Se os wokes fossem capazes de estudar questões morais a sério, perceberiam que a ética de Hume contém um pilar do liberalismo e do utilitarismo.
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Os acadêmicos wokes cancelaram a obra de David Hume por causa de uma nota de rodapé na qual ele expressa suas dúvidas quanto às capacidades intelectuais dos negros. Dado que o cético escocês, não sem razão, se recusava a acreditar em relatos vindos do Novo Mundo, e dado que ele viajou pouco, não é um absurdo que pensasse assim. O mundo católico, que excluía a Escócia, considerava que toda a humanidade descendia de Adão e Eva e, por isso, não elaborava hierarquias raciais. No mundo protestante as coisas eram bem menos claras – tanto que Locke acreditou na racionalidade do papagaio, já que um relato do Novo Mundo dava conta de que um papagaio brasileiro foi entrevistado e, com a ajuda do tradutor, deu respostas racionais. O fato de um papagaio brasileiro ser um animal rational era mais um indício contrário à filosofia aristotélico-tomista.
Não obstante, se os wokes fossem capazes de estudar questões morais a sério, perceberiam que a ética de Hume contém um pilar do liberalismo e do utilitarismo: foi ele quem, no iluminismo, quebrou o tabu do suicídio e da morte voluntária de modo geral. O seu curto ensaio póstumo “Sobre o suicídio”, publicado em 1777, lançava as bases para os atuais programas de eutanásia. Tal como hoje, a morte era pensada como uma solução para um homem “cansado da vida e perseguido pela dor e pela miséria” que “bravamente supera todos os temores naturais da morte”. Se a vida está insuportável, é perfeitamente racional terminá-la, e uma interdição só pode ser considerada superstição. Eis, talvez, a parte mais bombástica do ensaio:
“É uma impiedade, diz a antiga superstição romana, desviar os rios do seu curso, ou invadir as prerrogativas da natureza. É uma impiedade, diz a superstição francesa, inocular varíola ou usurpar o negócio da providência, produzindo voluntariamente destemperos e doenças. E é uma impiedade, diz a superstição europeia moderna, darmos um fim à nossa própria vida e assim rebelarmo-nos contra o criador. E por que não será uma impiedade, digo eu, construir casas, cultivar o chão e velejar sobre o oceano? Em todas essas ações, empregamos os poderes de nossa mente para produzir alguma inovação no curso da natureza; e em nenhuma delas fazemos mais que isso. Todas são, portanto, igualmente inocentes ou igualmente criminosas.”
O sofisma aqui é evidente, já que se poderia defender o assassinato com a mesma premissa. Talvez até possamos dizer que defender a construção de casas e o cultivo de campos não implica defender a construção de casas em qualquer lugar, ou que se cultive qualquer campo, sem atenção ao ordenamento jurídico – outrossim, matar alguém não é intrinsecamente errado, já que pode ser feito em legítima defesa, ou como pena capital, ou numa guerra. No entanto, noutro trecho do ensaio, ele deixa explícita a desvalorização intrínseca da vida humana sobre a qual essa forma de racionar se assenta: “A vida humana não tem maior importância, para o universo, do que a de uma ostra.” Dentro desse quadro, no qual a vida humana não tem valor intrínseco, o máximo que podemos fazer para defendê-la é colocando-a num contrato social. No entanto, participar da sociedade é facultativo ao indivíduo, e ele pode decidir se ausentar dela dando um fim à própria vida. Hume inclui essa linha argumentativa na defesa do suicídio.
No século seguinte ao de Hume, o XIX de Goethe, a ciência moderna descobriu que o suicídio está longe de ser uma questão meramente individual, já que o livro Os sofrimentos do Jovem Werther o converteu numa moda entre jovens e foi percebido contagioso. Grosso modo, é como se o Werther fosse um Harry Potter apaixonado que se matava no final, e alguns jovens fãs do livro imitassem não só as roupas e os maneirismos de Werther, mas também o seu suicídio. O fenômeno ficou conhecido à época como Wertherfieber, ou Febre Werther, e hoje o contágio social do suicídio é chamado de “efeito Werther”. Para evitá-lo, o jornalismo costuma (ou costumava) abafar suicídios, em vez de dar-lhes publicidade.
Nos séculos XX e XXI, porém, vimos que liberdade para morrer foi e é usada como antessala para a coerção. Afinal, os médicos nazistas não começaram a aplicar eutanásia do nada, sem fazer uma propaganda antes. O governo contratou um diretor de cinema (Wolfgang Liebeneiner) e fez um filme pró-eutanásia (Ich klage an, 1941), um melodrama no qual um médico é acusado de homicídio por matar a esposa doente que sofria muito e pedia-lhe que pusesse um fim à sua miséria. O programa de eutanásia nazista se apresentava como muito compassivo. Tinha uma concepção do que eram vidas dignas de serem vividas e, piedosamente, punha um fim à indignidade de alguns. Era, ainda, um jeito de reduzir despesas hospitalares.
