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Bruna Frascolla
December 22, 2025
© Photo: Public domain

A diferença entre um homem comum e um cientista deveria ser justamente o conhecimento das causas.

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Passadas as turbulências políticas brasileiras, voltemos então ao assunto da ciência moderna, que surgiu no Ocidente católico e se desenvolveu, no começo, entre cientistas católicos e protestantes. Como vimos, o Ocidente é racionalista há mais tempo do que é cristão, e, quando convidado a escolher entre racionalismo ateu e irracionalismo cristão, fica com a primeira opção. Ainda antes da invenção da ciência moderna, os árabes pularam muito rápido da condição tribal para a de civilização sofisticada. O mundo islâmico dominou a filosofia greco-romana e fez avanços formidáveis, como a invenção da álgebra. No entanto, os muçulmanos em sua maioria (sunita) pensaram de maneira diferente da ocidental; e, diante de teorias que poderiam contradizer o Corão, preferiram sacrificar a especulação filosófica e nunca mais se recuperaram.

Para refletir sobre o assunto, usei a História da Idade Média, de Georges Minois. A partir daí, podemos observar também que a narrativa que opõe o obscurantismo religioso à ciência ateia tem mais plausibilidade na história da Rússia do que na história da França, pois enquanto a Revolução Francesa guilhotinou Lavoisier, os comunistas de fato pegaram uma Rússia agrária e, em menos de um século, colocaram-na na corrida espacial. A crermos em Minois, isso tem a ver com a tutela dos monges ortodoxos sobre a vida pública bizantina.

De fato, o ramo bizantino da cristandade parece ter privilegiado a filologia sobre a filosofia, o que levou a um congelamento no tempo: enquanto o ramo romano da cristandade arrisca fazer teoria social (vide a Rerum novarum e seus desdobramentos) para tentar conduzir a humanidade em meio às mudanças sociais, o ramo bizantino permanece fixado no passado. O próprio fato de a Rússia ter se tornado uma potência científica não foi acompanhado, até onde eu saiba, de nenhum equivalente ortodoxo do Pe. Georges Lemaitre ou do frade Gregor Mendel. Por outro lado, o russo de maior importância para a ciência é Mendeleiev, que, tendo morrido antes da Revolução Russa, tinha tudo para ser um perfeito ortodoxo, e não obstante era deísta.

Assim, olhando para o histórico das relações entre ciência e religião, constata-se que a teologia importa mais para o desenvolvimento da ciência do que os fatores como etnia ou clima (nos quais a ciência do século XIX preferiu insistir). Por conseguinte, é de nos perguntarmos se numa era ateia militante ainda é possível termos uma boa ciência.

A mim me parece que não, já que a ciência decadente de hoje tem tudo a ver com uma cosmovisão que substituiu causalidade por estatística. Em primeiro lugar, notemos que nos dias de hoje a curiosidade científica se deslocou da natureza para a técnica. É como se a certeza do Fim da História se aplicasse também à ciência. Tudo se passa como se o universo (humanidade inclusa) fosse plenamente conhecido e explicado, de modo que a única questão pertinente é de natureza operacional, a saber: como pegar todo o conhecimento e criar um supercomputador onisciente capaz de pensar para nós? A IA é uma panaceia; o transumanismo, uma superstição de ricaços que, só por serem ricaços, se acham muito inteligentes.

A visão triunfante nos dias de hoje é muito assemelhada à do ocasionalismo, a teoria inventada pelo místico sufi Algazali segundo a qual não existem causas naturais, mas somente causas sobrenaturais. O principal ocasionalista do Ocidente foi Nicolas Malebranche (1638 – 1715), um padre francês influenciado pelo jansenismo que queria varrer da Igreja a influência aristotélico-tomista e substituí-la por uma idiossincrática combinação de Santo Agostinho com Descartes (que o fazia brigar com os jansenistas, que tinham uma combinação diferente de Santo Agostinho com Descartes). No fim das contas, todo o mundo foi parar no Index.

