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Bruna Frascolla
September 3, 2025
© Photo: Public domain

Se procurarmos um intelectual responsável pelo consenso de que o marxismo estava morto, o nome mais plausível é o de um anti-hegeliano crítico das previsões históricas inexoráveis: Karl Popper.

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Escreva para nós: info@strategic-culture.su

O triunfalismo capitalista pós Guerra Fria tem seu ícone em Fukuyama, o filósofo hegeliano segundo o qual a humanidade chegara ao Fim da História. Com a derrota da União Soviética, a Humanidade havia alcançado sua forma político-econômica final: a democracia de livre mercado representada pelos Estados Unidos.

A bem da verdade, essa é uma ideia maluca que só pôde cativar um nicho de liberais fanáticos. Esse sentimento de que a Humanidade atravessa etapas da História até alcançar o final feliz é recorrente na cristandade ocidental pelo menos desde Joaquim de Fiore, morto no ano de 1202. Para ele, a História divide-se em três partes: a Idade do Pai, correspondente ao Velho Testamento, a Idade do Filho, correspondente ao Novo Testamento, e a vindoura Idade do Espírito Santo, na qual a humanidade inteira viveria em caridade, partilhando as coisas num espírito comunitário. A abundância seria para todos, e essa fase se pareceria com o céu na terra. Basicamente, comunismo. E a Reforma Protestante desencadeou também um surto de comunismo (vide Münster), donde podemos ver que as ideias de uma era ateia têm uma fácil conexão com um passado religioso.

O joaquimismo foi considerado heresia e perseguido, mas teve muita influência no protestantismo e até no ateísmo. A divisão tripartite da história, mesmo, reapareceria ateia, revestida com ares de ciência, através de Auguste Comte. Em vez de Idades do Pai, do Filho e do Espírito Santo, no positivismo temos o Estado Teológico, Estado Metafísico e Estado Positivo. A humanidade começa explicando as coisas por meio de entidades sobrenaturais, evolui para explicações metafísicas (como era antes da ciência moderna) e finalmente chega à era da ciência, o estado final da História. Ainda assim, o Fim da História joaquimista se assemelha mais ao comunismo do que ao positivismo.

É da tradição cristã enxergar a história humana como uma história de progresso, e é da tradição judaica o profetismo. Podemos então chamar de judaico-cristão esse hábito de enxergar a História como um grande arco que conduz a um final feliz. A chegada do cientificismo no século XIX e o triunfo do ateísmo no século XX mascararam como científico e empírico aquilo que é, no fundo, muito religioso.

O reset da História

Fukuyama fez o derradeiro esquema histórico de fundo escatológico, e veio justo no final do século XX. Em vez de prever o comunismo no Fim da História, ele disse que o Fim da História já chegou e é capitalista. No entanto, não vemos por aí muitos anticomunistas crentes de que vivemos no Fim da História. Em vez disso, o discurso anticomunista mainstream é o de que o comunismo “não funciona”, pois deu errado onde foi testado. Ou seja, é um discurso empirista, não escatológico como o de Fukuyama.

Se procurarmos um intelectual responsável pelo consenso de que o marxismo estava morto, o nome mais plausível é o de um anti-hegeliano crítico das previsões históricas inexoráveis: Karl Popper. A um só tempo liberal e epistemólogo, já em 1945 publicou a obra A sociedade aberta e os seus inimigos, na qual faz uma crítica de Marx baseada nas previsões do materialismo dialético. Marx fazia previsões históricas, e uma delas – talvez a mais importante – era a de que o fim da história seria comunista. O capitalismo entraria em grave crise e colapsaria; depois viria o comunismo, um paraíso na terra. Não obstante, a revolução comunista chegou primeiro a um país agrário (a Rússia); e a Inglaterra, a despeito de todo o avanço do seu capitalismo, não dava mostras de que se tornaria um país comunista.

O senso comum anticomunista vai por aí: a experiência refuta o marxismo. O melhor é que Popper, ao contrário de Fukuyama, fez essa previsão quando os EUA ainda eram aliados da URSS e a Guerra Fria nem havia começado. Popper gostava de previsões e acertou em cheio quando predisse o fracasso do comunismo.

