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Bruna Frascolla
August 23, 2025
© Photo: Public domain

A atual crise institucional, que coloca o STF em conflito com os EUA de Trump, é algo sem precedentes na Nova República.

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Em “A Nova República do Brasil como revolução colorida permanente”, Lucas Leiroz contou de forma resumida a história da ingerência dos EUA no Brasil, de modo a explicar as atuais turbulências. Essa história também pode ser contada com outro foco: as forças internas que se beneficiam da ingerência dos EUA.

Se a descrição de Lucas Leiroz tem início na Era Vargas (pois foi ele que decidiu se alinhar aos EUA na II Guerra Mundial e acabou comprometendo o Exército), minha descrição precisa recuar um pouco mais no tempo. Vamos para a fundação da República.

A América Portuguesa não passou pela balcanização da América Espanhola. Quando Napoleão varreu a Europa, a corte portuguesa atravessou o Atlântico e transformou o Rio de Janeiro na primeira e única capital americana de um reino europeu. A antiga metrópole não aceitaria ficar assim por muito tempo, nem o Rio de Janeiro aceitaria deixar de ser capital. A solução acabou sendo uma secessão: D. Pedro I declara a Independência do Brasil, que se torna um império, e depois volta a Portugal, onde se torna D. Pedro IV. Deixa no Brasil o menino D. Pedro II, e o novo império é, no início, tocado por regentes.

Durante a monarquia brasileira, um setor que cresce muito é a elite cafeeira de São Paulo. Ela é liberal convicta, e uma admiradora apaixonada dos Estados Unidos, que ainda estão em processo de ascensão. No entanto, não é ela quem instaura a República, mas sim uma outra força política que sempre terá importância no Brasil: o Exército. Se os liberais de São Paulo eram fãs do liberalismo, o Exército também tinha sua ideologia predileta, o positivismo. Assim, em 1889, o Marechal Deodoro da Fonseca proclama a República. No entanto, na maior parte da República Velha (1889 – 1930), quem levou a melhor foi a oligarquia de São Paulo, que dividiu o poder com a oligarquia de Minas Gerais (produtora de leite) e manteve assim a política do Café com Leite.

As diferenças entre os militares e os liberais de São Paulo são bem visíveis nas bandeiras criadas para o Brasil republicano. A atual bandeira do Brasil é a dos positivistas, e foi criada com base na bandeira do Império do Brasil, onde o verde e o amarelo representavam, respectivamente, as casas de Bragança (D. Pedro) e Habsburgo (D. Leopoldina). Os positivistas tiraram os símbolos imperiais, os das elites agrárias (café e tabaco) e trocaram pelo céu brasileiro mais o lema “Ordem e progresso”.

Já os liberais de São Paulo bolaram a seguinte bandeira, que dispensa comentários. O nome do país deveria ser Estados Unidos do Brasil.

A República Velha foi, de modo geral, um pandemônio, um período de guerra civil latente e de perturbações políticas por todo o país. Ninguém acreditava na lisura dos processos eleitorais e as contestações não raro eram feitas com bala de canhão – a capital do Estado da Bahia chegou a ser bombardeada para remover um governador recalcitrante. Na capital de São Paulo, a coisa foi bem mais grave: em 1924, militares revoltosos quiseram remover o governador na marra para em seguida marchar até o Rio de Janeiro e remover o presidente – que, a seu turno, bombardeou São Paulo por mais de 20 dias e matou um monte e civis.

Desde 1922, o exército estava cheio de revoltosos que pegavam em armas para depor a ordem vigente, entendida como corrupta. Esse movimento era o Tenentismo, e seu maior feito foi a Coluna Prestes: liderados por Carlos Prestes, os tenentes revoltosos marcharam desde o Rio Grande do Sul (estado que faz fronteira com o Uruguai) até o Rio Grande do Norte (estado brasileiro mais próximo da África), depois viraram para o oeste, se aproximaram da Amazônia, desceram para o Cerrado e se refugiaram na Bolívia. Entre idas e vindas, um total de 25 mil quilômetros: isso é mais do que atravessar a Rússia de Leste a Oeste em linha reta duas vezes. O governo federal não foi capaz de pará-los. No Nordeste, o governo federal tomou a iniciativa de armar as milícias dos fazendeiros locais – e o resultado foi que seus homens se converteram em bandidos independentes que passaram a aterrorizar a região, sem que o governo federal tentasse a sério resolver o problema.

