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Ao longo de todo o ano de 2024 todos ouvimos, inúmeras vezes, da boca de Von Der Leyen, Borrel, Kaja Kallas ou, agora, António Costa, o termo “valores europeus”, usado como arma de arremesso contra adversários e muro, pretensamente civilizacional, contra pretensos inimigos. Valores como a “promoção da paz” ou a “solidariedade e respeito mútuo entre os povos” passaram a conviver com uma lógica de confronto, em que o nível de fanatismo com que s esgrimem tais valores contra outros, passou a constituir o principal elemento de avaliação e desempenho e garante da promoção individual na cadeia de poder.
O uso destes “valores europeus” como força divisória entre campos supostamente antagónicos constitui, talvez, a maior das falácias da sua invocação. Invocar tais valores como se tratando de um crivo divisivo das relações entre povos, está para a actualidade como a “salvação das almas” estava para a era do expansionismo das nações ibéricas, nos primórdios da era mercantil, como a “democracia e direitos humanos” estão para os EUA, sempre que pretendem constituir um diferencial justificativo de uma determinada intervenção além-fronteiras, ou, como a “civilização dos povos bárbaros” estava para os colonos face aos povos indígenas na América do Norte, em África, na Ásia e América Latina, já em pleno capitalismo liberal, nos séculos XVIII e XIX.
No fundo, todas as civilizações expansionistas, não apenas as ocidentais, utilizaram pretensos “valores” para si considerados primordiais, como justificação da própria expansão e da divisão entre si e os outros. Por mais que esses valores expressassem precisamente o contrário, a sua utilização nesses termos nunca foi obstáculo a uma qualquer conquista, expansão ou intervenção. Tal como Israel usa a sua segurança para oprimir o povo Palestino, sírio ou Libanês, negando-lhes a segurança de cujo direito se considera titular. Nada de novo nisto, portanto. Contudo, o que é novo é, uma Europa destruída duas vezes nos últimos 110 anos, considerar que chegou a hora de voltar a invocar a mesma lógica confrontacionista.
A utilização de tais justificações, supostamente ideológicas, regra geral, entra em contradição com os próprios conceitos em que se fundam. O que, uma vez mais, também não é um exclusivo da União Europeia. Talvez o mais questionável seja mesmo a quantidade de vezes, de forma repetidamente questionável, que o ocidente usa tais pretextos, arrogando-se de uma espécie de superioridade universal que torna o seu julgamento pretensamente superior em relação aos demais. Esse exclusivo, esse excepcionalismo, o poder absoluto de perdoar ou condenar, de dividir e unir, é historicamente reconhecido como o poder que corrompe, que cega.
Mas o que são, então, os tais “valores europeus”? Tais valores encontram respaldo legal nos artigos 2.º e 3.º do Tratado de Lisboa e na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. A União Europeia funda-se na “dignidade humana, liberdade, democracia, igualdade, estado de direito e direitos humanos. Do ponto de vista mais territorial, as “sociedades” europeias fundam-se no “pluralismo, não discriminação, tolerância, justiça, solidariedade e igualdade entre homens e mulheres”. Todos valores nobres, embora encontremos inúmeras situações em que os mesmos não foram tidos em conta, quer no tratamento dos próprios europeus, quer no tratamento dos outros povos.
Vejamos o caso da Síria. Para algumas nações europeias, Bashar Al-Assad, passou de um visionário “reformista” a um tirano inveterado. A França de Chirac foi o primeiro a dar o mote, atribuindo-lhe a Grande Cruz da Legião francesa, seguindo-se-lhe outras comendas de países como a Ucrânia (2002) Finlândia (2009) ou a Itália (2010). Símbolo do secularismo e figura de proa do mundo árabe (em 2009 ganha a poll da CNN Árabe para “Personalidade do Ano” e em 2010 fica em segundo lugar, perdendo apenas para Erdogan), Bashar Al-Assad tinha na economia, estabilidade, política externa e direitos das mulheres, as áreas governativas mais valorizadas pelo povo Sírio.
