessário mencioná-las por causa de sua importância como ponte para a África.

As operações russas na Líbia e na África Ocidental são dependentes das bases russas na Síria como ponto de parada para abastecimento. A perda dessas bases, portanto, significaria potencialmente uma crise nas ações da Rússia no continente africano. Não obstante, a Rússia parece estar engajada em diálogos com o novo governo em Damasco para preservar essas bases – os diálogos ainda não são conclusivos, mas a Rússia ainda permanece nelas. Ademais, é possível que a Rússia conseguisse substituir Tartus e Khmeimim por arranjos com o Líbano e talvez o Egito.

Uma outra dimensão importante na questão síria diz respeito à projeção de poder e influência da Rússia nessa região, cuja finalidade é enfrentar no Rimland a ameaça do terrorismo salafi-wahhabi para evitar que ela se aproxime do Heartland. De fato, a partir de Spykman especialmente, o enfrentamento Ocidente/Eurásia diz respeito ao controle sobre o Rimland (no caso ocidental, para fins ofensivos; no caso eurasiático, para fins defensivos), a zona costeira ou marginal que cerca o Heartland. Foi fácil para os russos perceber quando do avanço imparável dos salafistas há 10 anos que se a Síria caísse para a ameaça terrorista o país tornar-se-ia um imenso nodo de difusão internacional que alimentaria as insurgências no Cáucaso e na Ásia Central. O problema evitado com a intervenção russa anos atrás retorna agora com força. Isso é especialmente notável considerando que na nova geração do terrorismo “sírio” as principais nacionalidades estrangeiras representadas são, precisamente, chechenos, tajiques, uigures, uzbeques, quirguizes, albaneses, etc. Não é difícil prever onde eles começarão a causar problemas agora que Damasco caiu.

Um outro fator digno de nota é como a Síria tem sido objeto de disputa na geopolítica dos oleodutos e gasodutos. Como veremos em outro tópico, projetos logísticos visavam construir através da Síria um gasoduto que permitiria abastecer a Europa com gás natural, em alternativa ao fornecimento russo. É bastante claro como era do interesse russo impedir isso, já que tem sido precisamente esse fator um dos principais instrumentos de pressão sobre os países europeus. E Bashar Al-Assad foi quem precisamente bloqueou esse projeto em prol de projetos logísticos alternativos.

Em resumo, a Rússia sofreu um revés estratégico com a queda de Assad, mas o controle de danos é possível no curto prazo. No longo prazo, porém, pode vir a ser de interesse retornar à Síria, se as circunstâncias forem propícias, para enfrentar a ameaça terrorista.

Irã

A Síria era ainda mais importante para o Irã do que era para a Rússia. Desde a Revolução Islâmica do Irã, e mesmo enquanto travava sua guerra defensiva contra o Iraque, a nova elite iraniana começou a trabalhar em um novo projeto geopolítico em substituição à geopolítica atlantista de Reza Pahlavi. A nova geopolítica iraniana unia, além das considerações clássicas da geopolítica, também uma dimensão sagrada, que era, simultaneamente, tradicionalista e revolucionária. Nessa visão, o Irã realinharia o Oriente Médio para longe dos EUA por meio do fortalecimento dos movimentos políticos xiitas em um eixo que levava de Teerã a Beirute, passando por Bagdá e Damasco. O projeto ganhou tração especialmente após a queda de Saddam Hussein, o que permitiu a Teerã efetivamente firmar uma coalizão junto ao governo da Síria e as forças políticas e milicianas xiitas no Iraque e no Líbano, com a Resistência Palestina servindo como uma projeção cuja finalidade seria manter Israel em uma situação de conflito permanente aguardando um momento propício para um golpe fatídico.

A queda de Assad diante de grupos salafistas-wahhabis abertamente hostis ao Irã rompe o elo construído cuidadosamente ao longo de décadas por Teerã, efetivamente isolando o Hezbollah e a Resistência Palestina de seu suporte iraniano. Isso implica um redesenho geopolítico desfavorável que o Irã terá dificuldades para reverter ou compensar. Na prática, o Irã precisará compensar a sua perda aumentando a sua influência sobre o Iraque – o que implicará se reconciliar ou dobrar os xiitas de Muqtada al-Sadr – especialmente após as notícias de que alguns dos grupos terroristas salafistas-wahhabis na Síria veem o Iraque como o “próximo alvo”. Simultaneamente, o Irã precisará encontrar outros meios de abastecer o Hezbollah e a Resistência Palestina e, nesse sentido, uma desagregação entre os vários grupos da “oposição síria” poderia favorecer os interesses iranianos na região.

Ademais, a mudança sepulta o projeto do gasoduto Irã-Iraque-Síria, que era favorecido também pela Rússia, em benefício do projeto turco-catari, forçando Teerã a realinhar os seus projetos energéticos em um sentido vertical e para o leste (o que, na prática, já tem feito). Também nesse sentido, uma ruptura interna entre os vários grupos da oposição síria pode servir aos interesses iranianos ao impedir a construção do gasoduto turco-catari.

Na prática, o Irã, que já ofereceu uma proposta de colaboração com Damasco, terá que lidar de forma mais direta com as novas condições, fortificando o Iraque e encontrando novos parceiros políticos no território sírio para passar a disputar nos jogos de influência regionais.

Turquia

A Turquia emergiu como um dos principais vencedores com a queda de Assad. Ela não apenas era a principal força por trás do chamado “Exército Nacional Sírio” (um amontoado de milícias turcomanas e de outros grupos étnicos), mas uma das principais financiadoras do Tahrir al-Sham.

