O Brasil precisa integrar efetivamente a América do Sul e aprimorar suas capacidades militares se quiser começar a falar a sério em “soberania”.
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Desde o anúncio das tarifas trumpistas contra o Brasil não há palavra mais repetida do que “soberania”. O Presidente Lula insiste que Trump “não pode” fazer isso porque o Brasil é “soberano” e que, portanto, decide sobre suas questões internas (como o caso judicial de Bolsonaro) por conta própria, sem prestar contas a qualquer outro país.
O aparato de propaganda do governo produz materiais gráficos enfatizando a “soberania brasileira” (cujos símbolos, aparentemente, seriam o Banco Itaú, o Bolsa-Família e as capivaras) e os bolsonaristas são criticados como “traidores” ao buscarem submeter o Brasil aos EUA, negando essa “soberania”.
O que fica claro é que o termo “soberania” é tomado como algo dado, uma qualidade de que o Brasil seria possuidor em si, independentemente de quaisquer circunstâncias. A soberania seria uma qualidade invariável do Brasil como nação entre outras nações.
Bem, existem duas maneiras de refletir sobre a soberania.
Uma pensa a soberania como uma prerrogativa especial de que estaria imbuída uma figura ou instituição perante outras, no interior do sistema político-jurídico de uma politeia. A outra pensa a soberania como uma qualidade de “igualdade” dos Estados-nações perante outros Estados-nações no sistema internacional.
A primeira não nos interessa aqui porque trata-se aí do tema sobre “quem tem a última palavra” dentro de uma politeia; e não é disso que se está falando quando se diz que “o Brasil é um país soberano”.
Quanto ao segundo tipo de soberania há uma contradição fundamental. Pensa-se a soberania — como já dito — como um “dado”, uma qualidade essencial inata às nações em um sistema internacional justo e igualitário no qual cada Estado-nação equivale a um “indivíduo livre”. Mas o que acontece quando um Estado-nação de fato interfere na “liberdade” de um outro Estado-nação e nada pode impedi-lo?
Onde está, então, a soberania?
O primeiro problema, portanto, é ver a soberania como um “ser” e não um “dever ser” — como uma qualidade permanente, dada, gratuita, e não como uma meta a ser buscada, como um objetivo que está sempre em questão, sujeito a uma tensão permanente das próprias forças.
Esse problema é típico das doutrinas contemporâneas de Relações Internacionais. Nem a escola realista está livre do erro de conceber o Estado-nação como o equivalente geopolítico do “indivíduo” hobbesiano.
E esse tipo de posição sempre se depara com o problema prático do “mas e quando um Estado de fato interfere em outro?”. Sem uma resposta satisfatória a “soberania” vira conceito vazio.
E a única resposta satisfatória é, precisamente, a que recoloca a “soberania” como algo inconstante, como um fator histórico, que se pode incrementar ou diluir, conquistar ou perder.
Neste caso, se devolvermos a soberania a uma noção de que trata-se de uma capacidade de garantir um grau suficiente de autonomia na esfera internacional, então soberania transforma-se em sinônimo de força ou poder. “Soberania” é o grau de poder necessário para que um país seja concretamente autônomo em relação aos outros países do sistema internacional.
A consequência necessária dessa perspectiva sobre soberania é de que, de fato, há países que são soberanos e há países que não são soberanos. Na verdade, talvez apenas uma minoria de países possa ser considerada soberana enquanto a massa de países do mundo padeceria de uma insuficiência de poder que faria com que ela dependesse sobremaneira desses poucos países soberanos.
Agora, quando se leva em consideração este tópico sob esta perspectiva, ainda considero atual o conceito de “umbral de poder”, do geopolitólogo argentino Marcelo Gullo.
Segundo Gullo, o “umbral de poder” é o nível de poder necessário para que um país possa ser considerado soberano. Mas o “umbral de poder” é um conceito histórico e, portanto, está sempre mudando. Quando alguns países do mundo cruzam um umbral, passa-se algum tempo e um deles estende o limiar de poder necessário para garantir a soberania, deixando os outros para trás. Assim, existiria uma “hierarquia de soberania” — que não é outra coisa que uma “hierarquia de poder”.