Como Descartes tem uma dificuldade notória em explicar a interação entre corpo e mente (res extensa e res cogitans), Malebranche resolveu o problema de um jeito radical: corpo e mente de fato não têm nenhum impacto um sobre o outro, e todas as causas que testemunhamos na natureza (e não só a interação mente e corpo) não são mais que a expressão da uniformidade da vontade divina. O fogo não queima todos os dias por causa de alguma característica intrínseca, mas somente porque Deus tem a vontade geral de associar a queimadura ao fogo (se o fogo um dia não queimar, será por um milagre, uma vontade particular de Deus). Não precisamos de uma improvisada glândula pineal cartesiana para explicar como o espírito do assassino consegue mexer o braço que segura a faca: quem faz com que as nossas volições coincidam com as ações é Deus, por meio de sua vontade geral.

Se o uso de Santo Agostinho contra o aristotelismo era uma marca do calvinismo, não é de admirar, portanto, que a filosofia de Malebranche tenha transposto o canal da Mancha e subido para a terra de John Knox, onde o cético escocês David Hume tirou Deus (e Descartes) da equação e criou sua famosa teoria segundo a qual a causalidade não está na natureza, pois é uma projeção humana. Por causa do Hábito, um princípio da natureza humana, o homem não precisa ver o fogo queimar mil vezes, nem ver o sol nascer mil vezes, para inferir que o fogo queima e que o sol nasce todo dia. Assim, em vez de filosofar com cinco elementos e quatro causas (como os aristotélico-tomistas) deveríamos filosofar somente com base na conjunção constante de fenômenos observáveis. O fogo queima porque o fogo queima, isto é, porque o fenômeno da queimadura tem uma conjunção constante com o do fogo. Investigar a natureza é descobrir relações causais, as quais, no fundo, nada mais são do que estatística.

Ora, nos dias de hoje, ciência não é muito diferente de manipulação estatística. A estrutura de um paper é selecionar uma amostragem, fazer experimentos, produzir estatística e alegar causalidade conforme o interesse do patrocinador. Se uma dada quantidade de cobaias tomou uma vacina de covid e contraiu menos covid do que as cobaias que não tomaram a vacina, então a vacina causa um aumento na proteção contra a covid (ainda que, antes de 2020, vacinar-se significasse não uma redução nas chances de adoecer, mas sim a certeza de não adoecer). Quando, depois da vacinação em massa, a população geral passou a ter um monte de infarto, morte súbita e câncer, não se podia culpar a vacina, porque “correlação não implica causa”. Para piorar, não podemos comparar nem os dados das populações que não se submeteram às vacinas ocidentais (como a Venezuela, Cuba, a Rússia e a China), porque seus governos são “autoritários” e portanto seus dados não são “confiáveis”.

Ora, na concepção estatística ou ocasionalista laica da ciência, correlação é a mesma coisa que causalidade. O que esses sacerdotes laicos que atendem pelo nome de divulgadores científicos querem fazer é monopolizar a diferenciação de coincidências e causas – junto com a própria base empírica disponível, já que só valem os dados de países liberais. David Hume sabia que o homem não precisa de um paper revisado por pares para entender que o fogo queima, mas os divulgadores de ciência acham que a população leiga precisa de papers e revisões por pares para fazer inferências causais. Querer que um ser humano tome uma vacina de covid, passe mal e não ligue uma coisa à outra é como querer que a criança enfie o dedo na tomada, tome um choque e não aprenda nada. É antinatural.

A diferença entre um homem comum e um cientista deveria ser justamente o conhecimento das causas. Em vez de tabelas recheadas de dados selecionados, o cientista deveria ter na ponta da língua uma teoria que explicasse as causas. Em vez de uma resposta ocasionalista, como “a onda de infartos e mal súbito se seguiu à covid, portanto, se deve à covid”, a resposta deveria ser “a covid funciona assim-assado, a vacina funciona assim-assado, então a onda de infartos e mal súbito se deve a isso e não àquilo”. Quanto à atual onda de cânceres em jovens (que ninguém teve coragem ainda de atribuir à covid), as matérias jornalísticas que falam em estilo de vida só têm a capacidade de convencer o público cativo, já que, até prova em contrário, não temos por que crer os jovens só passaram a comer mal após a vacinação de covid. Trata-se, como se vê, de um monopólio tirânico do raciocínio causal, que é natural ao homem. Na atual ciência, só um establishment pode determinar qual correlação é causalidade e qual não é, e o povo precisa pedir a bênção da revisão por pares antes de juntar lé com cré.