Isso acabou tendo um efeito colateral nocivo para a sociedade: em vez de pensarmos num longo arco histórico, caímos num binarismo míope. Ou a previsão de Marx se corrobora, ou se refuta. Uma vez que foi refutada, podemos jogar Marx fora e procurar novos sistemas, sempre olhando para o futuro, com o fito de fazer previsões. É como se a história da humanidade começasse no século XX, e como se só existissem comunismo e capitalismo – ou, de modo mais abstrato, totalitarismo e liberalismo.

Um longo experimento esquecido

A concepção empírica da história não é incompatível com o longo prazo. O cético iluminista David Hume considerava a História o grande laboratório por meio do qual a natureza humana é conhecida. Venderam como água na França os seus Ensaios e tratados sobre vários assuntos, cujo escopo ia da economia às artes e usava como referência tanto Heródoto como as atualidades.

O iluminismo sem dúvida tem muitos defeitos, mas não era cego para a riqueza da diversidade humana através da história e das culturas. Jamais um iluminista ousaria pensar em qualquer questão política tendo em vista apenas dois modelos econômicos do século presente. Por outro lado, nos dias de hoje, as discussões humanísticas mais abrangentes são obcecadas pela economia e apontam ou para os fracassos do comunismo no século XX ou para as glórias da desregulamentação em países asiáticos. Tanto para liberais como para marxistas, a discussão civilizacional é antes de tudo econômica.

Essa discussão é tanto mais estapafúrdia porque na política institucional, em todas as democracias ocidentais, não há partidos fortes que prometam nem o comunismo. Para piorar, as discussões políticas da classe média largaram a economia e se agarraram de maneira histérica aos costumes: de um lado, o esquerdista do século XXI resolveu que defender travestis é uma coisa muito importante para o bem estar social; e, de outro, o direitista congelado na Guerra Fria resolveu que ter uma família conservadora é tudo o que importa – mesmo que a atual organização econômica inviabilize o pai de família tradicional que sustenta esposa e filhos com o suor do trabalho.

Como teoria política e econômica, o liberalismo tem cerca de 400 anos de idade. Sua pátria de nascença é a Inglaterra, e a ideologia está estritamente ligada à Reforma Protestante. Durante a Era dos Descobrimentos, o projeto liberal era encarnado pela Inglaterra e Holanda, e ambas tinham como antagonista o projeto católico encarnado por Espanha e Portugal. Toda apreciação do capitalismo ou do liberalismo tem que começar do começo, em vez de cotejá-lo somente com o fantasma do comunismo.

No que depender do legado holandês, nada de bom pode ser dito do liberalismo. Enquanto os países ibéricos criaram o Brasil, o México, a Argentina – países grandes, mestiços e com nível de vida razoável – a Holanda criou o Suriname, basicamente um depósito amazônico de trabalhadores forçados (negros e indianos). O grande sucesso do projeto liberal chama-se Estados Unidos, uma colônia rebelde cuja hegemonia não parece que vai conseguir completar cem anos. Cem anos são um piscar de olhos na História. Já o Siglo de Oro espanhol chegou perto de duzentos anos.

Enquanto os Estados protestantes liberais conquistavam povos por meio de companhias mercantes militarizadas que visavam ao lucro dos acionistas, as duas coroas católicas levavam o Estado aos novos mundos, e seus domínios eram reconhecidos pelo Vaticano por causa de sua missão de converter os pagãos ao catolicismo. Embora sem dúvida houvesse atividades comerciais que visavam ao lucro, este não podia ser o único objetivo do Estado.

Será verdade que o egoísmo de um Mandeville é melhor para fundar sociedades do que o planejamento estatal moralmente ordenado? Para responder a essa questão com base na experiência, não podemos cair na dicotomia da Guerra Fria, nem negligenciar os projetos antagônicos da Era dos Descobrimentos. Na verdade, desde o fim do comunismo, deveríamos voltar nossos olhos para esse passado mais remoto, já que o liberalismo voltou a enfrentar aqueles que esperam um Estado planejador que tenha como fim o bem dos homens.