Gullo analisa o tema com um enfoque na Modernidade para classificar os vários umbrais de poder e, portanto, como se desdobra a “corrida” por soberania.
Segundo ele, o primeiro umbral de poder seria a centralização burocrática, ou seja, a superação do feudalismo por Estados dotados de um aparato burocrático suficientemente centralizado a ponto de ser capaz de mobilizar as forças totais da politeia para fins estratégicos de longo prazo. A conquista desse nível de poder demarca certos países dos séculos XIV-XV como soberanos — por coincidência, quase sempre os mesmos que foram vanguarda dos Descobrimentos. As cidades-estado italianas, incapazes de promoverem a unificação peninsular, caem sob a hegemonia dos Estados burocráticos como Espanha e França.
O segundo umbral de poder é a industrialização a partir da conclusão da Revolução Industrial pelos ingleses. A capacidade de mobilização das potências nacionais atinge um novo patamar com as novas máquinas e matrizes energéticas. A Inglaterra, então, deixa para trás de si Portugal e Espanha, e o pressuposto geopolítico do século XIX passa a ser a busca pela industrialização. Aos poucos, França, a Alemanha unificada e o Japão vão cruzando esse limiar.
Mas enquanto os países retardatários mal alcançavam o novo umbral de poder, os EUA completavam a Marcha para o Oeste, superando a figura do Estado-Nação com a figura do Estado-Continente. Os EUA — chegados tardiamente na disputa — foram alcançando os estágios de poder pretéritos simultaneamente a uma arrancada rumo a um novo patamar de poder. A partir desse momento, os EUA eram um Estado-Continente industrial, deixando para trás de si Inglaterra, França, Alemanha e outros. Os “impérios” coloniais internacionais não eram capazes de fazer frente ao Estado-Continente porque este concentrava em um espaço contíguo toda a sua potencialidade, enquanto os “impérios” coloniais se estendiam como entrepostos distribuídos entre vários continentes e, de um modo geral, não eram objeto de desenvolvimento e mobilização no mesmo patamar que a metrópole. A gradual ocupação efetiva da Sibéria pela URSS — junto à aceleração stalinista — permite a Moscou alcançar os EUA nesse novo patamar. O expansionismo alemão visava permitir a Berlim transformar a Europa no seu Estado-Continente, mas os alemães são barrados pela aliança Washington-Moscou.
Não satisfeitos, os EUA alguns anos depois esticam ainda mais o umbral de poder, no momento em que se tornam potência nuclear. A partir de então, “soberania” significa efetivamente a posse de armas nucleares, armamento dotado de um poder dissuasório suficiente a ponto de permitir a seu possuidor um nível superior de autonomia no sistema internacional. Coincidentemente, a formação do Conselho de Segurança da ONU consagra este umbral de poder ao abrigar como membros permanentes precisamente os primeiros países a disporem de armas nucleares.
De um modo geral, esses são os patamares alcançados, mas evidentemente debate-se sobre os novos umbrais de poder e quais eles poderiam ser: IA, biotecnologia, nanotecnologia, conquista espacial, etc.
É interessante que alguns países alcançam determinados umbrais de poder sem alcançar um anterior. Por exemplo, Israel e Coreia do Norte possuem armas nucleares, mas não possuem extensão continental. Assim, ao mesmo tempo em que são países mais soberanos que a maioria, são parcialmente dependentes de outros países em alguns setores da economia.
A tese do professor Gullo é interessante, entre outros motivos, porque confirma o imperativo continental. A era do Estado-nação acabou e os países que quiserem ser soberanos precisam — por conquista ou integração — expandir suas fronteiras até alcançar escala suficiente para garantir autossuficiência. Ao mesmo tempo, demonstra que qualquer discurso sobre “soberania” sem busca por poder militar (o que, em alguns casos, pode significar “armas nucleares”) não passa de falatório, palavras vazias para fins de propaganda.
O Brasil precisa integrar efetivamente a América do Sul e aprimorar suas capacidades militares se quiser começar a falar a sério em “soberania”. E isso será apenas o primeiro passo porque China e EUA (num primeiro plano) e Rússia (num segundo plano) já avançam para dar um novo salto de poder.