Em um nível mais imediato, é informação pública e notória que os interesses da Turquia na Síria se limitariam à região norte do país, especialmente nos territórios curdos nos quais atuam as Forças Democráticas Sírias, compostas primariamente pelas milícias das YPG (Unidades de Defesa do Povo), uma coalizão de milícias majoritariamente curdas ligadas ao Partido Comunista do Curdistão. O objetivo seria, então, de criar uma zona-tampão protegendo a Turquia de terroristas e limitando a imigração para o território turco. Para essa finalidade, a Turquia realizou as operações Escudo do Eufrates (2016), Ramo de Oliveira (2018) e Primavera de Paz (2019), além de formar em 2017 o Exército Nacional Sírio como sua força proxy no norte da Síria.

Mas em um nível mais profundo e de longo prazo, é necessário enquadrar a estratégia de Erdogan no seu projeto geopolítico neo-otomanista, que aponta para a recuperação por parte da Turquia de pelo menos parte considerável das antigas terras do Império Otomano e, ao mesmo tempo, da transformação da Turquia no núcleo de um polo geopolítico islâmico e, também, turânico. Não é casual que exatamente esta semana, após a queda do governo Assad, Erdogan discursou reivindicando Aleppo, Raqqa e até mesmo Damasco como territórios pertencentes “por direito” à Turquia. Nesse sentido, a Turquia tem diante de si algumas alternativas sobre como integrar a Síria neste projeto, provavelmente reduzindo a Síria a um “Estado-cliente” da Turquia.

Outro trunfo de Erdogan é que com a queda de Assad morre (ou, pelo menos, suspende-se) o projeto do gasoduto Irã-Iraque-Síria e volta à pauta de discussões o projeto do gasoduto turco-catari apto a levar gás à Europa, com isso enfraquecendo a influência energética da Rússia.

Israel

O outro principal beneficiário da queda de Assad é, obviamente, o Estado de Israel, cujo apoio direto e indireto aos “rebeldes sírios” (inclusive das facções mais radicais) tem sido público e notório há mais de 10 anos. De fato, Israel tem atuado consistentemente como “a Força Aérea da Al-Qaeda” na Síria, percebendo-se uma espantosa coordenação entre ataques aéreos israelenses e repentinos ataques terrestres dos grupos terroristas contra as forças de Assad.

Em primeiro lugar, a queda de Assad representou uma vitória estratégica sobre o Eixo da Resistência. Apesar da destruição de Gaza, Israel não conseguiu realmente derrotar as forças da Resistência Palestina, seguindo com as operações e sofrendo baixas diárias. No mesmo sentido, apesar de duros danos à liderança do Hezbollah, Israel não conseguiu entrar por terra no Líbano e foi forçada a recuar. Com a queda de Assad, porém, Israel conseguiu liquidar o principal meio de abastecimento tanto do Hezbollah quanto da Resistência Palestina, isolando-os do Irã (até que se crie outra via ou se contorne o problema de uma outra forma). Enquanto isso, Israel pode, inclusive, aumentar os seus esforços de destruir a Resistência Palestina e o Hezbollah com menor capacidade de interferência por parte do Irã em manter as milícias antissionistas de pé.

Mas o conflito contra a Palestina, o Líbano e a Síria é apenas uma parte de um projeto muito mais amplo já delineado no Plano Oded Yinon nos anos 80, aparecendo porém em discursos de lideranças sionistas desde já David Ben-Gurion: a construção da Grande Israel. Para parte considerável da elite israelense, o Estado de Israel não tem o tamanho que deveria ter. Especificamente segundo os setores religiosos messiânicos que compõem parte considerável do Likud e dos outros partidos conservadores ou nacionalistas israelenses, a “Terra Prometida de Israel” (Eretz Israel) tal como disposta na Torá seria muito maior do que as fronteiras do atual país. As fronteiras “reais” prometidas por Deus variam conforme o intérprete, mas as versões mais radicais de kahanistas como os ministros Bezalel Smotrich e Itmar Ben-Gvir pensam em uma Israel que vá do rio Nilo ao rio Eufrates, ou seja, do nordeste do Egito até a metade do Iraque, abarcando ainda todo o Líbano, toda a Síria, toda a Jordânia e ainda pequenos pedaços da Turquia e da Arábia Saudita. Quando da tentativa de invasão do Líbano, inclusive, o Jerusalem Times publicou uma matéria em que se defendia que o Líbano pertencia “por direito” à “Terra Prometida”. Tem sido, aliás, em obediência a esse projeto que Israel tem tentado convencer, desde o pós-11 de Setembro, os EUA a atacarem uma série de países islâmicos do Oriente Médio e norte da África.

Não é casual, portanto, que Israel está nesse momento ocupando alguns quilômetros do sul da Síria e dialogando com as milícias drusas para usá-las para a criação de uma zona-tampão em uma busca por “golanizar” mais territórios da Síria. Também tem sido parte do projeto israelense utilizar a causa curda para o fim de fragmentar os países islâmicos da região, mas este objetivo se choca com o projeto geopolítico turco e tem menos chances de prosperar hoje.

Ainda, é importante ressaltar que a queda de Assad também favorece interesses energéticos israelenses ao sepultar o gasoduto Irã-Iraque-Síria, abrindo a possibilidade de que Israel se torne um elo no fornecimento de hidrocarbonetos para a Europa – mas nisto Israel rivalizará com Turquia e Catar.

EUA

De um modo geral, é um fato que a atuação dos EUA no Oriente Médio ao longo dos últimos anos tem obedecido mais a interesses israelenses do que aos interesses nacionais estadunidenses, como bem demonstrado por John Mearsheimer e Stephen Walt em seu já clássico livro sobre o lóbi sionista.

Não obstante, para além da obediência ao lóbi sionista, os EUA veem realizados alguns interesses importantes agora na Síria.