Pode-se dizer que um governo das oligarquias liberais de São Paulo é orientado para os ganhos de curto e médio prazo dessas mesmas oligarquias. Elas deixam o Brasil cair no caos porque não têm o interesse em garantir a ordem. Seu estilo de governo é sempre muito mesquinho e voltado para a financeirização. Tudo ia bem para a elite paulista, que usava o Estado para comprar o seu café e valorizá-lo, quando veio a crise de 1929 e o mundo não queria mais comprar café. Aconteceu o inevitável. Em 1930 os militares derrubaram a República Velha e colocaram no poder um político do único estado positivista do Brasil: Getúlio Vargas, do periférico e agitado Rio Grande do Sul (terra de Carlos Prestes), produtor de carne seca.

Getúlio Vargas governou como um bom caudilho e foi o líder mais popular da história do Brasil. A oposição mais séria que ele enfrentou foi, para variar, a oligarquia paulista, que em 1932 fez a dita “Revolução Constitucionalista” usando as forças estaduais e Vargas, embora reprimisse o movimento com o Exército, aceitou governar com uma Constituição que leva anos para ficar pronta. Em 1937, porém, ele cria o Estado Novo e volta a ter plenos poderes, com uma nova constituição, feita ao seu gosto sob inspiração polonesa.

Durante a II Guerra, Vargas envia militares brasileiros para combater sob os Estados Unidos – erro que se provará fatal. No fim da II Guerra, os EUA se consolidam como potência incontestável do mundo ocidental e decidem espalhar democracias por aí. Os militares forçam Vargas a renunciar, põem um ministro do STF como presidente interino e o Brasil vira uma democracia em 1945. Nessa democracia, o povo elege Vargas e seus aliados. Não obstante, os liberais, agora alinhados com os EUA, contra-atacam. Em 1954, Vargas se suicida em meio a acusações de corrupção e seu funeral é uma apoteose. A oposição liberal se torna tóxica.

Em 1964, uma concertação entre a imprensa liberal e a CIA articula um golpe parlamentar apoiado pelos militares. A proposta declarada era salvar a democracia de um iminente golpe comunista que seria dado por um sucessor de Vargas. Um militar liberal que lutaram na II Guerra toma conta do governo. Em 1967, porém, a linha dura dá uma espécie de contragolpe e põe o país num ritmo desenvolvimentista e sem alinhamento automático com os EUA. Aí a elite liberal vira democrata de novo e volta a odiar os militares. O povo, por outro lado, adora os presidentes mais autoritários: o Brasil crescia mais que a China.

Veio, porém, o choque de Paul Volcker em 1979. Além da pressão dos EUA e das elites liberais por democracia, a economia não ia tão bem. O último dos presidentes militares coisas começaram a ir mal, e em 1985 eles decidiram sair do poder elegendo o primeiro presidente civil.

O regime militar não foi propriamente uma ditadura, porque não tinha ditador. Havia uma excessiva regulação eleitoral que só permitia haver, na prática, dois partidos (oposição e situação) e as eleições presidenciais eram indiretas. Tais eleições sempre resultavam em um presidente militar do partido da situação, e o fim do regime ocorreu quando foi eleito o primeiro civil. De maneira um tanto profética, o último presidente militar, João Figueiredo, disse que, se alguém fosse contra a abertura democrática, ele prendia e arrebentava. É basicamente o que o Supremo Tribunal Federal faz, hoje, em nome da democracia.

Mas não ponhamos os carros diante dos bois. Para terminar a nossa história, há a Nova República. Ela começa pra valer em 1988, com a nova constituição. Valendo-se dos traumas do período militar (no qual houve tortura e desaparecimentos de supostos comunistas), a elite liberal criou um regime que castra o Executivo em nome dos Direitos Humanos. Todo o poder foi entregue aos bacharéis de direito – e eles, sim, são os principais agentes que põem em prática a Revolução Colorida Permanente, para usar a ótima expressão de Lucas Leiroz.

