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Raphael Machado
January 25, 2025
© Photo: SCF

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

Entre as muitas declarações exóticas ou mesmo espantosas de Donald Trump nas últimas semanas está a sua sugestão de que os cartéis narcotraficantes do México deveriam ser categorizados como organizações terroristas, e que os EUA deveriam combate-los de forma direta.

Rapidamente começou-se a comentar sobre a hipótese de uma invasão do território mexicano pelos EUA e a mera sugestão dessa possibilidade despertou duras críticas e rechaços no governo mexicano de Claudia Scheinbaum, que ressaltou a necessidade de respeito à soberania mexicana.

Na prática, é fácil entender os motivos imediatos pelos quais muitos estadunidenses acreditam na necessidade de um enfrentamento duro às organizações narcotraficantes.

Os EUA, como maior consumidor de drogas do mundo, acabou se tornando palco para a infiltração de organizações narcotraficantes internacionais, bem como para conflitos sangrentos entre gangues de rua, as quais disputam o mercado varejo e o monopólio da distribuição das drogas remetidas pelos grandes cartéis.

Décadas desse processo de penetração das drogas e do narcotráfico nos EUA resultaram na desintegração dos centros urbanos e das áreas de maioria negra, bem como mais recentemente a crise dos opioides, transformando as paisagens urbanas estadunidenses em uma versão bizarra de “The Walking Dead”. Mas além desse tipo de dano profundo à sociedade estadunidense, vastos territórios urbanos nas grandes metrópoles são hoje controlados por gangues armadas fortalecidas por conexões internacionais. É óbvio que a população dos EUA vai querer uma atitude do seu governo.

Mas que diferença faria categorizar os cartéis mexicanos como organizações terroristas?

A categorização de cartéis como organizações terroristas internacionais (FTOs, na sigla em inglês) não é uma ideia nova. Durante seu governo (2017-2021), Trump já havia considerado essa classificação, mas recuou devido à resistência de setores políticos e à forte oposição do governo mexicano, temendo que tal medida resultasse em intervenções militares americanas no território mexicano.

Dessa maneira, em primeiro lugar, o governo dos EUA passaria a poder agir de maneira mais incisiva contra as empresas que possuem vínculos com quaisquer estágios do processo produtivo de drogas ou das atividades narcotraficantes em geral, o que vai desde empresas de transporte a empresas de produtos químicos, passando por empresas do setor agrícola.

Essa mudança teria, também, repercussões no que concerne o combate às organizações criminosas dentro do próprio território estadunidense.

Em geral, existe uma distinção fundamental entre o combate a um inimigo pelo Estado e o combate ao criminoso pelo mesmo Estado. O primeiro tipo de enfrentamento possui natureza política, o segundo trata apenas de manutenção da ordem; ou seja, de “ação de polícia”. O traficante como terrorista coloca-o em situação quase equivalente ao do combatente inimigo estrangeiro irregular, mas como trata-se, aí, de agentes que estão no território estadunidense (e que não raro têm cidadania), estamos falando da adoção do Direito Penal do Inimigo como parte da política oficial dos EUA em relação a narcotraficantes.

Os EUA já faziam uso do Direito Penal do Inimigo em outros casos envolvendo terrorismo, como na perseguição a pessoas acusadas de envolvimento com organizações como a Al-Qaeda. Pelo Direito Penal do Inimigo, determinadas categorias de pessoas são consideradas como sendo “inimigas do Estado” e, portanto, perdem a proteção dos direitos civis e penais no que concerne as suas relações com o Estado. É por isso que os acusados de terrorismo nos EUA tem sido, rotineiramente, presos sem possibilidade de defesa e ocasionalmente enviados para prisões como Guantanamo nas quais ficam presos, por anos, sem comunicação ou acesso a advogados.

Esses detalhes, porém, são menos relevantes do que o sentido geral desse tipo de política.

Se tomarmos como parâmetro o modus operandi usado pelos EUA para “combater o terrorismo” ao redor do mundo, então podemos deduzir que o combate ao narcoterrorismo mexicano pode muito bem envolver ataques com drones, operações de forças especiais em missões de black ops, e outras formas semelhantes de operações híbridas na zona cinzenta.

Desnecessário dizer que essas operações não trarão maior estabilidade ao México; ao contrário, elas além de representarem violação à soberania mexicana, enfraquecerão ainda mais a legitimidade do Estado mexicano e de suas instituições, facilitando correspondentemente a fragmentação territorial de facto do México. Ora, é isso que se deu em todos os países bombardeados por drones estadunidenses, como Somália, Líbia, Iraque, Iêmen e Afeganistão.