Em primeiro lugar, a transformação da Síria em um Estado falido desintegrado privou a Rússia de um aliado relevante para a disputa geopolítica do Oriente Médio. Apesar da Rússia não ter nem comprometido tropas para tentar manter a Síria de pé a qualquer custo, nem perdido as bases de Tartus e Khmeimim, a queda de Assad abre as brechas do Rimland para apertar ainda mais o cerco contra a Rússia. Com a Síria tomada de salafistas, ademais, os EUA poderão intensificar a sua estratégia de caos e dirigir grupos insurgentes para que desestabilizem o Cáucaso, a Ásia Central e outras partes do Rimland eurasiático. No mesmo sentido, os EUA enfraqueceram o projeto geopolítico iraniano que visava transformar Teerã no núcleo do Oriente Médio ao cortar o Crescente Xiita no meio.

Complicada fica a situação do projeto curdo, até então apoiado pelos EUA, que também se interessava pela fragmentação do Oriente Médio, e com cuja parceria os EUA têm expropriado o petróleo sírio há vários anos. Os EUA terão que tomar decisões difíceis sobre permanecer ou não no nordeste da Síria, e é bem possível que, para evitar um choque com a Turquia, os EUA acabem se retirando. Donald Trump, inclusive, já deu declarações nesse sentido. Mas se talvez possa haver mudanças importantes no extrativismo estadunidense na Síria, os EUA alcançaram uma vitória ao abrir o caminho para reduzir a dependência da Europa em relação ao gás natural russo, pela possibilidade de construção do gasoduto turco-catari, já que isso aumentará a resiliência europeia diante de reviravoltas políticas derivadas da insatisfação com a crise energética causada pelas sanções.

* * *

Outros atores também devem ter seus interesses analisados, mas com máxima brevidade. A China, por exemplo, havia recém-integrado a Síria de Assad na Iniciativa Cinturão & Rota, sofrendo, portanto, uma derrota. O Catar, o principal motor da Irmandade Muçulmana, alcançou a sua vitória que culminará também na possibilidade de fortalecer o papel do Catar como potência energética em parceria com a Turquia. Países como Arábia Saudita e EAU, que chegaram a ter uma grande participação indireta na Guerra Síria se limitaram a atrair Assad para longe do Irã, mas sua capacidade atual de tirar proveito de sua queda é limitada pela iniciativa mais agressiva de outras potências.

Vemos, assim, como a Síria se converteu, de fato, em uma zona geopolítica de estilhaçamento, em que o choque entre os interesses geopolíticos de potências mundiais e regionais em vez de se encaminhar para a manutenção de uma “balança de poder”, desequilibrou repentinamente todo o cenário do Oriente Médio.

A queda de Assad e o colapso da balança de poder no Oriente Médio

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Ninguém apostaria, no início de 2024, que até o final do ano cairia o governo de Bashar Al-Assad e a Síria seria tomada por organizações terroristas wahhabis. Mas foi o que aconteceu em dezembro de 2024, conforme Assad se exilava em Moscou e o Tahrir al-Sham ocupava Damasco. Os detalhes dessa queda meteórica ainda estão sendo investigados e desvendados, mas é provável que muitos fatos permaneçam ocultos por um longo tempo. As teorias sobre os eventos da queda abundam – traição de generais? desistência de Assad? acordo russo-turco-irano-israelense? – mas aquilo que é realmente importante agora sobre os eventos que testemunhamos são os interesses geopolíticos em choque na Síria.

Porque, de fato, na Síria e na queda de Assad nos deparamos com o choque entre pretensões que transcendem a soberania e o futuro da Síria enquanto Estado-nação. Rússia, Irã, China, EUA, Turquia e Israel (e ainda outras potências regionais) pensam a Síria em seus respectivos projetos e esses vários projetos podem ser ocasionalmente conciliáveis – mas usualmente se chocam violentamente, o que ficou muito mais claro agora.

Nesse sentido, a queda de Assad não representa o fim do jogo geopolítico, apenas o desdobramento de uma nova fase que precisará levar em consideração os riscos de caos e de fragmentação territorial, bem como a modificação nas relações locais de poder e as consequências da circulação de elites.

Rússia

Como um dos principais parceiros históricos da Síria, a Rússia é também o país cujos interesses foram mais significativamente afetados pela queda de Assad. Seria simples demais resumir a questão à base naval em Tartus e à base aérea em Khmeimim (na província de Latakia), mas é necessário mencioná-las por causa de sua importância como ponte para a África.

As operações russas na Líbia e na África Ocidental são dependentes das bases russas na Síria como ponto de parada para abastecimento. A perda dessas bases, portanto, significaria potencialmente uma crise nas ações da Rússia no continente africano. Não obstante, a Rússia parece estar engajada em diálogos com o novo governo em Damasco para preservar essas bases – os diálogos ainda não são conclusivos, mas a Rússia ainda permanece nelas. Ademais, é possível que a Rússia conseguisse substituir Tartus e Khmeimim por arranjos com o Líbano e talvez o Egito.

Uma outra dimensão importante na questão síria diz respeito à projeção de poder e influência da Rússia nessa região, cuja finalidade é enfrentar no Rimland a ameaça do terrorismo salafi-wahhabi para evitar que ela se aproxime do Heartland. De fato, a partir de Spykman especialmente, o enfrentamento Ocidente/Eurásia diz respeito ao controle sobre o Rimland (no caso ocidental, para fins ofensivos; no caso eurasiático, para fins defensivos), a zona costeira ou marginal que cerca o Heartland. Foi fácil para os russos perceber quando do avanço imparável dos salafistas há 10 anos que se a Síria caísse para a ameaça terrorista o país tornar-se-ia um imenso nodo de difusão internacional que alimentaria as insurgências no Cáucaso e na Ásia Central. O problema evitado com a intervenção russa anos atrás retorna agora com força. Isso é especialmente notável considerando que na nova geração do terrorismo “sírio” as principais nacionalidades estrangeiras representadas são, precisamente, chechenos, tajiques, uigures, uzbeques, quirguizes, albaneses, etc. Não é difícil prever onde eles começarão a causar problemas agora que Damasco caiu.