O liberalismo precisa de um eterno século XX

Se procurarmos um intelectual responsável pelo consenso de que o marxismo estava morto, o nome mais plausível é o de um anti-hegeliano crítico das previsões históricas inexoráveis: Karl Popper.

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Escreva para nós: info@strategic-culture.su

O triunfalismo capitalista pós Guerra Fria tem seu ícone em Fukuyama, o filósofo hegeliano segundo o qual a humanidade chegara ao Fim da História. Com a derrota da União Soviética, a Humanidade havia alcançado sua forma político-econômica final: a democracia de livre mercado representada pelos Estados Unidos.

A bem da verdade, essa é uma ideia maluca que só pôde cativar um nicho de liberais fanáticos. Esse sentimento de que a Humanidade atravessa etapas da História até alcançar o final feliz é recorrente na cristandade ocidental pelo menos desde Joaquim de Fiore, morto no ano de 1202. Para ele, a História divide-se em três partes: a Idade do Pai, correspondente ao Velho Testamento, a Idade do Filho, correspondente ao Novo Testamento, e a vindoura Idade do Espírito Santo, na qual a humanidade inteira viveria em caridade, partilhando as coisas num espírito comunitário. A abundância seria para todos, e essa fase se pareceria com o céu na terra. Basicamente, comunismo. E a Reforma Protestante desencadeou também um surto de comunismo (vide Münster), donde podemos ver que as ideias de uma era ateia têm uma fácil conexão com um passado religioso.

O joaquimismo foi considerado heresia e perseguido, mas teve muita influência no protestantismo e até no ateísmo. A divisão tripartite da história, mesmo, reapareceria ateia, revestida com ares de ciência, através de Auguste Comte. Em vez de Idades do Pai, do Filho e do Espírito Santo, no positivismo temos o Estado Teológico, Estado Metafísico e Estado Positivo. A humanidade começa explicando as coisas por meio de entidades sobrenaturais, evolui para explicações metafísicas (como era antes da ciência moderna) e finalmente chega à era da ciência, o estado final da História. Ainda assim, o Fim da História joaquimista se assemelha mais ao comunismo do que ao positivismo.

É da tradição cristã enxergar a história humana como uma história de progresso, e é da tradição judaica o profetismo. Podemos então chamar de judaico-cristão esse hábito de enxergar a História como um grande arco que conduz a um final feliz. A chegada do cientificismo no século XIX e o triunfo do ateísmo no século XX mascararam como científico e empírico aquilo que é, no fundo, muito religioso.

O reset da História

Fukuyama fez o derradeiro esquema histórico de fundo escatológico, e veio justo no final do século XX. Em vez de prever o comunismo no Fim da História, ele disse que o Fim da História já chegou e é capitalista. No entanto, não vemos por aí muitos anticomunistas crentes de que vivemos no Fim da História. Em vez disso, o discurso anticomunista mainstream é o de que o comunismo “não funciona”, pois deu errado onde foi testado. Ou seja, é um discurso empirista, não escatológico como o de Fukuyama.

Se procurarmos um intelectual responsável pelo consenso de que o marxismo estava morto, o nome mais plausível é o de um anti-hegeliano crítico das previsões históricas inexoráveis: Karl Popper. A um só tempo liberal e epistemólogo, já em 1945 publicou a obra A sociedade aberta e os seus inimigos, na qual faz uma crítica de Marx baseada nas previsões do materialismo dialético. Marx fazia previsões históricas, e uma delas – talvez a mais importante – era a de que o fim da história seria comunista. O capitalismo entraria em grave crise e colapsaria; depois viria o comunismo, um paraíso na terra. Não obstante, a revolução comunista chegou primeiro a um país agrário (a Rússia); e a Inglaterra, a despeito de todo o avanço do seu capitalismo, não dava mostras de que se tornaria um país comunista.

O senso comum anticomunista vai por aí: a experiência refuta o marxismo. O melhor é que Popper, ao contrário de Fukuyama, fez essa previsão quando os EUA ainda eram aliados da URSS e a Guerra Fria nem havia começado. Popper gostava de previsões e acertou em cheio quando predisse o fracasso do comunismo.