Na Constituição de 1988, vigente até hoje, o Ministério Público tem o poder de processar todo o mundo, com o fito de proteger a democracia, os direitos humanos etc. Isso quer dizer que um procurador de qualquer parte do país tem o poder de parar obras de infraestrutura alegando causas ambientais, por exemplo. Outra tarefa importante é perseguir o presidente popular da vez, seja Lula ou Bolsonaro. Outra característica chave da Constituição de 1988 é a primazia do Supremo Tribunal Federal sobre os demais poderes. Além de ser uma corte constitucional, o STF é uma corte criminal que julga os processos de todos os presidentes, senadores, deputados e ministros do STF. O STF decide, em última instância, o que é crime e o que não é, e se algum ministro cometer algum crime, ele será julgado pelos colegas. O ministro só pode perder o cargo se os senadores votarem o seu impeachment, mas eles nunca fazem isso porque temem pelo destino dos seus processos.

É a Suprema Corte que decide se mulheres têm pênis, ou se todo o território brasileiro pode ser reivindicado como reserva indígena. E são os procuradores que costumam tumultuar o Brasil com processos malucos.

Por tudo isso, a atual crise institucional, que coloca o STF em conflito com os EUA de Trump, é algo sem precedentes na Nova República. Até então, os operadores da Revolução Colorida Permanente passavam incólumes. Os EUA atiravam nos políticos do Executivo; nunca tinham mirado o real poder político do país.

Por que o embate entre o STF e Trump é uma crise sem precedentes na Nova República

A atual crise institucional, que coloca o STF em conflito com os EUA de Trump, é algo sem precedentes na Nova República.

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Em “A Nova República do Brasil como revolução colorida permanente”, Lucas Leiroz contou de forma resumida a história da ingerência dos EUA no Brasil, de modo a explicar as atuais turbulências. Essa história também pode ser contada com outro foco: as forças internas que se beneficiam da ingerência dos EUA.

Se a descrição de Lucas Leiroz tem início na Era Vargas (pois foi ele que decidiu se alinhar aos EUA na II Guerra Mundial e acabou comprometendo o Exército), minha descrição precisa recuar um pouco mais no tempo. Vamos para a fundação da República.

A América Portuguesa não passou pela balcanização da América Espanhola. Quando Napoleão varreu a Europa, a corte portuguesa atravessou o Atlântico e transformou o Rio de Janeiro na primeira e única capital americana de um reino europeu. A antiga metrópole não aceitaria ficar assim por muito tempo, nem o Rio de Janeiro aceitaria deixar de ser capital. A solução acabou sendo uma secessão: D. Pedro I declara a Independência do Brasil, que se torna um império, e depois volta a Portugal, onde se torna D. Pedro IV. Deixa no Brasil o menino D. Pedro II, e o novo império é, no início, tocado por regentes.

Durante a monarquia brasileira, um setor que cresce muito é a elite cafeeira de São Paulo. Ela é liberal convicta, e uma admiradora apaixonada dos Estados Unidos, que ainda estão em processo de ascensão. No entanto, não é ela quem instaura a República, mas sim uma outra força política que sempre terá importância no Brasil: o Exército. Se os liberais de São Paulo eram fãs do liberalismo, o Exército também tinha sua ideologia predileta, o positivismo. Assim, em 1889, o Marechal Deodoro da Fonseca proclama a República. No entanto, na maior parte da República Velha (1889 – 1930), quem levou a melhor foi a oligarquia de São Paulo, que dividiu o poder com a oligarquia de Minas Gerais (produtora de leite) e manteve assim a política do Café com Leite.

As diferenças entre os militares e os liberais de São Paulo são bem visíveis nas bandeiras criadas para o Brasil republicano. A atual bandeira do Brasil é a dos positivistas, e foi criada com base na bandeira do Império do Brasil, onde o verde e o amarelo representavam, respectivamente, as casas de Bragança (D. Pedro) e Habsburgo (D. Leopoldina). Os positivistas tiraram os símbolos imperiais, os das elites agrárias (café e tabaco) e trocaram pelo céu brasileiro mais o lema “Ordem e progresso”.