A tendência é que isso acelere as forças centrífugas do México, intensificando o caos ao qual o país já está submetido. Em paralelo, Trump pretende isolar os EUA do México e fortalecer as suas fronteiras, com o objetivo de restaurar a ordem ao seu país.

O projeto de Trump parece responder às tendências “caórdicas” do Império Estadunidense em sua fase decadente. Quando falamos de “caordem” estamos nos referindo a uma concepção geopolítica muito bem descrita pelo filósofo Alexander Dugin, que aborda como o “Império” – normalmente símbolo de ordem – gera e fomenta o caos para além de suas fronteiras, simultaneamente tomando cuidado para garantir que não possa emergir qualquer outra ordem além da estabelecida pelo próprio “Império”. A técnica caórdica representa a superação dialética das relações coloniais entre “metrópole” e “colônia” na medida em que não se trata mais de uma projeção de força para garantir ordem em países-satélites, mas de fazer tábula rasa, terra arrasada, inclusive em países outrora vistos como aliados. Por essa concepção, a restauração da ordem nas zonas externas só é possível pela expansão do centro, na medida em que as “novas terras” passam a fazer também parte do centro.

Em outras palavras, a desestabilização do México que inevitavelmente ocorreria com uma medida desse tipo, de categorização dos narcotraficantes como terroristas, se enquadra em uma lógica de difusão do caos que poderia servir, no longo prazo, para a expansão do poder dos EUA nas Américas.

É duvidoso, porém, que essa decisão seja viável considerando que ela repercutiria, também, na criminalização das atividades de incontáveis empresas que, usualmente de forma inconsciente, acabam se relacionando com uma ou outra fase das atividades das organizações criminosas.

Cartéis mexicanos como grupos terroristas: O que está por trás do projeto de Trump?

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Entre as muitas declarações exóticas ou mesmo espantosas de Donald Trump nas últimas semanas está a sua sugestão de que os cartéis narcotraficantes do México deveriam ser categorizados como organizações terroristas, e que os EUA deveriam combate-los de forma direta.

Rapidamente começou-se a comentar sobre a hipótese de uma invasão do território mexicano pelos EUA e a mera sugestão dessa possibilidade despertou duras críticas e rechaços no governo mexicano de Claudia Scheinbaum, que ressaltou a necessidade de respeito à soberania mexicana.

Na prática, é fácil entender os motivos imediatos pelos quais muitos estadunidenses acreditam na necessidade de um enfrentamento duro às organizações narcotraficantes.

Os EUA, como maior consumidor de drogas do mundo, acabou se tornando palco para a infiltração de organizações narcotraficantes internacionais, bem como para conflitos sangrentos entre gangues de rua, as quais disputam o mercado varejo e o monopólio da distribuição das drogas remetidas pelos grandes cartéis.

Décadas desse processo de penetração das drogas e do narcotráfico nos EUA resultaram na desintegração dos centros urbanos e das áreas de maioria negra, bem como mais recentemente a crise dos opioides, transformando as paisagens urbanas estadunidenses em uma versão bizarra de “The Walking Dead”. Mas além desse tipo de dano profundo à sociedade estadunidense, vastos territórios urbanos nas grandes metrópoles são hoje controlados por gangues armadas fortalecidas por conexões internacionais. É óbvio que a população dos EUA vai querer uma atitude do seu governo.

Mas que diferença faria categorizar os cartéis mexicanos como organizações terroristas?

A categorização de cartéis como organizações terroristas internacionais (FTOs, na sigla em inglês) não é uma ideia nova. Durante seu governo (2017-2021), Trump já havia considerado essa classificação, mas recuou devido à resistência de setores políticos e à forte oposição do governo mexicano, temendo que tal medida resultasse em intervenções militares americanas no território mexicano.

Dessa maneira, em primeiro lugar, o governo dos EUA passaria a poder agir de maneira mais incisiva contra as empresas que possuem vínculos com quaisquer estágios do processo produtivo de drogas ou das atividades narcotraficantes em geral, o que vai desde empresas de transporte a empresas de produtos químicos, passando por empresas do setor agrícola.

Essa mudança teria, também, repercussões no que concerne o combate às organizações criminosas dentro do próprio território estadunidense.

Em geral, existe uma distinção fundamental entre o combate a um inimigo pelo Estado e o combate ao criminoso pelo mesmo Estado. O primeiro tipo de enfrentamento possui natureza política, o segundo trata apenas de manutenção da ordem; ou seja, de “ação de polícia”. O traficante como terrorista coloca-o em situação quase equivalente ao do combatente inimigo estrangeiro irregular, mas como trata-se, aí, de agentes que estão no território estadunidense (e que não raro têm cidadania), estamos falando da adoção do Direito Penal do Inimigo como parte da política oficial dos EUA em relação a narcotraficantes.