Isso acabou tendo um efeito colateral nocivo para a sociedade: em vez de pensarmos num longo arco histórico, caímos num binarismo míope. Ou a previsão de Marx se corrobora, ou se refuta. Uma vez que foi refutada, podemos jogar Marx fora e procurar novos sistemas, sempre olhando para o futuro, com o fito de fazer previsões. É como se a história da humanidade começasse no século XX, e como se só existissem comunismo e capitalismo – ou, de modo mais abstrato, totalitarismo e liberalismo.

Um longo experimento esquecido

A concepção empírica da história não é incompatível com o longo prazo. O cético iluminista David Hume considerava a História o grande laboratório por meio do qual a natureza humana é conhecida. Venderam como água na França os seus Ensaios e tratados sobre vários assuntos, cujo escopo ia da economia às artes e usava como referência tanto Heródoto como as atualidades.

O iluminismo sem dúvida tem muitos defeitos, mas não era cego para a riqueza da diversidade humana através da história e das culturas. Jamais um iluminista ousaria pensar em qualquer questão política tendo em vista apenas dois modelos econômicos do século presente. Por outro lado, nos dias de hoje, as discussões humanísticas mais abrangentes são obcecadas pela economia e apontam ou para os fracassos do comunismo no século XX ou para as glórias da desregulamentação em países asiáticos. Tanto para liberais como para marxistas, a discussão civilizacional é antes de tudo econômica.

Essa discussão é tanto mais estapafúrdia porque na política institucional, em todas as democracias ocidentais, não há partidos fortes que prometam nem o comunismo. Para piorar, as discussões políticas da classe média largaram a economia e se agarraram de maneira histérica aos costumes: de um lado, o esquerdista do século XXI resolveu que defender travestis é uma coisa muito importante para o bem estar social; e, de outro, o direitista congelado na Guerra Fria resolveu que ter uma família conservadora é tudo o que importa – mesmo que a atual organização econômica inviabilize o pai de família tradicional que sustenta esposa e filhos com o suor do trabalho.

Como teoria política e econômica, o liberalismo tem cerca de 400 anos de idade. Sua pátria de nascença é a Inglaterra, e a ideologia está estritamente ligada à Reforma Protestante. Durante a Era dos Descobrimentos, o projeto liberal era encarnado pela Inglaterra e Holanda, e ambas tinham como antagonista o projeto católico encarnado por Espanha e Portugal. Toda apreciação do capitalismo ou do liberalismo tem que começar do começo, em vez de cotejá-lo somente com o fantasma do comunismo.

No que depender do legado holandês, nada de bom pode ser dito do liberalismo. Enquanto os países ibéricos criaram o Brasil, o México, a Argentina – países grandes, mestiços e com nível de vida razoável – a Holanda criou o Suriname, basicamente um depósito amazônico de trabalhadores forçados (negros e indianos). O grande sucesso do projeto liberal chama-se Estados Unidos, uma colônia rebelde cuja hegemonia não parece que vai conseguir completar cem anos. Cem anos são um piscar de olhos na História. Já o Siglo de Oro espanhol chegou perto de duzentos anos.

Enquanto os Estados protestantes liberais conquistavam povos por meio de companhias mercantes militarizadas que visavam ao lucro dos acionistas, as duas coroas católicas levavam o Estado aos novos mundos, e seus domínios eram reconhecidos pelo Vaticano por causa de sua missão de converter os pagãos ao catolicismo. Embora sem dúvida houvesse atividades comerciais que visavam ao lucro, este não podia ser o único objetivo do Estado.

Será verdade que o egoísmo de um Mandeville é melhor para fundar sociedades do que o planejamento estatal moralmente ordenado? Para responder a essa questão com base na experiência, não podemos cair na dicotomia da Guerra Fria, nem negligenciar os projetos antagônicos da Era dos Descobrimentos. Na verdade, desde o fim do comunismo, deveríamos voltar nossos olhos para esse passado mais remoto, já que o liberalismo voltou a enfrentar aqueles que esperam um Estado planejador que tenha como fim o bem dos homens.