Já os liberais de São Paulo bolaram a seguinte bandeira, que dispensa comentários. O nome do país deveria ser Estados Unidos do Brasil.

A República Velha foi, de modo geral, um pandemônio, um período de guerra civil latente e de perturbações políticas por todo o país. Ninguém acreditava na lisura dos processos eleitorais e as contestações não raro eram feitas com bala de canhão – a capital do Estado da Bahia chegou a ser bombardeada para remover um governador recalcitrante. Na capital de São Paulo, a coisa foi bem mais grave: em 1924, militares revoltosos quiseram remover o governador na marra para em seguida marchar até o Rio de Janeiro e remover o presidente – que, a seu turno, bombardeou São Paulo por mais de 20 dias e matou um monte e civis.

Desde 1922, o exército estava cheio de revoltosos que pegavam em armas para depor a ordem vigente, entendida como corrupta. Esse movimento era o Tenentismo, e seu maior feito foi a Coluna Prestes: liderados por Carlos Prestes, os tenentes revoltosos marcharam desde o Rio Grande do Sul (estado que faz fronteira com o Uruguai) até o Rio Grande do Norte (estado brasileiro mais próximo da África), depois viraram para o oeste, se aproximaram da Amazônia, desceram para o Cerrado e se refugiaram na Bolívia. Entre idas e vindas, um total de 25 mil quilômetros: isso é mais do que atravessar a Rússia de Leste a Oeste em linha reta duas vezes. O governo federal não foi capaz de pará-los. No Nordeste, o governo federal tomou a iniciativa de armar as milícias dos fazendeiros locais – e o resultado foi que seus homens se converteram em bandidos independentes que passaram a aterrorizar a região, sem que o governo federal tentasse a sério resolver o problema.

Pode-se dizer que um governo das oligarquias liberais de São Paulo é orientado para os ganhos de curto e médio prazo dessas mesmas oligarquias. Elas deixam o Brasil cair no caos porque não têm o interesse em garantir a ordem. Seu estilo de governo é sempre muito mesquinho e voltado para a financeirização. Tudo ia bem para a elite paulista, que usava o Estado para comprar o seu café e valorizá-lo, quando veio a crise de 1929 e o mundo não queria mais comprar café. Aconteceu o inevitável. Em 1930 os militares derrubaram a República Velha e colocaram no poder um político do único estado positivista do Brasil: Getúlio Vargas, do periférico e agitado Rio Grande do Sul (terra de Carlos Prestes), produtor de carne seca.

Getúlio Vargas governou como um bom caudilho e foi o líder mais popular da história do Brasil. A oposição mais séria que ele enfrentou foi, para variar, a oligarquia paulista, que em 1932 fez a dita “Revolução Constitucionalista” usando as forças estaduais e Vargas, embora reprimisse o movimento com o Exército, aceitou governar com uma Constituição que leva anos para ficar pronta. Em 1937, porém, ele cria o Estado Novo e volta a ter plenos poderes, com uma nova constituição, feita ao seu gosto sob inspiração polonesa.

Durante a II Guerra, Vargas envia militares brasileiros para combater sob os Estados Unidos – erro que se provará fatal. No fim da II Guerra, os EUA se consolidam como potência incontestável do mundo ocidental e decidem espalhar democracias por aí. Os militares forçam Vargas a renunciar, põem um ministro do STF como presidente interino e o Brasil vira uma democracia em 1945. Nessa democracia, o povo elege Vargas e seus aliados. Não obstante, os liberais, agora alinhados com os EUA, contra-atacam. Em 1954, Vargas se suicida em meio a acusações de corrupção e seu funeral é uma apoteose. A oposição liberal se torna tóxica.

Em 1964, uma concertação entre a imprensa liberal e a CIA articula um golpe parlamentar apoiado pelos militares. A proposta declarada era salvar a democracia de um iminente golpe comunista que seria dado por um sucessor de Vargas. Um militar liberal que lutaram na II Guerra toma conta do governo. Em 1967, porém, a linha dura dá uma espécie de contragolpe e põe o país num ritmo desenvolvimentista e sem alinhamento automático com os EUA. Aí a elite liberal vira democrata de novo e volta a odiar os militares. O povo, por outro lado, adora os presidentes mais autoritários: o Brasil crescia mais que a China.

