A expansão do cristianismo foi bastante atípica, pois dependeu do convencimento num império que, no início, não tolerava a nova fé.
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Desde a sua origem, o cristianismo é uma religião essencialmente universalista e exotérica. Os apóstolos receberam a missão de espalhar a boa nova para toda a humanidade, e São Paulo salientava que doravante não haveria mais judeu nem grego; isto é, as distinções étnicas não teriam mais relevância religiosa.
A expansão do cristianismo foi bastante atípica, pois dependeu do convencimento num império que, no início, não tolerava a nova fé. No entanto, a cultura mesma desse império deixou uma brecha que viria a moldar muito do cristianismo: o apreço pela filosofia, pelo conhecimento e pela racionalidade de modo geral. Embora Roma tivesse como religião pública um paganismo normal, sem sofisticação filosófica, a atitude do Império diante da filosofia era a mais reverente possível, e os romanos davam aos pensadores uma imensa liberdade para buscar todo tipo de conhecimento, sem tabus para a fé. Assim, o movimento iniciado entre pescadores pobres da periférica Judeia foi estimulado, pelo meio romano, a se intelectualizar e a dominar a filosofia. O cristianismo seguiu, de maneira dolorida e tortuosa, o caminho trilhado com rapidez e conforto pela cultura grega no Império Romano.
Mas há também um fator intrínseco ao próprio cristianismo que o tornou propício para trilhar tal caminho. As outras religiões abraâmicas, o judaísmo e o islamismo, têm rígidas normas escritas que se confundem com leis consuetudinárias e não deixam um espaço nobre para o exercício da racionalidade. Aplicar a xaria, pensada para tribos nômades da Idade Média, é difícil. Viver como judeu ultraortodoxo, idem. No cristianismo, havia no início o ensinamento de Jesus, que não tinha nada que amarrasse os seus futuros desenvolvimentos à realidade judaica do século I. Ao contrário: a lei antiga foi deixada para trás, e um cristão não teria de se preocupar com os infinitos tabus alimentares judaicos, nem com circuncisão. Ora, se a lei não está toda dada, é preciso fazer o uso da razão para criá-la em variados países, épocas e instituições. A própria Igreja tem o seu Direito Canônico, que bebe do Direito Romano.
Assim, podemos dizer que o cristianismo é a mais racionalista das religiões existentes desde a Antiguidade. Quiçá a única a abrigar de maneira coerente um certo racionalismo, já que, se o paganismo simplesmente se silenciava diante das especulações e dava liberdade, o cristianismo via a razão como um dom de Deus, e levava muito a sério as especulações racionais. Conhecer a verdade – seja a do mundo natural ou das coisas da fé – é uma tarefa nobre e necessária para evitar todo tipo de erro. Só mesmo com muita propaganda protestante e, depois, iluminista, é possível representar a civilização do aristotélico S. Tomás de Aquino como um poço de obscurantismo e irracionalismo. Essa é uma projeção anacrônica do próprio protestantismo; afinal, foi Lutero quem declarou que a razão é uma prostituta do demônio e, portanto, uma inimiga da fé.
Se o cristianismo ocidental era, de certa forma, racionalista, então a Europa ocidental tem mais tempo como racionalista do que como cristã – e aí podemos concluir que a Reforma Protestante foi mais traumática por cassar o racionalismo do que por cassar o catolicismo. Tanto é que, quando convidado a escolher entre fé e razão, o europeu ocidental manda a fé para as cucuias.
Não é de admirar, portanto, que a ciência moderna tenha aparecido nas áreas católicas e prosperado na Europa Ocidental, seja católica, protestante ou iluminista. Como a propaganda protestante e iluminista reescreve a História, não custa lembrar ou informar que o grande marco da ciência moderna – a Revolução Copernicana – foi iniciada por um polonês (Copérnico), continuada por um italiano (Galileu) e encontrou num francês (Descartes, que não era nenhum huguenote) o primeiro filósofo capaz de criar uma metafísica para embasar a nova física não-aristotélica que a Revolução Copernicana pressupunha (afinal, no aristotelismo, a terra está no centro do universo por ser o elemento mais pesado, e tudo o que está acima da lua é composto do elemento éter, o mais leve de todos).
Na verdade, o De revolutionibus (1543) de Copérnico só foi parar no Index no século XVII, e a Igreja mantinha na filosofia natural (que englobava a física e a astronomia) uma grande liberdade especulativa: Copérnico apresenta, em tese, um novo modelo de cálculo astronômico – embora todos os leitores entendessem muito bem que seria muito difícil a filosofia natural avalizada pela Igreja explicar por que esse modelo de cálculo acertava tanto.
Acontece que não era necessário ser um católico defensor do aristotelismo para se incomodar com o heliocentrismo. Por razões religiosas, Lutero e Melanchton se incomodaram e empreenderam uma campanha contra Copérnico. Houve quem tentasse quadrar o círculo, isto é, manter o geocentrismo e o modelo de cálculo copernicano. Assim, o astrônomo luterano Tycho Brahe criou um modelo em que os planetas giravam em torno do sol, e o sol girava em torno da terra.
O problema da Igreja universal com o heliocentrismo não era elaborado em termos de fé versus razão; o problema era que a Igreja já tinha, por assim dizer, uma filosofia oficial completa que compreendia a física e a astronomia: o aristotelismo cristianizado por Tomás de Aquino. E se a Igreja estava disposta a aceitar uma porção de especulações, isso não queria dizer que estivesse disposta a declarar falsa, de supetão, a sua filosofia natural, sem ter o que pôr no lugar. Foi praticamente isso o que Galileu fez, confiante demais porque era amigo do papa.
O mundo protestante, que em princípio seria refratário a Copérnico e à “prostituta do demônio”, se animou com a possibilidade de estudar a natureza para mostrar que a Igreja católica se apoiava sobre uma falsa filosofia – e, de francamente irracionalista, passou a se convencer de que era um defensor da liberdade dos homens de ciência contra a maldade e o obscurantismo da Inquisição. Além de liberdade religiosa, o mundo protestante agora reivindicava liberdade científica.
Os protestantes poderiam ter se fechado em si mesmos e inventado uma física luterana, uma astronomia calvinista, do mesmo jeito que os soviéticos criaram uma biologia soviética (o lysenkoismo). Por alguma razão, porém, a maioria esmagadora dos cientistas protestantes admitiu no âmbito da ciência aquilo que negava à fé: a universalidade. A ciência verdadeira teria que ser verdadeira também para os cientistas católicos – que, em vez de acatar as proibições do Index e aderir à ciência oficial, mantiveram intercâmbio com os cientistas protestantes. Assim, a universalidade banida pela Reforma Protestante volta à cena pela ciência. Aí está a origem do cientificismo: se a ciência passa a ser o terreno comum de uma sociedade de várias religiões, então os cientistas acabam investidos de autoridade política e moral.
Acontece, porém, que essa escolha da ciência como um terreno comum tem um precedente justo na Idade Média, e justo com o aristotelismo. A exegese da obra aristotélica levava judeus, cristãos e muçulmanos a se lerem e comentarem, reconhecendo assim uma autoridade racional independente da fé.
Se pensarmos na existência desse diálogo medieval, na dimensão da erudição bizantina e, mais ainda, nos grandes feitos dos muçulmanos (que revolucionaram a matemática), fica difícil entendermos por que eles não participaram da criação da ciência moderna, nem tiveram um desenvolvimento análogo em paralelo.
Aqui, vimos por que a ciência moderna e o cientificismo surgiram na Europa Ocidental. Falta ver por que não surgiram algures.