O ocasionalismo laico também é o pai da “ciência” baseada em modelos matemáticos; afinal, os modelos são baseados em números e isso dispensa todo raciocínio crítico. Se os dados indicam que a proporção de evangélicos cresce a x% por no Brasil, então dentro de y anos o Brasil se tornará um país de maioria evangélica. Seguindo o raciocínio, um dia o Brasil chegará a 100% de evangélicos, e tanto eu quanto os youtubers fãs de Dawkins compraremos a toalhinha com o sebo do Pastor Valdemiro. Parece bobagem e é. Não obstante, durante a pandemia o youtuber Átila Iamarino arranjou um modelo matemático do Imperial College e previu três milhões de mortos de covid “caso nada fosse feito”. Em vez de admitir que usar modelo acriticamente é estupidez, preferiu-se dizer que alguma coisa foi feita, ao mesmo tempo que se acusava Bolsonaro de genocídio por não ter feito nada. É o típico raciocínio que não passa no teste da falseabilidade de Popper, que os divulgadores científicos agora só citam para “socar nazistas”.

Assim, dois problemas saltam à vista na ciência tal como é feita hoje: o espírito triunfal do Fim da História, que faz com que não se pesquise mais a natureza e, em vez disso, se busque apenas inovar em tecnologia; e esse ocasionalismo laico, que desiste de buscar causas, e fica só manipulando estatística.

Da anti-ciência mística à anti-ciência ateia

A diferença entre um homem comum e um cientista deveria ser justamente o conhecimento das causas.

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Passadas as turbulências políticas brasileiras, voltemos então ao assunto da ciência moderna, que surgiu no Ocidente católico e se desenvolveu, no começo, entre cientistas católicos e protestantes. Como vimos, o Ocidente é racionalista há mais tempo do que é cristão, e, quando convidado a escolher entre racionalismo ateu e irracionalismo cristão, fica com a primeira opção. Ainda antes da invenção da ciência moderna, os árabes pularam muito rápido da condição tribal para a de civilização sofisticada. O mundo islâmico dominou a filosofia greco-romana e fez avanços formidáveis, como a invenção da álgebra. No entanto, os muçulmanos em sua maioria (sunita) pensaram de maneira diferente da ocidental; e, diante de teorias que poderiam contradizer o Corão, preferiram sacrificar a especulação filosófica e nunca mais se recuperaram.

Para refletir sobre o assunto, usei a História da Idade Média, de Georges Minois. A partir daí, podemos observar também que a narrativa que opõe o obscurantismo religioso à ciência ateia tem mais plausibilidade na história da Rússia do que na história da França, pois enquanto a Revolução Francesa guilhotinou Lavoisier, os comunistas de fato pegaram uma Rússia agrária e, em menos de um século, colocaram-na na corrida espacial. A crermos em Minois, isso tem a ver com a tutela dos monges ortodoxos sobre a vida pública bizantina.

De fato, o ramo bizantino da cristandade parece ter privilegiado a filologia sobre a filosofia, o que levou a um congelamento no tempo: enquanto o ramo romano da cristandade arrisca fazer teoria social (vide a Rerum novarum e seus desdobramentos) para tentar conduzir a humanidade em meio às mudanças sociais, o ramo bizantino permanece fixado no passado. O próprio fato de a Rússia ter se tornado uma potência científica não foi acompanhado, até onde eu saiba, de nenhum equivalente ortodoxo do Pe. Georges Lemaitre ou do frade Gregor Mendel. Por outro lado, o russo de maior importância para a ciência é Mendeleiev, que, tendo morrido antes da Revolução Russa, tinha tudo para ser um perfeito ortodoxo, e não obstante era deísta.

Assim, olhando para o histórico das relações entre ciência e religião, constata-se que a teologia importa mais para o desenvolvimento da ciência do que os fatores como etnia ou clima (nos quais a ciência do século XIX preferiu insistir). Por conseguinte, é de nos perguntarmos se numa era ateia militante ainda é possível termos uma boa ciência.