Um outro fator digno de nota é como a Síria tem sido objeto de disputa na geopolítica dos oleodutos e gasodutos. Como veremos em outro tópico, projetos logísticos visavam construir através da Síria um gasoduto que permitiria abastecer a Europa com gás natural, em alternativa ao fornecimento russo. É bastante claro como era do interesse russo impedir isso, já que tem sido precisamente esse fator um dos principais instrumentos de pressão sobre os países europeus. E Bashar Al-Assad foi quem precisamente bloqueou esse projeto em prol de projetos logísticos alternativos.

Em resumo, a Rússia sofreu um revés estratégico com a queda de Assad, mas o controle de danos é possível no curto prazo. No longo prazo, porém, pode vir a ser de interesse retornar à Síria, se as circunstâncias forem propícias, para enfrentar a ameaça terrorista.

Irã

A Síria era ainda mais importante para o Irã do que era para a Rússia. Desde a Revolução Islâmica do Irã, e mesmo enquanto travava sua guerra defensiva contra o Iraque, a nova elite iraniana começou a trabalhar em um novo projeto geopolítico em substituição à geopolítica atlantista de Reza Pahlavi. A nova geopolítica iraniana unia, além das considerações clássicas da geopolítica, também uma dimensão sagrada, que era, simultaneamente, tradicionalista e revolucionária. Nessa visão, o Irã realinharia o Oriente Médio para longe dos EUA por meio do fortalecimento dos movimentos políticos xiitas em um eixo que levava de Teerã a Beirute, passando por Bagdá e Damasco. O projeto ganhou tração especialmente após a queda de Saddam Hussein, o que permitiu a Teerã efetivamente firmar uma coalizão junto ao governo da Síria e as forças políticas e milicianas xiitas no Iraque e no Líbano, com a Resistência Palestina servindo como uma projeção cuja finalidade seria manter Israel em uma situação de conflito permanente aguardando um momento propício para um golpe fatídico.

A queda de Assad diante de grupos salafistas-wahhabis abertamente hostis ao Irã rompe o elo construído cuidadosamente ao longo de décadas por Teerã, efetivamente isolando o Hezbollah e a Resistência Palestina de seu suporte iraniano. Isso implica um redesenho geopolítico desfavorável que o Irã terá dificuldades para reverter ou compensar. Na prática, o Irã precisará compensar a sua perda aumentando a sua influência sobre o Iraque – o que implicará se reconciliar ou dobrar os xiitas de Muqtada al-Sadr – especialmente após as notícias de que alguns dos grupos terroristas salafistas-wahhabis na Síria veem o Iraque como o “próximo alvo”. Simultaneamente, o Irã precisará encontrar outros meios de abastecer o Hezbollah e a Resistência Palestina e, nesse sentido, uma desagregação entre os vários grupos da “oposição síria” poderia favorecer os interesses iranianos na região.

Ademais, a mudança sepulta o projeto do gasoduto Irã-Iraque-Síria, que era favorecido também pela Rússia, em benefício do projeto turco-catari, forçando Teerã a realinhar os seus projetos energéticos em um sentido vertical e para o leste (o que, na prática, já tem feito). Também nesse sentido, uma ruptura interna entre os vários grupos da oposição síria pode servir aos interesses iranianos ao impedir a construção do gasoduto turco-catari.

Na prática, o Irã, que já ofereceu uma proposta de colaboração com Damasco, terá que lidar de forma mais direta com as novas condições, fortificando o Iraque e encontrando novos parceiros políticos no território sírio para passar a disputar nos jogos de influência regionais.

Turquia

A Turquia emergiu como um dos principais vencedores com a queda de Assad. Ela não apenas era a principal força por trás do chamado “Exército Nacional Sírio” (um amontoado de milícias turcomanas e de outros grupos étnicos), mas uma das principais financiadoras do Tahrir al-Sham.

Em um nível mais imediato, é informação pública e notória que os interesses da Turquia na Síria se limitariam à região norte do país, especialmente nos territórios curdos nos quais atuam as Forças Democráticas Sírias, compostas primariamente pelas milícias das YPG (Unidades de Defesa do Povo), uma coalizão de milícias majoritariamente curdas ligadas ao Partido Comunista do Curdistão. O objetivo seria, então, de criar uma zona-tampão protegendo a Turquia de terroristas e limitando a imigração para o território turco. Para essa finalidade, a Turquia realizou as operações Escudo do Eufrates (2016), Ramo de Oliveira (2018) e Primavera de Paz (2019), além de formar em 2017 o Exército Nacional Sírio como sua força proxy no norte da Síria.

Mas em um nível mais profundo e de longo prazo, é necessário enquadrar a estratégia de Erdogan no seu projeto geopolítico neo-otomanista, que aponta para a recuperação por parte da Turquia de pelo menos parte considerável das antigas terras do Império Otomano e, ao mesmo tempo, da transformação da Turquia no núcleo de um polo geopolítico islâmico e, também, turânico. Não é casual que exatamente esta semana, após a queda do governo Assad, Erdogan discursou reivindicando Aleppo, Raqqa e até mesmo Damasco como territórios pertencentes “por direito” à Turquia. Nesse sentido, a Turquia tem diante de si algumas alternativas sobre como integrar a Síria neste projeto, provavelmente reduzindo a Síria a um “Estado-cliente” da Turquia.

