A “nova história” da Ucrânia começou a ser desenvolvida no período pós-independência, assumindo contornos muitos especiais a partir do golpe de estado de 2014.
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Grande parte dos Estados que emergiram com a dissolução da União Soviética não tinham tido previamente existência como entidades politicamente autónomas à data da sua criação no seio da União Soviética, na forma de repúblicas socialistas soviéticas.
Esta afirmação é válida tanto para as ex-repúblicas soviéticas da Ásia Central como para a Ucrânia. Nas viagens que fiz pela Ásia Central apercebi-me da obsessão dos dirigentes pós-soviéticos em criar uma ideologia nacional que se sobrepusesse à soviética – alimentada ao longo de 70 anos – promovendo novas lealdades.
Essa ação passava por identificar um passado glorioso em que os cidadãos se revissem e orgulhassem. Esse pacote incluía uma herança espiritual e cultural, e o reconhecimento de heróis que, de um ou outro modo, desempenharam um papel civilizacional importante. Procurava-se, assim, substituir a orfandade identitária soviética por outra de cariz nacionalista, que fosse agregadora e unisse os membros da nação fazendo-os sentir parte de um etos comum.
Foram utilizados momentos de glória no passado para temperar psicologicamente o presente, criar um sentido de pertença a uma comunidade de egrégios avós que lhes alimente a esperança de um futuro radiante, recorrendo artificialmente, em muitos casos, a heróis em que os cidadãos se possam projetar.
Os dirigentes uzbeques fizeram-no magistralmente conectando o império de Amir Temur (ou Tamerlão) do século XIV ao atual Estado. A ilustração disso que mais me impressionou foi o imponente museu Amir Timur, em Tasquente, e a exaltação do glorioso passado uzbeque que lhe está associado através do ‘culto’ de Amir Temur.
No caso da Ucrânia, a sua efémera experiência estadual (1917/1922) não foi suficiente para consolidar uma identidade nacional, com a agravante de se ter constituído no período soviético um Estado multinacional, com minorias de dimensão significativa, entre outras, a russa, húngara e romena.
Os dirigentes ucranianos do período pós-soviético foram confrontados com os mesmos desafios dos seus congéneres da Ásia Central. Essa “nova história” começou a ser desenvolvida no período pós-independência, assumindo contornos muitos especiais a partir do golpe de estado de 2014. A multinacionalidade do Estado aumentou a complexidade dessa tarefa.
O revivalismo histórico ucraniano ao serviço da política não descurou a exaltação dos dirigentes ucranianos que combateram ao lado dos nazis na Segunda Guerra Mundial. Stepan Bandera foi reabilitado e tornado herói da Ucrânia, sendo-lhe atribuída postumamente, em 2010, a mais alta condecoração ucraniana nos últimos dias do mandato do presidente Yushchenko.
Mais. A toponímia ucraniana foi alimentada com o nome de muitos dos seus seguidores. Eduard Dolinsky, presidente do Comité Judaico da Ucrânia, relata na sua página do Facebook casos de banderistas em honra de quem foram construídos monumentos. Mas a construção dessa identidade nacional ucraniana tem outra faceta. Ao contrário dos dirigentes uzbeques que se apropriaram (indevidamente) de factos históricos indisputáveis e os fizeram seus, incorporando-os na sua herança cultural, os historiadores e geógrafos ucranianos forjaram factos e acontecimentos.
Sem prejuízo de um trabalho de maior fôlego e profundidade que venha a ser efetuado sobre o tema, daremos nota de alguns deles.
Para tal, socorremo-nos do compêndio de geografia destinado aos alunos do oitavo ano, lançado em 2016, da autoria do Professor Maslyak, e de um livro de história utilizado como referência, tanto quanto se conseguiu apurar, nas universidades ucranianas, da autoria de Mikhail Galichanets, com o título “A Nação Ucraniana. As aventuras e a vida da nação ucraniana desde os tempos antigos até ao século XI” (Ternopil, 2005). É nítida, em ambos os livros, a exaltação da exclusividade do povo ucraniano em detrimento do rigor científico.