Os EUA já faziam uso do Direito Penal do Inimigo em outros casos envolvendo terrorismo, como na perseguição a pessoas acusadas de envolvimento com organizações como a Al-Qaeda. Pelo Direito Penal do Inimigo, determinadas categorias de pessoas são consideradas como sendo “inimigas do Estado” e, portanto, perdem a proteção dos direitos civis e penais no que concerne as suas relações com o Estado. É por isso que os acusados de terrorismo nos EUA tem sido, rotineiramente, presos sem possibilidade de defesa e ocasionalmente enviados para prisões como Guantanamo nas quais ficam presos, por anos, sem comunicação ou acesso a advogados.

Esses detalhes, porém, são menos relevantes do que o sentido geral desse tipo de política.

Se tomarmos como parâmetro o modus operandi usado pelos EUA para “combater o terrorismo” ao redor do mundo, então podemos deduzir que o combate ao narcoterrorismo mexicano pode muito bem envolver ataques com drones, operações de forças especiais em missões de black ops, e outras formas semelhantes de operações híbridas na zona cinzenta.

Desnecessário dizer que essas operações não trarão maior estabilidade ao México; ao contrário, elas além de representarem violação à soberania mexicana, enfraquecerão ainda mais a legitimidade do Estado mexicano e de suas instituições, facilitando correspondentemente a fragmentação territorial de facto do México. Ora, é isso que se deu em todos os países bombardeados por drones estadunidenses, como Somália, Líbia, Iraque, Iêmen e Afeganistão.

A tendência é que isso acelere as forças centrífugas do México, intensificando o caos ao qual o país já está submetido. Em paralelo, Trump pretende isolar os EUA do México e fortalecer as suas fronteiras, com o objetivo de restaurar a ordem ao seu país.

O projeto de Trump parece responder às tendências “caórdicas” do Império Estadunidense em sua fase decadente. Quando falamos de “caordem” estamos nos referindo a uma concepção geopolítica muito bem descrita pelo filósofo Alexander Dugin, que aborda como o “Império” – normalmente símbolo de ordem – gera e fomenta o caos para além de suas fronteiras, simultaneamente tomando cuidado para garantir que não possa emergir qualquer outra ordem além da estabelecida pelo próprio “Império”. A técnica caórdica representa a superação dialética das relações coloniais entre “metrópole” e “colônia” na medida em que não se trata mais de uma projeção de força para garantir ordem em países-satélites, mas de fazer tábula rasa, terra arrasada, inclusive em países outrora vistos como aliados. Por essa concepção, a restauração da ordem nas zonas externas só é possível pela expansão do centro, na medida em que as “novas terras” passam a fazer também parte do centro.

Em outras palavras, a desestabilização do México que inevitavelmente ocorreria com uma medida desse tipo, de categorização dos narcotraficantes como terroristas, se enquadra em uma lógica de difusão do caos que poderia servir, no longo prazo, para a expansão do poder dos EUA nas Américas.

É duvidoso, porém, que essa decisão seja viável considerando que ela repercutiria, também, na criminalização das atividades de incontáveis empresas que, usualmente de forma inconsciente, acabam se relacionando com uma ou outra fase das atividades das organizações criminosas.

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

Entre as muitas declarações exóticas ou mesmo espantosas de Donald Trump nas últimas semanas está a sua sugestão de que os cartéis narcotraficantes do México deveriam ser categorizados como organizações terroristas, e que os EUA deveriam combate-los de forma direta.

Rapidamente começou-se a comentar sobre a hipótese de uma invasão do território mexicano pelos EUA e a mera sugestão dessa possibilidade despertou duras críticas e rechaços no governo mexicano de Claudia Scheinbaum, que ressaltou a necessidade de respeito à soberania mexicana.

Na prática, é fácil entender os motivos imediatos pelos quais muitos estadunidenses acreditam na necessidade de um enfrentamento duro às organizações narcotraficantes.

Os EUA, como maior consumidor de drogas do mundo, acabou se tornando palco para a infiltração de organizações narcotraficantes internacionais, bem como para conflitos sangrentos entre gangues de rua, as quais disputam o mercado varejo e o monopólio da distribuição das drogas remetidas pelos grandes cartéis.

Décadas desse processo de penetração das drogas e do narcotráfico nos EUA resultaram na desintegração dos centros urbanos e das áreas de maioria negra, bem como mais recentemente a crise dos opioides, transformando as paisagens urbanas estadunidenses em uma versão bizarra de “The Walking Dead”. Mas além desse tipo de dano profundo à sociedade estadunidense, vastos territórios urbanos nas grandes metrópoles são hoje controlados por gangues armadas fortalecidas por conexões internacionais. É óbvio que a população dos EUA vai querer uma atitude do seu governo.