Outro trunfo de Erdogan é que com a queda de Assad morre (ou, pelo menos, suspende-se) o projeto do gasoduto Irã-Iraque-Síria e volta à pauta de discussões o projeto do gasoduto turco-catari apto a levar gás à Europa, com isso enfraquecendo a influência energética da Rússia.

Israel

O outro principal beneficiário da queda de Assad é, obviamente, o Estado de Israel, cujo apoio direto e indireto aos “rebeldes sírios” (inclusive das facções mais radicais) tem sido público e notório há mais de 10 anos. De fato, Israel tem atuado consistentemente como “a Força Aérea da Al-Qaeda” na Síria, percebendo-se uma espantosa coordenação entre ataques aéreos israelenses e repentinos ataques terrestres dos grupos terroristas contra as forças de Assad.

Em primeiro lugar, a queda de Assad representou uma vitória estratégica sobre o Eixo da Resistência. Apesar da destruição de Gaza, Israel não conseguiu realmente derrotar as forças da Resistência Palestina, seguindo com as operações e sofrendo baixas diárias. No mesmo sentido, apesar de duros danos à liderança do Hezbollah, Israel não conseguiu entrar por terra no Líbano e foi forçada a recuar. Com a queda de Assad, porém, Israel conseguiu liquidar o principal meio de abastecimento tanto do Hezbollah quanto da Resistência Palestina, isolando-os do Irã (até que se crie outra via ou se contorne o problema de uma outra forma). Enquanto isso, Israel pode, inclusive, aumentar os seus esforços de destruir a Resistência Palestina e o Hezbollah com menor capacidade de interferência por parte do Irã em manter as milícias antissionistas de pé.

Mas o conflito contra a Palestina, o Líbano e a Síria é apenas uma parte de um projeto muito mais amplo já delineado no Plano Oded Yinon nos anos 80, aparecendo porém em discursos de lideranças sionistas desde já David Ben-Gurion: a construção da Grande Israel. Para parte considerável da elite israelense, o Estado de Israel não tem o tamanho que deveria ter. Especificamente segundo os setores religiosos messiânicos que compõem parte considerável do Likud e dos outros partidos conservadores ou nacionalistas israelenses, a “Terra Prometida de Israel” (Eretz Israel) tal como disposta na Torá seria muito maior do que as fronteiras do atual país. As fronteiras “reais” prometidas por Deus variam conforme o intérprete, mas as versões mais radicais de kahanistas como os ministros Bezalel Smotrich e Itmar Ben-Gvir pensam em uma Israel que vá do rio Nilo ao rio Eufrates, ou seja, do nordeste do Egito até a metade do Iraque, abarcando ainda todo o Líbano, toda a Síria, toda a Jordânia e ainda pequenos pedaços da Turquia e da Arábia Saudita. Quando da tentativa de invasão do Líbano, inclusive, o Jerusalem Times publicou uma matéria em que se defendia que o Líbano pertencia “por direito” à “Terra Prometida”. Tem sido, aliás, em obediência a esse projeto que Israel tem tentado convencer, desde o pós-11 de Setembro, os EUA a atacarem uma série de países islâmicos do Oriente Médio e norte da África.

Não é casual, portanto, que Israel está nesse momento ocupando alguns quilômetros do sul da Síria e dialogando com as milícias drusas para usá-las para a criação de uma zona-tampão em uma busca por “golanizar” mais territórios da Síria. Também tem sido parte do projeto israelense utilizar a causa curda para o fim de fragmentar os países islâmicos da região, mas este objetivo se choca com o projeto geopolítico turco e tem menos chances de prosperar hoje.

Ainda, é importante ressaltar que a queda de Assad também favorece interesses energéticos israelenses ao sepultar o gasoduto Irã-Iraque-Síria, abrindo a possibilidade de que Israel se torne um elo no fornecimento de hidrocarbonetos para a Europa – mas nisto Israel rivalizará com Turquia e Catar.

EUA

De um modo geral, é um fato que a atuação dos EUA no Oriente Médio ao longo dos últimos anos tem obedecido mais a interesses israelenses do que aos interesses nacionais estadunidenses, como bem demonstrado por John Mearsheimer e Stephen Walt em seu já clássico livro sobre o lóbi sionista.

Não obstante, para além da obediência ao lóbi sionista, os EUA veem realizados alguns interesses importantes agora na Síria.

Em primeiro lugar, a transformação da Síria em um Estado falido desintegrado privou a Rússia de um aliado relevante para a disputa geopolítica do Oriente Médio. Apesar da Rússia não ter nem comprometido tropas para tentar manter a Síria de pé a qualquer custo, nem perdido as bases de Tartus e Khmeimim, a queda de Assad abre as brechas do Rimland para apertar ainda mais o cerco contra a Rússia. Com a Síria tomada de salafistas, ademais, os EUA poderão intensificar a sua estratégia de caos e dirigir grupos insurgentes para que desestabilizem o Cáucaso, a Ásia Central e outras partes do Rimland eurasiático. No mesmo sentido, os EUA enfraqueceram o projeto geopolítico iraniano que visava transformar Teerã no núcleo do Oriente Médio ao cortar o Crescente Xiita no meio.

Complicada fica a situação do projeto curdo, até então apoiado pelos EUA, que também se interessava pela fragmentação do Oriente Médio, e com cuja parceria os EUA têm expropriado o petróleo sírio há vários anos. Os EUA terão que tomar decisões difíceis sobre permanecer ou não no nordeste da Síria, e é bem possível que, para evitar um choque com a Turquia, os EUA acabem se retirando. Donald Trump, inclusive, já deu declarações nesse sentido. Mas se talvez possa haver mudanças importantes no extrativismo estadunidense na Síria, os EUA alcançaram uma vitória ao abrir o caminho para reduzir a dependência da Europa em relação ao gás natural russo, pela possibilidade de construção do gasoduto turco-catari, já que isso aumentará a resiliência europeia diante de reviravoltas políticas derivadas da insatisfação com a crise energética causada pelas sanções.