Hoje, quando assistimos ao ofuscamento da fotografia de Annalena Baerbock, e de outras mulheres, ao lado de Al-Jolani e de outros “novos” políticos sírios, pela imprensa ligada ao novo regime do HTS, constatamos a flexibilidade e paradoxalidade com que os “valores europeus” são invocados. Se no caso de Assad permitiram a sua elevação e posterior condenação, com Al-Jolani, os mesmos “valores europeus” possibilitaram a reabilitação de um “Terrorista Reformado”, num “radical pragmático”, elevando-o a um tal estatuto que toda União Europeia correu para a Síria, a abençoar alguém que tem um prémio fixado pela sua captura de 10 milhões de dólares. O êxodo de figuras europeias para a Síria de Al-Jolani diz também muito do papel que tais gentes têm na política actual, reduzindo a um papel de figurantes normalizadores que passam a mensagem, ao mundo, se possível, que os EUA estão, desta feita, em paz com a Síria. Até ver, pelo menos. Uma vez mais, os mesmos valores que reabilitam Al-Jolani, facilmente serão utilizados para o condenar e, nessa altura, o êxodo de irrelevantes figuras do mainstream ocidental esgotar-se-á e iniciar-se-á um êxodo composto por tanques Merkava e F35.
O facto é que, conhecendo a história deste ex-Terrorista profissional, da respectiva passagem pela Al-Qaeda, Al-Nusra e outras organizações terroristas, é incrível que ao abrigo dos “Valores Europeus” da “dignidade humana, liberdade, democracia, igualdade, estado de direito e direitos humanos, cujas “sociedades” europeias supostamente se fundam-se “pluralismo, não discriminação, tolerância, justiça, solidariedade e igualdade entre homens e mulheres”, seja possível reabilitar alguém que, ontem, praticava os mais violentos e gratuitos actos contra inocentes.
Sabendo que o terrorismo, pelo menos na teoria – e parece que só na teoria -, constitui a forma mais grave de violência sobre o ser humano; sabendo ainda que, de acordo com a teoria oficial do atentado terrorista do 11 de Setembro de 2001, foi a Al-Qaeda a organização que esteve por detrás da sua preparação; é razão para perguntar como é que tal reabilitação é possível. Afinal, que crime tão grave terá cometido Bashar Al-Assad, que tenha tornado a respectiva reabilitação impossível? Já sabemos que não terão sidos as alegadas torturas – essas também se passam em Guantanamo Bay; também não terão sido os alegadamente célebres “ataques químicos”, pois Al-Qaeda, ISIS, Al-Nusra, têm no reportório coisas ainda mais bárbaras; também não foi a alegada inobservância dos valores democráticos, pois, afinal, na Ucrânia, as eleições foram suspensas por tempo indeterminado e os EUA são especialistas em subverter resultados eleitorais, sempre que os mesmos não lhes agradam, como sucede na Geórgia, Venezuela, Nicarágua, Roménia e por aí fora. Correndo o risco de me chamarem de “Assadista”, o que foi então que o homem fez?
É no discurso de Al-Jolani que encontramos a resposta e a identificação dos crimes mais terríveis que um ser humano pode cometer aos olhos do ocidente. O Jihadista “retirado” não considera a “sua” Síria uma ameaça para o mundo, especialmente não elegendo os EUA e Israel como inimigos. Não deixa de ser contraditório que estes Jihadistas ultra-radicais, como Al-Jolani, tão veementes na invocação do Corão quando se trata de oprimir as mulheres, nunca, mas mesmo nunca, tenham desenvolvido qualquer ataque contra aquele que é o maior inimigo do mundo árabe e muçulmano: Israel.
Veremos como trata Al-Jolani a economia nacional Síria, mas a manutenção do estatuto de imunidade imperial que lhe foi atribuído pelos EUA, G7, NATO e EU, depende ainda de outro factor, não menos importante do que os enumerados anteriormente: em que medida o regime liderado pelo HTS permitirá a entrega dos vastos recursos naturais sírios às corporações multinacionais ocidentais. Afinal, a defesa da soberania e independência da nação síria era outro dos pontos de honra do regime liderado por Bashar Al-Assad. A insistência em defender a soberania nacional, impedindo a apropriação das reservas de petróleo e gás pelas multinacionais ocidentais, fez com que os EUA usassem o pretexto do combate ao ISIS para ocupar, desde há 10 anos, a parte mais rica do país em hidrocarbonetos. E assim ficamos a conhecer o crime inaceitável aos olhos dos “Valores Europeus”: a defesa da soberania nacional.
