A discrepância entre a terra arrasada e a pieguice das mensagens de paz e amor poderia render mais um texto que abusa do adjetivo “orwelliano”.
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No segundo mês do cerco a Gaza, o governo de Israel divulgou imagens da “primeira bandeira do orgulho já levantada em Gaza”. Numa foto, um bigodudo sorridente, de braços abertos, trazia a bandeira do arco-íris com a inscrição “Em nome do amor” em inglês e, presume-se, em árabe e hebraico. Ele estava sobre terra arrasada. Lá atrás, viam-se prédios em ruínas (sabe-se lá se aquelas ruínas ainda estão de pé). Após o anúncio, o texto da postagem explicava: “Yoav Atzmoni, que é um membro da comunidade LGBTQ+, quis enviar uma mensagem de esperança às pessoas de Gaza que vivem sob a brutalidade do Hamas. Sua intenção foi levantar a primeira bandeira do orgulho em Gaza e clamar por paz e liberdade.”
A discrepância entre a terra arrasada e a pieguice das mensagens de paz e amor poderia render mais um texto que abusa do adjetivo “orwelliano”. O que creio ser pouco notado, ou pouco explicado, é essa junção entre a direita religiosa (protestante e judaica) e o proselitismo LGBT. As poucas tentativas de explicação que vi partiram de gays simpáticos à causa palestina, que chamaram a prática de pink washing: pegar uma ação espúria e “lavá-la” com a bandeira gay. O problema dessa explicação é que ela só pode dar conta do apoio da esquerda ao sionismo; afinal, para a direita religiosa, a bandeira gay deveria sujar de rosa, não lavar de rosa, o profetizado Estado de Israel. Embora exista apoio da esquerda ongueira ao país, eu, particularmente, nunca vi nenhuma explicação que remeta o poder do lobby israelense a esses operários do capital. Assim, o pink washing não serve para convencer os setores-chaves do apoio a Israel.
Para responder a essa questão, li O lado certo da História: Como a Razão e o Propósito Moral tornaram o Ocidente Grande (Alta Cult, 2019), de Ben Shapiro. Ele é um judeu ortodoxo sionista norte-americano, dono de uma empresa de mídia conservadora, e muito pró establishment: embora seja de direita, é contra Trump e durante a pandemia mandava todo o mundo “seguir a ciência”, i. e., tomar as injeções da Pfizer.
O próprio subtítulo já ecoa o slogan de Trump numa versão modificada: em vez de esperar que os EUA se tornassem grandes outra vez, o estadunidense deve se orgulhar de uma outra pátria – o Ocidente – que, no passado, tornou-se grande. E como a velha cantilena da decadência do Ocidente, tópico comum entre ideólogos do racismo científico e do nazismo, voltou à moda nos dias de hoje, o que o leitor pode esperar é mais uma obra desse gênero, agora repaginada e pintada com ares de bom-mocismo.
Basta trocar raça por cultura. Temos então uma narrativa de como o “Ocidente” (um monobloco que de alguma maneira engloba gregos antigos e ingleses puritanos) se constituiu como uma civilização superior às demais; a ela se segue uma explicação algo abrupta e sucinta do porquê de ele ter entrado em decadência e, por fim, o autor exorta os seus leitores a tomarem de volta os rumos direitos do Ocidente.
Quanto à narrativa do triunfo original do Ocidente, Ben Shapiro é uma espécie de Alfred Rosenberg ao contrário: enquanto o nazista, em O mito do século XX, atribuía a decadência ariana à fusão com os povos semitas num passado remoto, o sionista atribui a supremacia do Ocidente à fusão entre Atenas e Jerusalém; ou seja, entre o legado filosófico dos pagãos e o legado bíblico dos semitas. Ambos seriam forças antagônicas que vivem em eterno conflito; porém, se esse conflito sofrer um desequilíbrio que anule Atenas ou Jerusalém, o Ocidente decai. Assim, temos que ficar vigilantes o tempo inteiro para a junção não desandar, senão cairemos na animalidade e no obscurantismo que caracterizam o mundo não-ocidental.
De fato, Ben Shapiro revela uma extraordinária ignorância quanto a tudo o que não pertence ao dito Ocidente – o qual, na verdade, é o mundo protestante liberal, e Ben Shapiro dá tratos à bola para conectar com a Antiguidade Clássica sem o macular muito com a Idade Média.