No compêndio de geografia referido, ficamos a saber muitos factos que desconhecíamos. Por exemplo, “o antigo idioma da Índia, o sânscrito, é próximo do ucraniano. Além disso, os nomes de países e povos do Oeste e do Sul, como Galateia, Galileus, França (Gália), Galiza na Espanha ou Portugal (Porto-Gália), provavelmente indicam que os ancestrais dos modernos franceses, espanhóis, portugueses, judeus e turcos poderiam ter ido para essas regiões vindos da Galiza ucraniana”.
Segundo o raciocínio do Professor Maslyak, os portugueses até podem ser primos distantes dos ucranianos.
Ainda segundo o mesmo manual escolar, “A língua eslava russa é de origem ugro-finlandesa, e os búlgaros encontram-se linguisticamente mais próximos dos turcos. Os bielorrussos e os polacos são linguisticamente mais próximos dos ucranianos, para além de terem também origens genéticas diferentes. Os polacos são eslavos e os bielorrussos são bálticos”. E nós pensávamos que eram eslavos.
O Professor Maslyak queixa-se também do facto de a Ucrânia não ter tido sorte com os vizinhos. “Nenhum dos países que fazem fronteira direta com a Ucrânia é caracterizado por ter um elevado nível de desenvolvimento económico”. Mas, segundo ele, a Ucrânia tem um grande futuro: “A nação que deu à humanidade a Canção, o Pão e as Asas é capaz de transformar-se num dos países líderes do mundo”.
Fomos igualmente informados de que “O trigo que alimenta todo o mundo foi levado por imigrantes ucranianos para os Estados Unidos, Rússia, Canadá, Cazaquistão, Argentina… Durante séculos, os ucranianos criaram as canções folclóricas mais melodiosas do mundo. Nenhuma nação no planeta tem mais de 200 mil canções folclóricas [no seu cancioneiro]. A melodia folclórica ucraniana foi a base da música europeia, e as melodias ucranianas tornaram-se predominantes da Polónia à Rússia, dos EUA ao Japão. Além do pão, os ucranianos deram a canção ao mundo”.
O prolixo Professor Maslyak esclarece-nos ainda que “a identidade nacional ucraniana remonta à cultura Tripiliana que floresceu na Ucrânia há cerca de sete mil anos,” e que “A Ucrânia ainda é, como era há muitos milénios, um dos maiores e mais belos Estados da Europa.”
Por seu lado, Mikhail Galichanets informa-nos de acontecimentos inéditos. Por exemplo, “os números árabes não são árabes, mas ucranianos”; “Os pró-ucranianos arianos estabeleceram-se na Hélade-Grécia e trouxeram a sua cultura mais desenvolvida para cá… Eles habitavam a França e as Ilhas Britânicas, alguns dos proto ucranianos mudaram-se para as montanhas do Cáucaso, Troia, terras hititas e Mesopotâmia”; os proto ucranianos também se estabeleceram no Irão, Mongólia e China, até ao rio Ganges.
Apesar de terem andado por tantos sítios do mundo, os ucranianos esqueceram-se de povoar a região hoje conhecida por Donbass. Teve de ser a Czarina Catarina II, a Grande, a fazê-lo recorrendo a comunidades originárias dos Balcãs, da Grécia e da Rússia.
Ainda na mesma obra, Galichanets refere que “novos estudos científicos mais precisos e confiáveis concluem ser o “indo-europeismo” fruto da imaginação dos europeus ocidentais, e o “pai” dos arianos confirma as estepes da Europa Oriental, isto é, a Ucrânia”. “O nome «ucranianos» e «Ucrânia» está consagrado na escrita cuneiforme assíria e na história helénica posterior”; “A marinha ucraniana surgiu pela primeira vez em 514-513 a.C.”; “A Grande Ucrânia derrotou o exército de Alexandre, o Grande. Esta notável vitória dos ucranianos atingiu de tal modo os colonizadores helénicos que, depois dela, a história não voltou a conhecer guerras entre a Grécia e a Ucrânia”.
Muito fica por dizer sobre estes temas. Não podemos, no entanto, deixar de sublinhar o facto das versões oficiais da história e da geografia da Ucrânia serem fantasias em que largos segmentos da população ucraniana não se reveem. Em vez de agregar e unir, dividem. Não criam nem alimentam um sentido de pertença a um grupo com um passado comum. Muito pelo contrário, provocam desagregação e criam instabilidade social. Não desempenham o papel pretendido.