* * *

Outros atores também devem ter seus interesses analisados, mas com máxima brevidade. A China, por exemplo, havia recém-integrado a Síria de Assad na Iniciativa Cinturão & Rota, sofrendo, portanto, uma derrota. O Catar, o principal motor da Irmandade Muçulmana, alcançou a sua vitória que culminará também na possibilidade de fortalecer o papel do Catar como potência energética em parceria com a Turquia. Países como Arábia Saudita e EAU, que chegaram a ter uma grande participação indireta na Guerra Síria se limitaram a atrair Assad para longe do Irã, mas sua capacidade atual de tirar proveito de sua queda é limitada pela iniciativa mais agressiva de outras potências.

Vemos, assim, como a Síria se converteu, de fato, em uma zona geopolítica de estilhaçamento, em que o choque entre os interesses geopolíticos de potências mundiais e regionais em vez de se encaminhar para a manutenção de uma “balança de poder”, desequilibrou repentinamente todo o cenário do Oriente Médio.

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

Ninguém apostaria, no início de 2024, que até o final do ano cairia o governo de Bashar Al-Assad e a Síria seria tomada por organizações terroristas wahhabis. Mas foi o que aconteceu em dezembro de 2024, conforme Assad se exilava em Moscou e o Tahrir al-Sham ocupava Damasco. Os detalhes dessa queda meteórica ainda estão sendo investigados e desvendados, mas é provável que muitos fatos permaneçam ocultos por um longo tempo. As teorias sobre os eventos da queda abundam – traição de generais? desistência de Assad? acordo russo-turco-irano-israelense? – mas aquilo que é realmente importante agora sobre os eventos que testemunhamos são os interesses geopolíticos em choque na Síria.

Porque, de fato, na Síria e na queda de Assad nos deparamos com o choque entre pretensões que transcendem a soberania e o futuro da Síria enquanto Estado-nação. Rússia, Irã, China, EUA, Turquia e Israel (e ainda outras potências regionais) pensam a Síria em seus respectivos projetos e esses vários projetos podem ser ocasionalmente conciliáveis – mas usualmente se chocam violentamente, o que ficou muito mais claro agora.

Nesse sentido, a queda de Assad não representa o fim do jogo geopolítico, apenas o desdobramento de uma nova fase que precisará levar em consideração os riscos de caos e de fragmentação territorial, bem como a modificação nas relações locais de poder e as consequências da circulação de elites.

Rússia

Como um dos principais parceiros históricos da Síria, a Rússia é também o país cujos interesses foram mais significativamente afetados pela queda de Assad. Seria simples demais resumir a questão à base naval em Tartus e à base aérea em Khmeimim (na província de Latakia), mas é necessário mencioná-las por causa de sua importância como ponte para a África.

As operações russas na Líbia e na África Ocidental são dependentes das bases russas na Síria como ponto de parada para abastecimento. A perda dessas bases, portanto, significaria potencialmente uma crise nas ações da Rússia no continente africano. Não obstante, a Rússia parece estar engajada em diálogos com o novo governo em Damasco para preservar essas bases – os diálogos ainda não são conclusivos, mas a Rússia ainda permanece nelas. Ademais, é possível que a Rússia conseguisse substituir Tartus e Khmeimim por arranjos com o Líbano e talvez o Egito.

Uma outra dimensão importante na questão síria diz respeito à projeção de poder e influência da Rússia nessa região, cuja finalidade é enfrentar no Rimland a ameaça do terrorismo salafi-wahhabi para evitar que ela se aproxime do Heartland. De fato, a partir de Spykman especialmente, o enfrentamento Ocidente/Eurásia diz respeito ao controle sobre o Rimland (no caso ocidental, para fins ofensivos; no caso eurasiático, para fins defensivos), a zona costeira ou marginal que cerca o Heartland. Foi fácil para os russos perceber quando do avanço imparável dos salafistas há 10 anos que se a Síria caísse para a ameaça terrorista o país tornar-se-ia um imenso nodo de difusão internacional que alimentaria as insurgências no Cáucaso e na Ásia Central. O problema evitado com a intervenção russa anos atrás retorna agora com força. Isso é especialmente notável considerando que na nova geração do terrorismo “sírio” as principais nacionalidades estrangeiras representadas são, precisamente, chechenos, tajiques, uigures, uzbeques, quirguizes, albaneses, etc. Não é difícil prever onde eles começarão a causar problemas agora que Damasco caiu.

Um outro fator digno de nota é como a Síria tem sido objeto de disputa na geopolítica dos oleodutos e gasodutos. Como veremos em outro tópico, projetos logísticos visavam construir através da Síria um gasoduto que permitiria abastecer a Europa com gás natural, em alternativa ao fornecimento russo. É bastante claro como era do interesse russo impedir isso, já que tem sido precisamente esse fator um dos principais instrumentos de pressão sobre os países europeus. E Bashar Al-Assad foi quem precisamente bloqueou esse projeto em prol de projetos logísticos alternativos.

Em resumo, a Rússia sofreu um revés estratégico com a queda de Assad, mas o controle de danos é possível no curto prazo. No longo prazo, porém, pode vir a ser de interesse retornar à Síria, se as circunstâncias forem propícias, para enfrentar a ameaça terrorista.