Mas que diferença faria categorizar os cartéis mexicanos como organizações terroristas?

A categorização de cartéis como organizações terroristas internacionais (FTOs, na sigla em inglês) não é uma ideia nova. Durante seu governo (2017-2021), Trump já havia considerado essa classificação, mas recuou devido à resistência de setores políticos e à forte oposição do governo mexicano, temendo que tal medida resultasse em intervenções militares americanas no território mexicano.

Dessa maneira, em primeiro lugar, o governo dos EUA passaria a poder agir de maneira mais incisiva contra as empresas que possuem vínculos com quaisquer estágios do processo produtivo de drogas ou das atividades narcotraficantes em geral, o que vai desde empresas de transporte a empresas de produtos químicos, passando por empresas do setor agrícola.

Essa mudança teria, também, repercussões no que concerne o combate às organizações criminosas dentro do próprio território estadunidense.

Em geral, existe uma distinção fundamental entre o combate a um inimigo pelo Estado e o combate ao criminoso pelo mesmo Estado. O primeiro tipo de enfrentamento possui natureza política, o segundo trata apenas de manutenção da ordem; ou seja, de “ação de polícia”. O traficante como terrorista coloca-o em situação quase equivalente ao do combatente inimigo estrangeiro irregular, mas como trata-se, aí, de agentes que estão no território estadunidense (e que não raro têm cidadania), estamos falando da adoção do Direito Penal do Inimigo como parte da política oficial dos EUA em relação a narcotraficantes.

Os EUA já faziam uso do Direito Penal do Inimigo em outros casos envolvendo terrorismo, como na perseguição a pessoas acusadas de envolvimento com organizações como a Al-Qaeda. Pelo Direito Penal do Inimigo, determinadas categorias de pessoas são consideradas como sendo “inimigas do Estado” e, portanto, perdem a proteção dos direitos civis e penais no que concerne as suas relações com o Estado. É por isso que os acusados de terrorismo nos EUA tem sido, rotineiramente, presos sem possibilidade de defesa e ocasionalmente enviados para prisões como Guantanamo nas quais ficam presos, por anos, sem comunicação ou acesso a advogados.

Esses detalhes, porém, são menos relevantes do que o sentido geral desse tipo de política.

Se tomarmos como parâmetro o modus operandi usado pelos EUA para “combater o terrorismo” ao redor do mundo, então podemos deduzir que o combate ao narcoterrorismo mexicano pode muito bem envolver ataques com drones, operações de forças especiais em missões de black ops, e outras formas semelhantes de operações híbridas na zona cinzenta.

Desnecessário dizer que essas operações não trarão maior estabilidade ao México; ao contrário, elas além de representarem violação à soberania mexicana, enfraquecerão ainda mais a legitimidade do Estado mexicano e de suas instituições, facilitando correspondentemente a fragmentação territorial de facto do México. Ora, é isso que se deu em todos os países bombardeados por drones estadunidenses, como Somália, Líbia, Iraque, Iêmen e Afeganistão.

A tendência é que isso acelere as forças centrífugas do México, intensificando o caos ao qual o país já está submetido. Em paralelo, Trump pretende isolar os EUA do México e fortalecer as suas fronteiras, com o objetivo de restaurar a ordem ao seu país.

O projeto de Trump parece responder às tendências “caórdicas” do Império Estadunidense em sua fase decadente. Quando falamos de “caordem” estamos nos referindo a uma concepção geopolítica muito bem descrita pelo filósofo Alexander Dugin, que aborda como o “Império” – normalmente símbolo de ordem – gera e fomenta o caos para além de suas fronteiras, simultaneamente tomando cuidado para garantir que não possa emergir qualquer outra ordem além da estabelecida pelo próprio “Império”. A técnica caórdica representa a superação dialética das relações coloniais entre “metrópole” e “colônia” na medida em que não se trata mais de uma projeção de força para garantir ordem em países-satélites, mas de fazer tábula rasa, terra arrasada, inclusive em países outrora vistos como aliados. Por essa concepção, a restauração da ordem nas zonas externas só é possível pela expansão do centro, na medida em que as “novas terras” passam a fazer também parte do centro.

Em outras palavras, a desestabilização do México que inevitavelmente ocorreria com uma medida desse tipo, de categorização dos narcotraficantes como terroristas, se enquadra em uma lógica de difusão do caos que poderia servir, no longo prazo, para a expansão do poder dos EUA nas Américas.

É duvidoso, porém, que essa decisão seja viável considerando que ela repercutiria, também, na criminalização das atividades de incontáveis empresas que, usualmente de forma inconsciente, acabam se relacionando com uma ou outra fase das atividades das organizações criminosas.

The views of individual contributors do not necessarily represent those of the Strategic Culture Foundation.

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January 25, 2025

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