A mim me parece que não, já que a ciência decadente de hoje tem tudo a ver com uma cosmovisão que substituiu causalidade por estatística. Em primeiro lugar, notemos que nos dias de hoje a curiosidade científica se deslocou da natureza para a técnica. É como se a certeza do Fim da História se aplicasse também à ciência. Tudo se passa como se o universo (humanidade inclusa) fosse plenamente conhecido e explicado, de modo que a única questão pertinente é de natureza operacional, a saber: como pegar todo o conhecimento e criar um supercomputador onisciente capaz de pensar para nós? A IA é uma panaceia; o transumanismo, uma superstição de ricaços que, só por serem ricaços, se acham muito inteligentes.

A visão triunfante nos dias de hoje é muito assemelhada à do ocasionalismo, a teoria inventada pelo místico sufi Algazali segundo a qual não existem causas naturais, mas somente causas sobrenaturais. O principal ocasionalista do Ocidente foi Nicolas Malebranche (1638 – 1715), um padre francês influenciado pelo jansenismo que queria varrer da Igreja a influência aristotélico-tomista e substituí-la por uma idiossincrática combinação de Santo Agostinho com Descartes (que o fazia brigar com os jansenistas, que tinham uma combinação diferente de Santo Agostinho com Descartes). No fim das contas, todo o mundo foi parar no Index.

Como Descartes tem uma dificuldade notória em explicar a interação entre corpo e mente (res extensa e res cogitans), Malebranche resolveu o problema de um jeito radical: corpo e mente de fato não têm nenhum impacto um sobre o outro, e todas as causas que testemunhamos na natureza (e não só a interação mente e corpo) não são mais que a expressão da uniformidade da vontade divina. O fogo não queima todos os dias por causa de alguma característica intrínseca, mas somente porque Deus tem a vontade geral de associar a queimadura ao fogo (se o fogo um dia não queimar, será por um milagre, uma vontade particular de Deus). Não precisamos de uma improvisada glândula pineal cartesiana para explicar como o espírito do assassino consegue mexer o braço que segura a faca: quem faz com que as nossas volições coincidam com as ações é Deus, por meio de sua vontade geral.

Se o uso de Santo Agostinho contra o aristotelismo era uma marca do calvinismo, não é de admirar, portanto, que a filosofia de Malebranche tenha transposto o canal da Mancha e subido para a terra de John Knox, onde o cético escocês David Hume tirou Deus (e Descartes) da equação e criou sua famosa teoria segundo a qual a causalidade não está na natureza, pois é uma projeção humana. Por causa do Hábito, um princípio da natureza humana, o homem não precisa ver o fogo queimar mil vezes, nem ver o sol nascer mil vezes, para inferir que o fogo queima e que o sol nasce todo dia. Assim, em vez de filosofar com cinco elementos e quatro causas (como os aristotélico-tomistas) deveríamos filosofar somente com base na conjunção constante de fenômenos observáveis. O fogo queima porque o fogo queima, isto é, porque o fenômeno da queimadura tem uma conjunção constante com o do fogo. Investigar a natureza é descobrir relações causais, as quais, no fundo, nada mais são do que estatística.

Ora, nos dias de hoje, ciência não é muito diferente de manipulação estatística. A estrutura de um paper é selecionar uma amostragem, fazer experimentos, produzir estatística e alegar causalidade conforme o interesse do patrocinador. Se uma dada quantidade de cobaias tomou uma vacina de covid e contraiu menos covid do que as cobaias que não tomaram a vacina, então a vacina causa um aumento na proteção contra a covid (ainda que, antes de 2020, vacinar-se significasse não uma redução nas chances de adoecer, mas sim a certeza de não adoecer). Quando, depois da vacinação em massa, a população geral passou a ter um monte de infarto, morte súbita e câncer, não se podia culpar a vacina, porque “correlação não implica causa”. Para piorar, não podemos comparar nem os dados das populações que não se submeteram às vacinas ocidentais (como a Venezuela, Cuba, a Rússia e a China), porque seus governos são “autoritários” e portanto seus dados não são “confiáveis”.

Ora, na concepção estatística ou ocasionalista laica da ciência, correlação é a mesma coisa que causalidade. O que esses sacerdotes laicos que atendem pelo nome de divulgadores científicos querem fazer é monopolizar a diferenciação de coincidências e causas – junto com a própria base empírica disponível, já que só valem os dados de países liberais. David Hume sabia que o homem não precisa de um paper revisado por pares para entender que o fogo queima, mas os divulgadores de ciência acham que a população leiga precisa de papers e revisões por pares para fazer inferências causais. Querer que um ser humano tome uma vacina de covid, passe mal e não ligue uma coisa à outra é como querer que a criança enfie o dedo na tomada, tome um choque e não aprenda nada. É antinatural.