Vou fazer uma longa citação para ilustrar: “Essas noções complementares – pérolas dos mestres espirituais [de Atenas e Jerusalém] – estruturaram a nossa civilização e a nós, enquanto indivíduos. Se você acredita que a vida não se resume a prazeres materiais e a fugir da dor, você é fruto de Jerusalém e de Atenas. Se acredita que o governo não tem o direito de se intrometer no exercício de sua vontade individual, e se sente obrigado a buscar a virtude pela força do desejo moral, você é fruto de Jerusalém e Atenas. Se acredita que somos capazes de melhorar nosso mundo pelo uso de nossa razão, e se sente compelido a fazê-lo por um propósito maior, você é um fruto de Jerusalém e de Atenas.
“Jerusalém e Atenas construíram a ciência. Os ideais complementares de valores judaico-cristãos e a razão da lei natural grega construíram os direitos humanos. Elas construíram a prosperidade, acabaram com a escravidão, derrotaram os nazistas e os comunistas, tiraram bilhões da pobreza e ofereceram a bilhões um propósito espiritual. Jerusalém e Atenas foram os alicerces da Carta Magna e do Tratado de Vestfália; elas foram os alicerces da Declaração de Independência [dos EUA], da Proclamação da Emancipação de Abraham Lincoln e da Carta de Martin Luther King Jr. escrita na Cadeia de Birmingham” (p. xxviii-xxix).
No frigir dos ovos, se você é marxista ou nazista, não é ocidental, porque o ocidental é liberal (quer governo mínimo). Já a culturas ascéticas do Oriente, conhecidas e descritas pelos gregos desde a Antiguidade, não existem no esquema de Shapiro, já que todo aquele que não vive para buscar o prazer e evitar a dor é ocidental. Como é tudo uma questão de mentalidade individual, a solução para os males do Ocidente está ao alcance nível da autoajuda: se não nos conscientizarmos dos valores “ocidentais” (ou antes protestantes puritanos), viramos comunistas e acabamos na mesma animalidade que os povos moreninhos de modo geral.
O provincianismo de Shapiro e sua estreiteza histórica impressionam: ele tem a capacidade de dizer que os EUA são hoje o país “mais igualitário do ponto de vista racial […] em nossa história – mais do que qualquer outra sociedade da história. Em 1958, apenas 4% dos norte-americanos brancos aprovavam o casamento entre brancos e negros; a partir de 2013, esse número era de 87%” (p. xxi). Quantos brasileiros teriam coragem de se opor, num censo, ao casamento de brancos com negros? E se formos generosos o bastante para considerar racismo e etnocentrismo a mesma coisa, qualquer um informado sobre história antiga sabe que Roma se fez com casamentos “mistos”, e que Alexandre, o Grande, casou gregos com persas. No histórico ocidental, anormal é a segregação.
Embora Ben Shapiro seja um judeu ortodoxo que integra o lobby pró Israel, ele, com sua estreitíssima visão histórica e antropológica, enxerga os Estados Unidos como pináculo inconteste da história da humanidade. É o equilíbrio próprio atingido entre Atenas e Jerusalém depois de o Ocidente se libertar da Idade Média e do suposto centralismo da Igreja Católica.
E assim chegamos à explicação afinal: se o Ocidente é também liberalismo (“Atenas”), caso se reprimisse o proselitismo LGBT, o equilíbrio se romperia e cairíamos na barbárie. Assim como é errado suprimir Jerusalém, como fizeram o comunismo e o nazismo, é errado suprimir Atenas. Assim, ali onde há uma bandeira do Orgulho Gay, há liberalismo e pode haver Ocidente. Em uma área tão religiosa como o Oriente Médio, o símbolo da cruz não significa muita coisa para o ocidental à Shapiro; por outro lado, a bandeira do arco-íris indica que ali há “Atenas”. Mas é claro que essa “Atenas” aí é só liberalismo, e um liberalismo secularista: pois se cada credo deve ser uma questão de âmbito privado, o proselitismo de estilos de vida e de valores desatrelados da religião está liberado.
Nem sempre o liberalismo dos EUA foi assim. Na Guerra Fria, os fundamentalistas islâmicos do Afeganistão atraíam simpatia por sua religiosidade, que os fazia ótimos soldados anticomunistas. O próprio termo “fundamentalismo” é aplicado originalmente a protestantes dos EUA, e a cunhagem do termo “fundamentalismo islâmico” não pode ser destituída de algum propósito propagandístico. Hoje, porém, qualquer religiosidade desconectada de “Atenas” é vista como má em si mesma – anti-Ocidental.
Com certeza Ben Shapiro não é um raio em céu azul. O livro comentado aqui foi publicado em inglês em 2016. Este ano, o ateu Richard Dawkins, que passou décadas tratando todo religioso como retardado mental, declarou-se como “culturalmente cristão”.