Essa história é uma espécie de reductio ad absurdum do liberalismo. Foi essa ideologia, e não outra coisa, que desencadeou essa série de acontecimentos.
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Esta semana, trombei com a matéria intitulada “Templo satânico abre clínica de aborto no Maine e manda as mulheres entoarem cânticos maléficos que celebram a morte de bebês”. A matéria tem um bode com um pentagrama para ilustrá-la e é de um site pró-vida chamado Life News. Noutros tempos, eu veria uma chamada dessas e pensaria que se trata de uma invenção daquele tipo de evangélico que inventa que há cânticos satânicos numa porção de músicas pop quando ouvidas de trás para frente. Mas estamos em 2025, o ano em que é anticientífico e criminoso dizer que mulheres não têm pênis.
A matéria do site temático traz como fonte uma matéria de um site de notícias locais do Maine. Lá, chegamos à burocracia da coisa: existe um templo satanista em Salém, Massachussets, que em 2019 conseguiu se cadastrar perante a receita como entidade religiosa isenta. De fato, se todas as religiões são iguais perante o Estado liberal, discriminar os satanistas seria uma injustiça. O nome da distinta entidade é The Satanic Temple (O Templo Satânico), abreviado como TST.
Assim como igrejas têm hospitais filantrópicos, o TST tem o TST Health (TST Saúde), por meio do qual “cuidados religiosos gratuitos de tele-aborto medicamentoso”. A parte do teleaborto, infelizmente, eu sei o que é. Consiste em dar umas pílulas abortivas a uma grávida e despachá-la para casa, onde irá ingerir as pílulas e correr o risco de sangrar até a morte. Se ela morrer, ela pode avisar depois numa consulta virtual. No Brasil, durante a pandemia, um hospital universitário começou a promover a prática à revelia da lei e, felizmente, foi coibido.
Um folheto do TST Health explica que “o ritual serve para ajudar na afirmação da sua decisão e afastar os efeitos da perseguição injusta, que podem fazer com que se desvie das trilhas do raciocínio científico e do livre arbítrio que os satanistas se empenham em representar.” Quanto aos preparativos do ritual, o folheto sugere “revisar a segurança, as alegações refutadas e a realidade científica relativa ao aborto. Você pode também escolher ler histórias ou ouvir podcasts sobre pessoas que fizeram grandes sacrifícios na luta para estabelecer os direitos reprodutivos que temos hoje. Essas histórias podem ser inspiradoras e subjugar os estigmas que você pode sentir por parte daqueles que se opõem ao aborto.”
Em que consiste o ritual? Recitar dois princípios do Templo Satânico e uma “afirmação pessoal”. Um princípio é o III, segundo o qual “o corpo de alguém é inviolável, sujeito somente à própria vontade”, e o outro é o V, segundo o qual “as crenças devem se adaptar ao melhor entendimento científico do mundo; jamais se devem distorcer fatos científicos para adaptá-los às crenças pessoais.” Já a afirmação pessoal é a seguinte: “Pelo meu corpo, / meu sangue / Pela minha vontade, / está feito.”
No final das contas, não há cânticos. Há apenas a leitura de princípios e de uma espécie de oração. Portanto eu poderia fazer uma matéria de fact-checking chamativa, alegando na manchete que o site fundamentalista religioso mentiu. No corpo do texto, o leitor descobriria que, afinal, um templo satanista apenas abriu uma clínica de aborto, mas lá não se entoam cânticos de forma alguma. Ufa! O leitor pode respirar aliviado.
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Essa história é uma espécie de reductio ad absurdum do liberalismo. Foi essa ideologia, e não outra coisa, que desencadeou essa série de acontecimentos.
Desde a Antiguidade, a Europa Ocidental tinha religião de Estado. No Império Romano, cultuava-se um panteão romano estendido para caberem todos os deuses – fato que incomodava apenas os judeus, que acreditavam na existência de somente um deus. Com o cristianismo, a Europa Ocidental terminou a Antiguidade e atravessou a Idade Média com uma religião supranacional, o catolicismo, e trouxe-a para a maior parte da América. A Reforma protestante significou, no começo, a criação de igrejas nacionais ou com poderes sobre principados. Isso não é à toa: a religião determina o que é o bem comum e quais são as normas morais aceitáveis. A política, referente à pólis, é por natureza pública; normas morais são obviamente públicas. Possivelmente nenhum político europeu pensou em criar um Estado no qual a moral fosse uma coisa privada, e a religião idem, antes de Cromwell.
Como vimos noutro texto, esse puritano estabeleceu uma peculiar liberdade de culto (todo cristão ou judeu é livre, menos os cristãos das religiões majoritárias). Seu convite aos judeus, com direito à instalação de um sinédrio (que submete os judeus a um tribunal privado) chocou os ingleses à época, porque era impensável admitir uma moralidade anti-cristã no seio social. No entanto, a filosofia social de Cromwell era aquela do seu secretário Thomas Hobbes: o homem é o lobo do homem, e o Leviatã – que é literalmente um demônio – é aquele que subjuga a todos e, pela ameaça, impede a guerra. Nada de coesão social, nem de unidade de valores.
Com o advento da Revolução Francesa, que foi uma revolução liberal, o anticristianismo era a posição institucional explícita. Tanto no mundo laico cientificista quanto no mundo protestante, a ciência passou a ser a avalizadora da autoridade. Com o tempo, a coisa tomou conta do mundo católico também, e todo o Ocidente se liberalizou. O Estado é neutro, religião é algo subjetivo e privado, e no âmbito público vale a autoridade da ciência. Assim, não é de admirar que um templo satanista apele à ciência para justificar o aborto. Se a ciência agora diz que mulheres têm pênis, dizer que um feto é mero sangue materno é café pequeno. (Aliás, a página do templo não especifica o sexo do indivíduo grávido, e tem um botão em espanhol escrito “estoy embarazade”, ou seja, em gênero neutro.)
Dessa história toda, o mais surpreendente é que a capa do magnum opus de Hobbes já entregava tudo. Um homem com o rosto similar ao de Cromwell, segurando uma espada, erguia-se sobre terras e homens. Seu nome era Leviatã, e no topo reproduzia-se em latim uma citação bíblica: Non est potestas super terram quae comparetur ei. Iob 41,24. Ou: Não há poder sobre a terra que se compare a ele. Ao que parece, os puritanos desistiram de criar uma teocracia e, após lerem mil vezes a Bíblia, entronizaram a criatura mais poderosa que conseguiram encontrar: um grande demônio, o Leviatã do livro de Jó. Esperemos que alguém abra nos EUA a Igreja de Leviatã.