Nos dias de hoje, o Canadá não enrubesce ao mostrar que o MAiD, seu programa de eutanásia voluntária, diminui os gastos com saúde. E há pelo menos um caso noticiado pela imprensa de um doente que escolheu eutanásia porque ia ficar desabrigado e não queria voltar a ser mendigo. Felizmente, Amir Farsoud sobreviveu e foi ouvido por Liz Carr no documentário anti-eutanásia Better Off Dead? (2024). Liz Carr, uma comediante que tem uma doença muito debilitante, insistiu em fazer esse documentário para a BBC depois de a estatal britânica exibir Terry Pratchett: Choosing to Die (2011). Chama a atenção a distância temporal entre os dois documentários. (A propósito, o diálogo dela com a médica canadense que já matou mais de 400 pessoas é exemplar.) Obviamente, o mundo ocidental não chama o Canadá de nazista, pois, como já vimos, de repente decidiu-se que Hitler era mau porque invadia países e não era democrático – não porque era um assassino em massa.
A eutanásia canadense se coloca como muito diferente da nazista porque, em tese, a dela é voluntária e a nazista é involuntária. Por conseguinte, torna-se legítimo manipular pessoas vulneráveis para que procurem a morte. Uma forma de manipulação socialmente aceita é a propaganda, que, quando chamada de difusão de ideias, é sacrossanta por causa da liberdade de expressão. Em tempos de crise econômica, doenças mentais generalizadas e fim de velhos tabus, não é nada difícil convencer amplas parcelas da sociedade de que a morte é preferível à vida. Alguém que já nasça num ambiente sem tabus, tenha uma família que segue modas e vá a uma escola ruim não terá nenhum mecanismo de defesa diante da propaganda da morte.
Nisso, podemos mais uma vez voltar a Hume. Uma coisa intrigante é como os wokes em particular e o mundo anglófono em geral costumam deplorar a conquista do México pela Espanha, quando os homens de Cortez, não sem derramamento de sangue, puseram fim a um Império horrendo que fazia sacrifícios humanos colossais. Lá no século XVIII, David Hume justificava assim, na História Natural da Religião:
“Os sacrifícios humanos dos cartagineses, mexicanos e muitas nações bárbaras dificilmente excedem a Inquisição e as perseguições de Roma e Madri. Pois, além de o derramamento de sangue poder não ser tão grande no primeiro caso quanto no segundo; além disso, digo eu, as vítimas humanas, sendo escolhidas por sorteio, ou por algum sinal exterior, não afetam, num grau tão considerável, o resto da sociedade. Por outro lado, a virtude, o conhecimento, o amor à liberdade são qualidades que atraem a vingança fatal dos inquisidores; e, quando expulsas, deixam a sociedade na ignorância, corrupção e cativeiro mais vergonhosos. O assassinato ilegal de um homem por um tirano é mais calamitoso do que a morte de mil por pestilência, fome ou qualquer calamidade que não faça distinções.”
Ou seja, a liberdade de expressão é um valor supremo porque o herege encarna todas as virtudes da sociedade. Cartago e México não matavam hereges; logo, não expurgavam as virtudes de sua sociedade – como não expurgavam as virtudes, deviam ser virtuosos os infanticidas e os arrancadores de corações pulsantes. (Quanto aos mortos da inquisição, obviamente não se comparam, em número, aos sacrifícios mexicanos. Hume não aplicou o seu ceticismo para a propaganda anticatólica na qual foi educado.) Se os sacrifícios humanos dos cartagineses e mexicanos é aceitável, a eutanásia canadenses é fichinha. E se a Inquisição com certeza proibiria a apologia da eutanásia, teríamos que os mais virtuosos da sociedade seriam aqueles que dela fizessem máxima apologia. É como se o problema de Hitler fosse não ter convencido os judeus a entrarem de bom grado nos campos de extermínio depois de assinarem um papel consentindo com a própria morte e a dos seus dependentes.
Um adendo
Bom, essa rápida incursão pelo século XVIII mostra que o unitarismo e o liberalismo teológico, abordados antes (aqui e aqui), têm um precedente no iluminismo (embora britânico, David Hume era uma estrela entre os iluministas franceses).
O unitarismo, que nos séculos XIX e XX difundiu o liberalismo teológico em igrejas e sinagogas dos Estados Unidos, e que foi propagandeado sob forma laica por J. S. Mill, nega a trindade para afirmar que Cristo foi um reformador moral à frente do seu tempo. Assim, pode haver muitos cristos ao longo da história, tendo sido Sócrates um precedente. O jeito de reconhecer tais reformadores morais é a repressão suscitada pela sociedade: Sócrates e Cristo foram condenados à morte. Aí, se aparecer alguém defendendo sexo com crianças e todo o mundo quiser matá-lo, pimba! É um novo cristo. A raiz da sacralização da liberdade de expressão dos dissidentes, portanto, está na valorização do herege como poço de virtudes. Num nível superficial, é uma revolta contra o bom-senso (pois acolhe todo tipo de ideia que suscite repulsa generalizada); num nível profundo, porém, é uma revolta contra a Igreja católica, que define o herege.