A diferença entre um homem comum e um cientista deveria ser justamente o conhecimento das causas. Em vez de tabelas recheadas de dados selecionados, o cientista deveria ter na ponta da língua uma teoria que explicasse as causas. Em vez de uma resposta ocasionalista, como “a onda de infartos e mal súbito se seguiu à covid, portanto, se deve à covid”, a resposta deveria ser “a covid funciona assim-assado, a vacina funciona assim-assado, então a onda de infartos e mal súbito se deve a isso e não àquilo”. Quanto à atual onda de cânceres em jovens (que ninguém teve coragem ainda de atribuir à covid), as matérias jornalísticas que falam em estilo de vida só têm a capacidade de convencer o público cativo, já que, até prova em contrário, não temos por que crer os jovens só passaram a comer mal após a vacinação de covid. Trata-se, como se vê, de um monopólio tirânico do raciocínio causal, que é natural ao homem. Na atual ciência, só um establishment pode determinar qual correlação é causalidade e qual não é, e o povo precisa pedir a bênção da revisão por pares antes de juntar lé com cré.

O ocasionalismo laico também é o pai da “ciência” baseada em modelos matemáticos; afinal, os modelos são baseados em números e isso dispensa todo raciocínio crítico. Se os dados indicam que a proporção de evangélicos cresce a x% por no Brasil, então dentro de y anos o Brasil se tornará um país de maioria evangélica. Seguindo o raciocínio, um dia o Brasil chegará a 100% de evangélicos, e tanto eu quanto os youtubers fãs de Dawkins compraremos a toalhinha com o sebo do Pastor Valdemiro. Parece bobagem e é. Não obstante, durante a pandemia o youtuber Átila Iamarino arranjou um modelo matemático do Imperial College e previu três milhões de mortos de covid “caso nada fosse feito”. Em vez de admitir que usar modelo acriticamente é estupidez, preferiu-se dizer que alguma coisa foi feita, ao mesmo tempo que se acusava Bolsonaro de genocídio por não ter feito nada. É o típico raciocínio que não passa no teste da falseabilidade de Popper, que os divulgadores científicos agora só citam para “socar nazistas”.

Assim, dois problemas saltam à vista na ciência tal como é feita hoje: o espírito triunfal do Fim da História, que faz com que não se pesquise mais a natureza e, em vez disso, se busque apenas inovar em tecnologia; e esse ocasionalismo laico, que desiste de buscar causas, e fica só manipulando estatística.

A diferença entre um homem comum e um cientista deveria ser justamente o conhecimento das causas.

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Escreva para nós: info@strategic-culture.su

Passadas as turbulências políticas brasileiras, voltemos então ao assunto da ciência moderna, que surgiu no Ocidente católico e se desenvolveu, no começo, entre cientistas católicos e protestantes. Como vimos, o Ocidente é racionalista há mais tempo do que é cristão, e, quando convidado a escolher entre racionalismo ateu e irracionalismo cristão, fica com a primeira opção. Ainda antes da invenção da ciência moderna, os árabes pularam muito rápido da condição tribal para a de civilização sofisticada. O mundo islâmico dominou a filosofia greco-romana e fez avanços formidáveis, como a invenção da álgebra. No entanto, os muçulmanos em sua maioria (sunita) pensaram de maneira diferente da ocidental; e, diante de teorias que poderiam contradizer o Corão, preferiram sacrificar a especulação filosófica e nunca mais se recuperaram.

Para refletir sobre o assunto, usei a História da Idade Média, de Georges Minois. A partir daí, podemos observar também que a narrativa que opõe o obscurantismo religioso à ciência ateia tem mais plausibilidade na história da Rússia do que na história da França, pois enquanto a Revolução Francesa guilhotinou Lavoisier, os comunistas de fato pegaram uma Rússia agrária e, em menos de um século, colocaram-na na corrida espacial. A crermos em Minois, isso tem a ver com a tutela dos monges ortodoxos sobre a vida pública bizantina.