Se procurarmos um intelectual responsável pelo consenso de que o marxismo estava morto, o nome mais plausível é o de um anti-hegeliano crítico das previsões históricas inexoráveis: Karl Popper.

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O triunfalismo capitalista pós Guerra Fria tem seu ícone em Fukuyama, o filósofo hegeliano segundo o qual a humanidade chegara ao Fim da História. Com a derrota da União Soviética, a Humanidade havia alcançado sua forma político-econômica final: a democracia de livre mercado representada pelos Estados Unidos.

A bem da verdade, essa é uma ideia maluca que só pôde cativar um nicho de liberais fanáticos. Esse sentimento de que a Humanidade atravessa etapas da História até alcançar o final feliz é recorrente na cristandade ocidental pelo menos desde Joaquim de Fiore, morto no ano de 1202. Para ele, a História divide-se em três partes: a Idade do Pai, correspondente ao Velho Testamento, a Idade do Filho, correspondente ao Novo Testamento, e a vindoura Idade do Espírito Santo, na qual a humanidade inteira viveria em caridade, partilhando as coisas num espírito comunitário. A abundância seria para todos, e essa fase se pareceria com o céu na terra. Basicamente, comunismo. E a Reforma Protestante desencadeou também um surto de comunismo (vide Münster), donde podemos ver que as ideias de uma era ateia têm uma fácil conexão com um passado religioso.

O joaquimismo foi considerado heresia e perseguido, mas teve muita influência no protestantismo e até no ateísmo. A divisão tripartite da história, mesmo, reapareceria ateia, revestida com ares de ciência, através de Auguste Comte. Em vez de Idades do Pai, do Filho e do Espírito Santo, no positivismo temos o Estado Teológico, Estado Metafísico e Estado Positivo. A humanidade começa explicando as coisas por meio de entidades sobrenaturais, evolui para explicações metafísicas (como era antes da ciência moderna) e finalmente chega à era da ciência, o estado final da História. Ainda assim, o Fim da História joaquimista se assemelha mais ao comunismo do que ao positivismo.

É da tradição cristã enxergar a história humana como uma história de progresso, e é da tradição judaica o profetismo. Podemos então chamar de judaico-cristão esse hábito de enxergar a História como um grande arco que conduz a um final feliz. A chegada do cientificismo no século XIX e o triunfo do ateísmo no século XX mascararam como científico e empírico aquilo que é, no fundo, muito religioso.

O reset da História

Fukuyama fez o derradeiro esquema histórico de fundo escatológico, e veio justo no final do século XX. Em vez de prever o comunismo no Fim da História, ele disse que o Fim da História já chegou e é capitalista. No entanto, não vemos por aí muitos anticomunistas crentes de que vivemos no Fim da História. Em vez disso, o discurso anticomunista mainstream é o de que o comunismo “não funciona”, pois deu errado onde foi testado. Ou seja, é um discurso empirista, não escatológico como o de Fukuyama.

Se procurarmos um intelectual responsável pelo consenso de que o marxismo estava morto, o nome mais plausível é o de um anti-hegeliano crítico das previsões históricas inexoráveis: Karl Popper. A um só tempo liberal e epistemólogo, já em 1945 publicou a obra A sociedade aberta e os seus inimigos, na qual faz uma crítica de Marx baseada nas previsões do materialismo dialético. Marx fazia previsões históricas, e uma delas – talvez a mais importante – era a de que o fim da história seria comunista. O capitalismo entraria em grave crise e colapsaria; depois viria o comunismo, um paraíso na terra. Não obstante, a revolução comunista chegou primeiro a um país agrário (a Rússia); e a Inglaterra, a despeito de todo o avanço do seu capitalismo, não dava mostras de que se tornaria um país comunista.

O senso comum anticomunista vai por aí: a experiência refuta o marxismo. O melhor é que Popper, ao contrário de Fukuyama, fez essa previsão quando os EUA ainda eram aliados da URSS e a Guerra Fria nem havia começado. Popper gostava de previsões e acertou em cheio quando predisse o fracasso do comunismo.