Irã

A Síria era ainda mais importante para o Irã do que era para a Rússia. Desde a Revolução Islâmica do Irã, e mesmo enquanto travava sua guerra defensiva contra o Iraque, a nova elite iraniana começou a trabalhar em um novo projeto geopolítico em substituição à geopolítica atlantista de Reza Pahlavi. A nova geopolítica iraniana unia, além das considerações clássicas da geopolítica, também uma dimensão sagrada, que era, simultaneamente, tradicionalista e revolucionária. Nessa visão, o Irã realinharia o Oriente Médio para longe dos EUA por meio do fortalecimento dos movimentos políticos xiitas em um eixo que levava de Teerã a Beirute, passando por Bagdá e Damasco. O projeto ganhou tração especialmente após a queda de Saddam Hussein, o que permitiu a Teerã efetivamente firmar uma coalizão junto ao governo da Síria e as forças políticas e milicianas xiitas no Iraque e no Líbano, com a Resistência Palestina servindo como uma projeção cuja finalidade seria manter Israel em uma situação de conflito permanente aguardando um momento propício para um golpe fatídico.

A queda de Assad diante de grupos salafistas-wahhabis abertamente hostis ao Irã rompe o elo construído cuidadosamente ao longo de décadas por Teerã, efetivamente isolando o Hezbollah e a Resistência Palestina de seu suporte iraniano. Isso implica um redesenho geopolítico desfavorável que o Irã terá dificuldades para reverter ou compensar. Na prática, o Irã precisará compensar a sua perda aumentando a sua influência sobre o Iraque – o que implicará se reconciliar ou dobrar os xiitas de Muqtada al-Sadr – especialmente após as notícias de que alguns dos grupos terroristas salafistas-wahhabis na Síria veem o Iraque como o “próximo alvo”. Simultaneamente, o Irã precisará encontrar outros meios de abastecer o Hezbollah e a Resistência Palestina e, nesse sentido, uma desagregação entre os vários grupos da “oposição síria” poderia favorecer os interesses iranianos na região.

Ademais, a mudança sepulta o projeto do gasoduto Irã-Iraque-Síria, que era favorecido também pela Rússia, em benefício do projeto turco-catari, forçando Teerã a realinhar os seus projetos energéticos em um sentido vertical e para o leste (o que, na prática, já tem feito). Também nesse sentido, uma ruptura interna entre os vários grupos da oposição síria pode servir aos interesses iranianos ao impedir a construção do gasoduto turco-catari.

Na prática, o Irã, que já ofereceu uma proposta de colaboração com Damasco, terá que lidar de forma mais direta com as novas condições, fortificando o Iraque e encontrando novos parceiros políticos no território sírio para passar a disputar nos jogos de influência regionais.

Turquia

A Turquia emergiu como um dos principais vencedores com a queda de Assad. Ela não apenas era a principal força por trás do chamado “Exército Nacional Sírio” (um amontoado de milícias turcomanas e de outros grupos étnicos), mas uma das principais financiadoras do Tahrir al-Sham.

Em um nível mais imediato, é informação pública e notória que os interesses da Turquia na Síria se limitariam à região norte do país, especialmente nos territórios curdos nos quais atuam as Forças Democráticas Sírias, compostas primariamente pelas milícias das YPG (Unidades de Defesa do Povo), uma coalizão de milícias majoritariamente curdas ligadas ao Partido Comunista do Curdistão. O objetivo seria, então, de criar uma zona-tampão protegendo a Turquia de terroristas e limitando a imigração para o território turco. Para essa finalidade, a Turquia realizou as operações Escudo do Eufrates (2016), Ramo de Oliveira (2018) e Primavera de Paz (2019), além de formar em 2017 o Exército Nacional Sírio como sua força proxy no norte da Síria.

Mas em um nível mais profundo e de longo prazo, é necessário enquadrar a estratégia de Erdogan no seu projeto geopolítico neo-otomanista, que aponta para a recuperação por parte da Turquia de pelo menos parte considerável das antigas terras do Império Otomano e, ao mesmo tempo, da transformação da Turquia no núcleo de um polo geopolítico islâmico e, também, turânico. Não é casual que exatamente esta semana, após a queda do governo Assad, Erdogan discursou reivindicando Aleppo, Raqqa e até mesmo Damasco como territórios pertencentes “por direito” à Turquia. Nesse sentido, a Turquia tem diante de si algumas alternativas sobre como integrar a Síria neste projeto, provavelmente reduzindo a Síria a um “Estado-cliente” da Turquia.

Outro trunfo de Erdogan é que com a queda de Assad morre (ou, pelo menos, suspende-se) o projeto do gasoduto Irã-Iraque-Síria e volta à pauta de discussões o projeto do gasoduto turco-catari apto a levar gás à Europa, com isso enfraquecendo a influência energética da Rússia.

Israel

O outro principal beneficiário da queda de Assad é, obviamente, o Estado de Israel, cujo apoio direto e indireto aos “rebeldes sírios” (inclusive das facções mais radicais) tem sido público e notório há mais de 10 anos. De fato, Israel tem atuado consistentemente como “a Força Aérea da Al-Qaeda” na Síria, percebendo-se uma espantosa coordenação entre ataques aéreos israelenses e repentinos ataques terrestres dos grupos terroristas contra as forças de Assad.

Em primeiro lugar, a queda de Assad representou uma vitória estratégica sobre o Eixo da Resistência. Apesar da destruição de Gaza, Israel não conseguiu realmente derrotar as forças da Resistência Palestina, seguindo com as operações e sofrendo baixas diárias. No mesmo sentido, apesar de duros danos à liderança do Hezbollah, Israel não conseguiu entrar por terra no Líbano e foi forçada a recuar. Com a queda de Assad, porém, Israel conseguiu liquidar o principal meio de abastecimento tanto do Hezbollah quanto da Resistência Palestina, isolando-os do Irã (até que se crie outra via ou se contorne o problema de uma outra forma). Enquanto isso, Israel pode, inclusive, aumentar os seus esforços de destruir a Resistência Palestina e o Hezbollah com menor capacidade de interferência por parte do Irã em manter as milícias antissionistas de pé.