De fato, o ramo bizantino da cristandade parece ter privilegiado a filologia sobre a filosofia, o que levou a um congelamento no tempo: enquanto o ramo romano da cristandade arrisca fazer teoria social (vide a Rerum novarum e seus desdobramentos) para tentar conduzir a humanidade em meio às mudanças sociais, o ramo bizantino permanece fixado no passado. O próprio fato de a Rússia ter se tornado uma potência científica não foi acompanhado, até onde eu saiba, de nenhum equivalente ortodoxo do Pe. Georges Lemaitre ou do frade Gregor Mendel. Por outro lado, o russo de maior importância para a ciência é Mendeleiev, que, tendo morrido antes da Revolução Russa, tinha tudo para ser um perfeito ortodoxo, e não obstante era deísta.

Assim, olhando para o histórico das relações entre ciência e religião, constata-se que a teologia importa mais para o desenvolvimento da ciência do que os fatores como etnia ou clima (nos quais a ciência do século XIX preferiu insistir). Por conseguinte, é de nos perguntarmos se numa era ateia militante ainda é possível termos uma boa ciência.

A mim me parece que não, já que a ciência decadente de hoje tem tudo a ver com uma cosmovisão que substituiu causalidade por estatística. Em primeiro lugar, notemos que nos dias de hoje a curiosidade científica se deslocou da natureza para a técnica. É como se a certeza do Fim da História se aplicasse também à ciência. Tudo se passa como se o universo (humanidade inclusa) fosse plenamente conhecido e explicado, de modo que a única questão pertinente é de natureza operacional, a saber: como pegar todo o conhecimento e criar um supercomputador onisciente capaz de pensar para nós? A IA é uma panaceia; o transumanismo, uma superstição de ricaços que, só por serem ricaços, se acham muito inteligentes.

A visão triunfante nos dias de hoje é muito assemelhada à do ocasionalismo, a teoria inventada pelo místico sufi Algazali segundo a qual não existem causas naturais, mas somente causas sobrenaturais. O principal ocasionalista do Ocidente foi Nicolas Malebranche (1638 – 1715), um padre francês influenciado pelo jansenismo que queria varrer da Igreja a influência aristotélico-tomista e substituí-la por uma idiossincrática combinação de Santo Agostinho com Descartes (que o fazia brigar com os jansenistas, que tinham uma combinação diferente de Santo Agostinho com Descartes). No fim das contas, todo o mundo foi parar no Index.

Como Descartes tem uma dificuldade notória em explicar a interação entre corpo e mente (res extensa e res cogitans), Malebranche resolveu o problema de um jeito radical: corpo e mente de fato não têm nenhum impacto um sobre o outro, e todas as causas que testemunhamos na natureza (e não só a interação mente e corpo) não são mais que a expressão da uniformidade da vontade divina. O fogo não queima todos os dias por causa de alguma característica intrínseca, mas somente porque Deus tem a vontade geral de associar a queimadura ao fogo (se o fogo um dia não queimar, será por um milagre, uma vontade particular de Deus). Não precisamos de uma improvisada glândula pineal cartesiana para explicar como o espírito do assassino consegue mexer o braço que segura a faca: quem faz com que as nossas volições coincidam com as ações é Deus, por meio de sua vontade geral.

Se o uso de Santo Agostinho contra o aristotelismo era uma marca do calvinismo, não é de admirar, portanto, que a filosofia de Malebranche tenha transposto o canal da Mancha e subido para a terra de John Knox, onde o cético escocês David Hume tirou Deus (e Descartes) da equação e criou sua famosa teoria segundo a qual a causalidade não está na natureza, pois é uma projeção humana. Por causa do Hábito, um princípio da natureza humana, o homem não precisa ver o fogo queimar mil vezes, nem ver o sol nascer mil vezes, para inferir que o fogo queima e que o sol nasce todo dia. Assim, em vez de filosofar com cinco elementos e quatro causas (como os aristotélico-tomistas) deveríamos filosofar somente com base na conjunção constante de fenômenos observáveis. O fogo queima porque o fogo queima, isto é, porque o fenômeno da queimadura tem uma conjunção constante com o do fogo. Investigar a natureza é descobrir relações causais, as quais, no fundo, nada mais são do que estatística.