Isso acabou tendo um efeito colateral nocivo para a sociedade: em vez de pensarmos num longo arco histórico, caímos num binarismo míope. Ou a previsão de Marx se corrobora, ou se refuta. Uma vez que foi refutada, podemos jogar Marx fora e procurar novos sistemas, sempre olhando para o futuro, com o fito de fazer previsões. É como se a história da humanidade começasse no século XX, e como se só existissem comunismo e capitalismo – ou, de modo mais abstrato, totalitarismo e liberalismo.

Um longo experimento esquecido

A concepção empírica da história não é incompatível com o longo prazo. O cético iluminista David Hume considerava a História o grande laboratório por meio do qual a natureza humana é conhecida. Venderam como água na França os seus Ensaios e tratados sobre vários assuntos, cujo escopo ia da economia às artes e usava como referência tanto Heródoto como as atualidades.

O iluminismo sem dúvida tem muitos defeitos, mas não era cego para a riqueza da diversidade humana através da história e das culturas. Jamais um iluminista ousaria pensar em qualquer questão política tendo em vista apenas dois modelos econômicos do século presente. Por outro lado, nos dias de hoje, as discussões humanísticas mais abrangentes são obcecadas pela economia e apontam ou para os fracassos do comunismo no século XX ou para as glórias da desregulamentação em países asiáticos. Tanto para liberais como para marxistas, a discussão civilizacional é antes de tudo econômica.

Essa discussão é tanto mais estapafúrdia porque na política institucional, em todas as democracias ocidentais, não há partidos fortes que prometam nem o comunismo. Para piorar, as discussões políticas da classe média largaram a economia e se agarraram de maneira histérica aos costumes: de um lado, o esquerdista do século XXI resolveu que defender travestis é uma coisa muito importante para o bem estar social; e, de outro, o direitista congelado na Guerra Fria resolveu que ter uma família conservadora é tudo o que importa – mesmo que a atual organização econômica inviabilize o pai de família tradicional que sustenta esposa e filhos com o suor do trabalho.

Como teoria política e econômica, o liberalismo tem cerca de 400 anos de idade. Sua pátria de nascença é a Inglaterra, e a ideologia está estritamente ligada à Reforma Protestante. Durante a Era dos Descobrimentos, o projeto liberal era encarnado pela Inglaterra e Holanda, e ambas tinham como antagonista o projeto católico encarnado por Espanha e Portugal. Toda apreciação do capitalismo ou do liberalismo tem que começar do começo, em vez de cotejá-lo somente com o fantasma do comunismo.

No que depender do legado holandês, nada de bom pode ser dito do liberalismo. Enquanto os países ibéricos criaram o Brasil, o México, a Argentina – países grandes, mestiços e com nível de vida razoável – a Holanda criou o Suriname, basicamente um depósito amazônico de trabalhadores forçados (negros e indianos). O grande sucesso do projeto liberal chama-se Estados Unidos, uma colônia rebelde cuja hegemonia não parece que vai conseguir completar cem anos. Cem anos são um piscar de olhos na História. Já o Siglo de Oro espanhol chegou perto de duzentos anos.

Enquanto os Estados protestantes liberais conquistavam povos por meio de companhias mercantes militarizadas que visavam ao lucro dos acionistas, as duas coroas católicas levavam o Estado aos novos mundos, e seus domínios eram reconhecidos pelo Vaticano por causa de sua missão de converter os pagãos ao catolicismo. Embora sem dúvida houvesse atividades comerciais que visavam ao lucro, este não podia ser o único objetivo do Estado.

Será verdade que o egoísmo de um Mandeville é melhor para fundar sociedades do que o planejamento estatal moralmente ordenado? Para responder a essa questão com base na experiência, não podemos cair na dicotomia da Guerra Fria, nem negligenciar os projetos antagônicos da Era dos Descobrimentos. Na verdade, desde o fim do comunismo, deveríamos voltar nossos olhos para esse passado mais remoto, já que o liberalismo voltou a enfrentar aqueles que esperam um Estado planejador que tenha como fim o bem dos homens.

The views of individual contributors do not necessarily represent those of the Strategic Culture Foundation.

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