Veio, porém, o choque de Paul Volcker em 1979. Além da pressão dos EUA e das elites liberais por democracia, a economia não ia tão bem. O último dos presidentes militares coisas começaram a ir mal, e em 1985 eles decidiram sair do poder elegendo o primeiro presidente civil.

O regime militar não foi propriamente uma ditadura, porque não tinha ditador. Havia uma excessiva regulação eleitoral que só permitia haver, na prática, dois partidos (oposição e situação) e as eleições presidenciais eram indiretas. Tais eleições sempre resultavam em um presidente militar do partido da situação, e o fim do regime ocorreu quando foi eleito o primeiro civil. De maneira um tanto profética, o último presidente militar, João Figueiredo, disse que, se alguém fosse contra a abertura democrática, ele prendia e arrebentava. É basicamente o que o Supremo Tribunal Federal faz, hoje, em nome da democracia.

Mas não ponhamos os carros diante dos bois. Para terminar a nossa história, há a Nova República. Ela começa pra valer em 1988, com a nova constituição. Valendo-se dos traumas do período militar (no qual houve tortura e desaparecimentos de supostos comunistas), a elite liberal criou um regime que castra o Executivo em nome dos Direitos Humanos. Todo o poder foi entregue aos bacharéis de direito – e eles, sim, são os principais agentes que põem em prática a Revolução Colorida Permanente, para usar a ótima expressão de Lucas Leiroz.

Na Constituição de 1988, vigente até hoje, o Ministério Público tem o poder de processar todo o mundo, com o fito de proteger a democracia, os direitos humanos etc. Isso quer dizer que um procurador de qualquer parte do país tem o poder de parar obras de infraestrutura alegando causas ambientais, por exemplo. Outra tarefa importante é perseguir o presidente popular da vez, seja Lula ou Bolsonaro. Outra característica chave da Constituição de 1988 é a primazia do Supremo Tribunal Federal sobre os demais poderes. Além de ser uma corte constitucional, o STF é uma corte criminal que julga os processos de todos os presidentes, senadores, deputados e ministros do STF. O STF decide, em última instância, o que é crime e o que não é, e se algum ministro cometer algum crime, ele será julgado pelos colegas. O ministro só pode perder o cargo se os senadores votarem o seu impeachment, mas eles nunca fazem isso porque temem pelo destino dos seus processos.

É a Suprema Corte que decide se mulheres têm pênis, ou se todo o território brasileiro pode ser reivindicado como reserva indígena. E são os procuradores que costumam tumultuar o Brasil com processos malucos.

Por tudo isso, a atual crise institucional, que coloca o STF em conflito com os EUA de Trump, é algo sem precedentes na Nova República. Até então, os operadores da Revolução Colorida Permanente passavam incólumes. Os EUA atiravam nos políticos do Executivo; nunca tinham mirado o real poder político do país.

A atual crise institucional, que coloca o STF em conflito com os EUA de Trump, é algo sem precedentes na Nova República.

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Escreva para nós: info@strategic-culture.su

Em “A Nova República do Brasil como revolução colorida permanente”, Lucas Leiroz contou de forma resumida a história da ingerência dos EUA no Brasil, de modo a explicar as atuais turbulências. Essa história também pode ser contada com outro foco: as forças internas que se beneficiam da ingerência dos EUA.

Se a descrição de Lucas Leiroz tem início na Era Vargas (pois foi ele que decidiu se alinhar aos EUA na II Guerra Mundial e acabou comprometendo o Exército), minha descrição precisa recuar um pouco mais no tempo. Vamos para a fundação da República.

A América Portuguesa não passou pela balcanização da América Espanhola. Quando Napoleão varreu a Europa, a corte portuguesa atravessou o Atlântico e transformou o Rio de Janeiro na primeira e única capital americana de um reino europeu. A antiga metrópole não aceitaria ficar assim por muito tempo, nem o Rio de Janeiro aceitaria deixar de ser capital. A solução acabou sendo uma secessão: D. Pedro I declara a Independência do Brasil, que se torna um império, e depois volta a Portugal, onde se torna D. Pedro IV. Deixa no Brasil o menino D. Pedro II, e o novo império é, no início, tocado por regentes.