Ora, nos dias de hoje, ciência não é muito diferente de manipulação estatística. A estrutura de um paper é selecionar uma amostragem, fazer experimentos, produzir estatística e alegar causalidade conforme o interesse do patrocinador. Se uma dada quantidade de cobaias tomou uma vacina de covid e contraiu menos covid do que as cobaias que não tomaram a vacina, então a vacina causa um aumento na proteção contra a covid (ainda que, antes de 2020, vacinar-se significasse não uma redução nas chances de adoecer, mas sim a certeza de não adoecer). Quando, depois da vacinação em massa, a população geral passou a ter um monte de infarto, morte súbita e câncer, não se podia culpar a vacina, porque “correlação não implica causa”. Para piorar, não podemos comparar nem os dados das populações que não se submeteram às vacinas ocidentais (como a Venezuela, Cuba, a Rússia e a China), porque seus governos são “autoritários” e portanto seus dados não são “confiáveis”.

Ora, na concepção estatística ou ocasionalista laica da ciência, correlação é a mesma coisa que causalidade. O que esses sacerdotes laicos que atendem pelo nome de divulgadores científicos querem fazer é monopolizar a diferenciação de coincidências e causas – junto com a própria base empírica disponível, já que só valem os dados de países liberais. David Hume sabia que o homem não precisa de um paper revisado por pares para entender que o fogo queima, mas os divulgadores de ciência acham que a população leiga precisa de papers e revisões por pares para fazer inferências causais. Querer que um ser humano tome uma vacina de covid, passe mal e não ligue uma coisa à outra é como querer que a criança enfie o dedo na tomada, tome um choque e não aprenda nada. É antinatural.

A diferença entre um homem comum e um cientista deveria ser justamente o conhecimento das causas. Em vez de tabelas recheadas de dados selecionados, o cientista deveria ter na ponta da língua uma teoria que explicasse as causas. Em vez de uma resposta ocasionalista, como “a onda de infartos e mal súbito se seguiu à covid, portanto, se deve à covid”, a resposta deveria ser “a covid funciona assim-assado, a vacina funciona assim-assado, então a onda de infartos e mal súbito se deve a isso e não àquilo”. Quanto à atual onda de cânceres em jovens (que ninguém teve coragem ainda de atribuir à covid), as matérias jornalísticas que falam em estilo de vida só têm a capacidade de convencer o público cativo, já que, até prova em contrário, não temos por que crer os jovens só passaram a comer mal após a vacinação de covid. Trata-se, como se vê, de um monopólio tirânico do raciocínio causal, que é natural ao homem. Na atual ciência, só um establishment pode determinar qual correlação é causalidade e qual não é, e o povo precisa pedir a bênção da revisão por pares antes de juntar lé com cré.

O ocasionalismo laico também é o pai da “ciência” baseada em modelos matemáticos; afinal, os modelos são baseados em números e isso dispensa todo raciocínio crítico. Se os dados indicam que a proporção de evangélicos cresce a x% por no Brasil, então dentro de y anos o Brasil se tornará um país de maioria evangélica. Seguindo o raciocínio, um dia o Brasil chegará a 100% de evangélicos, e tanto eu quanto os youtubers fãs de Dawkins compraremos a toalhinha com o sebo do Pastor Valdemiro. Parece bobagem e é. Não obstante, durante a pandemia o youtuber Átila Iamarino arranjou um modelo matemático do Imperial College e previu três milhões de mortos de covid “caso nada fosse feito”. Em vez de admitir que usar modelo acriticamente é estupidez, preferiu-se dizer que alguma coisa foi feita, ao mesmo tempo que se acusava Bolsonaro de genocídio por não ter feito nada. É o típico raciocínio que não passa no teste da falseabilidade de Popper, que os divulgadores científicos agora só citam para “socar nazistas”.

Assim, dois problemas saltam à vista na ciência tal como é feita hoje: o espírito triunfal do Fim da História, que faz com que não se pesquise mais a natureza e, em vez disso, se busque apenas inovar em tecnologia; e esse ocasionalismo laico, que desiste de buscar causas, e fica só manipulando estatística.

The views of individual contributors do not necessarily represent those of the Strategic Culture Foundation.

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