Num mundo em que o crime violento invade as nossas vidas, através da comunicação social mainstream, e em que se aguçam sentimentos vingativos, normalmente contra minorias étnicas, esta reabilitação pelo ocidente, de todo um movimento terrorista, é tão grave quanto isto: imaginem que os governos ocidentais passavam a reabilitar os criminosos mais graves apenas e tão só porque estes prometiam tornar-se nuns rapazes bem-comportados e cumpridores das regras? Como reagiriam as opiniões públicas ocidentais se os seus governos começassem a garantir perdão aos maiores criminosos, bastando para tal que estes dissessem “estamos arrependidos, reformados e retirados da actividade criminosa”, “agora cumpriremos as regras que nos impõem”. Seria tal comportamento aceitável?
E o povo Sírio? É plausível considerar que o povo Sírio prefere ver a sua nação destruída a ser governado por alguém como Assad? E as mulheres Sírias? Prefeririam viver num estado autoritário que as respeitava como mulheres ou num que as retira da vida pública?
E é nesta componente, do governo “de fora para dentro” que surge a conexão entre a Síria actual e os supostos “valores europeus”, manobrados por Von Der Leyen, Sholz e companhia, ao sabor das suas ordens de serviço. Já constatámos que, quanto aos “valores europeus” de natureza individual seria impossível a reabilitação e alguém como Al-Jolani – o desrespeito anterior pela vida humana, pelas mulheres, a indignidade das suas acções, a injustiça que lhes está imanente, a ausência de pluralismo, liberdade e observância da igualdade de género para com o povo Sírio, tornam incompatível a sua atitude com tais valores. Apenas num ocidente que considera a sua actuação como algo de divino, tendo o poder de perdoar e condenar, seria possível tal reabilitação e sempre na lógica do injusto perdão. Injusto para com as vítimas, especialmente.
Mas, no artigo 3.º do Tratado de Lisboa, por entre a enumeração de princípios e valores aí presentes, que vão do funcionamento interno da EU às suas relações com o mundo, que encontramos a resposta. As políticas soberanas defendidas por Calin Georgescu, Robert Fitzo, Bashar Al-Assad, de Valdimir Putin, Nicolas Maduro, Ibrahim Traoré (terá Al-Jolani chegado ao poder através de eleições?), por países como Moçambique, Irão, Geórgia, Nicarágua, Coreia do Norte, Cuba, a Líbia de Gadafi ou a Hungria de Orban, à esquerda ou à direita do espectro político, mais socialista ou mais capitalista, tais pretensões estão omissas nos “valores europeus”. Na enumeração de valores, princípios e objectivos que constituem os tais “valores europeus” não constam a independência, a autonomia e o respeito pela soberania dos povos, muito menos dos povos europeus. Toda a arquitectura de poder da EU é a de uma grande federação em que os estados são governados de fora para dentro, tornando muito fácil a apropriação por outros agentes exteriores.
A própria independência, autonomia e soberania da EU estão ausentes. Tratam-se de conceitos absolutamente ausentes. O orgulho nacional, o patriotismo, são vistos como conceitos ultrapassados, castradores e subversivos. A EU não é uma construção de povos livres, independentes e soberanos. É uma construção de povos submetidos e passivamente assimilados, governados a partir de um centro de poder chamado Bruxelas.
Daí que, perante tal quadro, não admira que a nova Síria se enquadre nesta lógica e que Al-Jolani possa ser reabilitado. Afinal, o que falha num lado da balança, cumpre no outro. É esta a beleza dos “valores europeus”. Num caso, servem para tratar Vladimir Putin como um criminoso, porque investigado pelo TPI, no outro servem para desculpar Netanyahu porque, sendo investigado pelo TPI, há que dar-lhe o benefício da dúvida. Se estar com Vladimir Putin é tóxico, estar com Al-jolani está na moda e é terapêutico. Que o digam todos os que para lá correm, nestes dias. Tudo se trata de saber por conta de quem se praticam os crimes. Putin terá praticado os seus alegados crimes em nome das pessoas erradas. Em nome das pessoas certas, nem de crimes se tratariam.
Ora, toda a caricatura aqui realizada coloca bem em evidência qual é o verdadeiro muro que divide os povos e os seus interesses, dos interesses dos seus opressores. Não são os idealistas e etéreos “valores europeus” que dividem, esses deveriam juntar e unir, ao invés de desunir. Quando é que a EU deixou de “contribuir para a paz e a segurança” e “respeito mútuo entre os povos”, como enumerado no artigo 3.º do Tratado de lisboa? Contudo, a enumeração desses princípios é instrumental da doutrina federativa que instituiu a própria EU.