Mas o conflito contra a Palestina, o Líbano e a Síria é apenas uma parte de um projeto muito mais amplo já delineado no Plano Oded Yinon nos anos 80, aparecendo porém em discursos de lideranças sionistas desde já David Ben-Gurion: a construção da Grande Israel. Para parte considerável da elite israelense, o Estado de Israel não tem o tamanho que deveria ter. Especificamente segundo os setores religiosos messiânicos que compõem parte considerável do Likud e dos outros partidos conservadores ou nacionalistas israelenses, a “Terra Prometida de Israel” (Eretz Israel) tal como disposta na Torá seria muito maior do que as fronteiras do atual país. As fronteiras “reais” prometidas por Deus variam conforme o intérprete, mas as versões mais radicais de kahanistas como os ministros Bezalel Smotrich e Itmar Ben-Gvir pensam em uma Israel que vá do rio Nilo ao rio Eufrates, ou seja, do nordeste do Egito até a metade do Iraque, abarcando ainda todo o Líbano, toda a Síria, toda a Jordânia e ainda pequenos pedaços da Turquia e da Arábia Saudita. Quando da tentativa de invasão do Líbano, inclusive, o Jerusalem Times publicou uma matéria em que se defendia que o Líbano pertencia “por direito” à “Terra Prometida”. Tem sido, aliás, em obediência a esse projeto que Israel tem tentado convencer, desde o pós-11 de Setembro, os EUA a atacarem uma série de países islâmicos do Oriente Médio e norte da África.

Não é casual, portanto, que Israel está nesse momento ocupando alguns quilômetros do sul da Síria e dialogando com as milícias drusas para usá-las para a criação de uma zona-tampão em uma busca por “golanizar” mais territórios da Síria. Também tem sido parte do projeto israelense utilizar a causa curda para o fim de fragmentar os países islâmicos da região, mas este objetivo se choca com o projeto geopolítico turco e tem menos chances de prosperar hoje.

Ainda, é importante ressaltar que a queda de Assad também favorece interesses energéticos israelenses ao sepultar o gasoduto Irã-Iraque-Síria, abrindo a possibilidade de que Israel se torne um elo no fornecimento de hidrocarbonetos para a Europa – mas nisto Israel rivalizará com Turquia e Catar.

EUA

De um modo geral, é um fato que a atuação dos EUA no Oriente Médio ao longo dos últimos anos tem obedecido mais a interesses israelenses do que aos interesses nacionais estadunidenses, como bem demonstrado por John Mearsheimer e Stephen Walt em seu já clássico livro sobre o lóbi sionista.

Não obstante, para além da obediência ao lóbi sionista, os EUA veem realizados alguns interesses importantes agora na Síria.

Em primeiro lugar, a transformação da Síria em um Estado falido desintegrado privou a Rússia de um aliado relevante para a disputa geopolítica do Oriente Médio. Apesar da Rússia não ter nem comprometido tropas para tentar manter a Síria de pé a qualquer custo, nem perdido as bases de Tartus e Khmeimim, a queda de Assad abre as brechas do Rimland para apertar ainda mais o cerco contra a Rússia. Com a Síria tomada de salafistas, ademais, os EUA poderão intensificar a sua estratégia de caos e dirigir grupos insurgentes para que desestabilizem o Cáucaso, a Ásia Central e outras partes do Rimland eurasiático. No mesmo sentido, os EUA enfraqueceram o projeto geopolítico iraniano que visava transformar Teerã no núcleo do Oriente Médio ao cortar o Crescente Xiita no meio.

Complicada fica a situação do projeto curdo, até então apoiado pelos EUA, que também se interessava pela fragmentação do Oriente Médio, e com cuja parceria os EUA têm expropriado o petróleo sírio há vários anos. Os EUA terão que tomar decisões difíceis sobre permanecer ou não no nordeste da Síria, e é bem possível que, para evitar um choque com a Turquia, os EUA acabem se retirando. Donald Trump, inclusive, já deu declarações nesse sentido. Mas se talvez possa haver mudanças importantes no extrativismo estadunidense na Síria, os EUA alcançaram uma vitória ao abrir o caminho para reduzir a dependência da Europa em relação ao gás natural russo, pela possibilidade de construção do gasoduto turco-catari, já que isso aumentará a resiliência europeia diante de reviravoltas políticas derivadas da insatisfação com a crise energética causada pelas sanções.

* * *

Outros atores também devem ter seus interesses analisados, mas com máxima brevidade. A China, por exemplo, havia recém-integrado a Síria de Assad na Iniciativa Cinturão & Rota, sofrendo, portanto, uma derrota. O Catar, o principal motor da Irmandade Muçulmana, alcançou a sua vitória que culminará também na possibilidade de fortalecer o papel do Catar como potência energética em parceria com a Turquia. Países como Arábia Saudita e EAU, que chegaram a ter uma grande participação indireta na Guerra Síria se limitaram a atrair Assad para longe do Irã, mas sua capacidade atual de tirar proveito de sua queda é limitada pela iniciativa mais agressiva de outras potências.

Vemos, assim, como a Síria se converteu, de fato, em uma zona geopolítica de estilhaçamento, em que o choque entre os interesses geopolíticos de potências mundiais e regionais em vez de se encaminhar para a manutenção de uma “balança de poder”, desequilibrou repentinamente todo o cenário do Oriente Médio.

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