Assim, grande divisão e desconexão para com os “valores europeus” está entre aqueles que defendem a soberania, independência e liberdade, porque sem as primeiras, não existe liberdade, uma vez que, quando somos governados por outros que não escrutinamos, nunca poderemos ser livres, como não o são os que sucumbem perante o globalismo federativo mundial liderado pelos EUA e corporizado pelo G7, NATO e EU. De que vale derrubar um governo, eleger outro ou fazer uma revolução, num país que terá de continuar a cumprir os ditames impostos de fora para dentro? Eis porque esta é a primeira linha divisora destes dias. É a mais visível, a mais palpável. A mais fracturante e detectável, pelo menos.
Mas não se deixe esta mascarar uma outra linha divisória, a mais profunda de todas, a mais escondida: a divisão de classe. É que, o que se esconde por detrás desta clivagem entre soberanismo/federalismo, são os interesses dos povos trabalhadores, pequenos empresários não financeirizados e facções do capital produtivo desconcentrado, camponeses, intelectuais, por oposição aos interesses de classe do capitalismo financeirizado, na sua fase imperialista.
Afinal, o que está em causa não é mais do que a luta que se estabelece entre um capitalismo rentista, financeirizado e os ganhos brutais que proporciona a um punhado cada vez mais rico e reduzido, que necessita de um mundo sem limitações que não sejam as que por si são impostas, as quais podemos designar de “ordem baseada em regras”, no qual as regras mudam e são interpretadas à vontade do autodesignado “legislador”, sempre em oposição aos interesses dos povos, incluindo as forças produtivas publicas ou privadas, cuja propriedade nacional significa a sua estabilidade, soberania e independência, garantes da sua liberdade e capacidade de utilização dessas forças produtivas instaladas, não para benefício de uma classe rentista central, transnacional e cada vez mais reduzida, mas para interesse soberano e colectivo.
Desta forma, ser soberanista é hoje, como ontem, um acto revolucionário, e não apenas pela clivagem, ruptura e rompimento que faz em relação a um processo ainda dominante de supressão das soberanias e das liberdades dos povos, mas porque a assunção dessa soberania implica, ela própria, uma construção económica soberana, em que: 1) o estado esteja na posse da direcção política e democrática, pautando as medidas que garantam o funcionamento da parte em benefício do todo e a defesa do interesse nacional; 2) um estado na posse dos mecanismos estratégicos que garantam a capacidade dos governos, democraticamente constituídos (noutra concepção não me revejo) e democraticamente legitimados (o que não quer dizer através de um modelo liberal), em garantir a aplicação das medidas públicas para que são escolhidos; 3) um tecido económico diversificado, entre público, cooperativo, privado e social, que funcione para o todo e incorpore na sua acção o benefício, sustentabilidade, estabilidade e independência da economia nacional, como única forma de garantir a soberania popular na livre escolha do seu caminho.
Uma visão soberanista e o papel que um estado tem de assumir para a garantir, constitui um rompimento efectivo com a tendência federalista, globalista, das últimas décadas e que é responsável pelo esmagamento, não apenas das liberdades, mas das condições de vida da maioria em benefício de uma minúscula minoria.
Assim, tal como no exemplo da Síria, em que a reabilitação de Al-Jolani depende da submissão da nação aos interesses de Washington e seus vassalos, a reabilitação, aos olhos do ocidente, de Vladimir Putin, dependeria da entrega ao rentismo norte-americano, dos 80 trilhões de dólares recursos minerais que a Rússia alberga nas suas terras e que Calin Georgescu tão bem referiu como sendo necessários para pagar a dívida pública e privada do sistema financeiro dominado pelo ocidente. Entre estas verdades e a proposta de defesa da soberania romena, terão estado as razões para a apressada anulação das eleições que ganhou.
Numa Europa que tanto fala de “valores europeus”, assistimos aos apelos de reforço da segurança, ao passo que a sua política militar é entregue à NATO; assistimos aos apelos à “segurança energética” ao mesmo tempo que se entrega a mesma á industria de gás de xisto norte americano; ouvimos repetidamente a necessidade de assegurar a independência das cadeias de abastecimento, mas os estados europeus servem de desbloqueadores de negócios para os EUA, como sucedeu em Angola com o Corredor do Lobito.
Numa Europa que não sabe o que é a independência, autonomia e soberania, defendê-las, determina que automaticamente fiquemos de fora dos tais “valores europeus”.