Durante a monarquia brasileira, um setor que cresce muito é a elite cafeeira de São Paulo. Ela é liberal convicta, e uma admiradora apaixonada dos Estados Unidos, que ainda estão em processo de ascensão. No entanto, não é ela quem instaura a República, mas sim uma outra força política que sempre terá importância no Brasil: o Exército. Se os liberais de São Paulo eram fãs do liberalismo, o Exército também tinha sua ideologia predileta, o positivismo. Assim, em 1889, o Marechal Deodoro da Fonseca proclama a República. No entanto, na maior parte da República Velha (1889 – 1930), quem levou a melhor foi a oligarquia de São Paulo, que dividiu o poder com a oligarquia de Minas Gerais (produtora de leite) e manteve assim a política do Café com Leite.

As diferenças entre os militares e os liberais de São Paulo são bem visíveis nas bandeiras criadas para o Brasil republicano. A atual bandeira do Brasil é a dos positivistas, e foi criada com base na bandeira do Império do Brasil, onde o verde e o amarelo representavam, respectivamente, as casas de Bragança (D. Pedro) e Habsburgo (D. Leopoldina). Os positivistas tiraram os símbolos imperiais, os das elites agrárias (café e tabaco) e trocaram pelo céu brasileiro mais o lema “Ordem e progresso”.

Já os liberais de São Paulo bolaram a seguinte bandeira, que dispensa comentários. O nome do país deveria ser Estados Unidos do Brasil.

A República Velha foi, de modo geral, um pandemônio, um período de guerra civil latente e de perturbações políticas por todo o país. Ninguém acreditava na lisura dos processos eleitorais e as contestações não raro eram feitas com bala de canhão – a capital do Estado da Bahia chegou a ser bombardeada para remover um governador recalcitrante. Na capital de São Paulo, a coisa foi bem mais grave: em 1924, militares revoltosos quiseram remover o governador na marra para em seguida marchar até o Rio de Janeiro e remover o presidente – que, a seu turno, bombardeou São Paulo por mais de 20 dias e matou um monte e civis.

Desde 1922, o exército estava cheio de revoltosos que pegavam em armas para depor a ordem vigente, entendida como corrupta. Esse movimento era o Tenentismo, e seu maior feito foi a Coluna Prestes: liderados por Carlos Prestes, os tenentes revoltosos marcharam desde o Rio Grande do Sul (estado que faz fronteira com o Uruguai) até o Rio Grande do Norte (estado brasileiro mais próximo da África), depois viraram para o oeste, se aproximaram da Amazônia, desceram para o Cerrado e se refugiaram na Bolívia. Entre idas e vindas, um total de 25 mil quilômetros: isso é mais do que atravessar a Rússia de Leste a Oeste em linha reta duas vezes. O governo federal não foi capaz de pará-los. No Nordeste, o governo federal tomou a iniciativa de armar as milícias dos fazendeiros locais – e o resultado foi que seus homens se converteram em bandidos independentes que passaram a aterrorizar a região, sem que o governo federal tentasse a sério resolver o problema.

Pode-se dizer que um governo das oligarquias liberais de São Paulo é orientado para os ganhos de curto e médio prazo dessas mesmas oligarquias. Elas deixam o Brasil cair no caos porque não têm o interesse em garantir a ordem. Seu estilo de governo é sempre muito mesquinho e voltado para a financeirização. Tudo ia bem para a elite paulista, que usava o Estado para comprar o seu café e valorizá-lo, quando veio a crise de 1929 e o mundo não queria mais comprar café. Aconteceu o inevitável. Em 1930 os militares derrubaram a República Velha e colocaram no poder um político do único estado positivista do Brasil: Getúlio Vargas, do periférico e agitado Rio Grande do Sul (terra de Carlos Prestes), produtor de carne seca.

Getúlio Vargas governou como um bom caudilho e foi o líder mais popular da história do Brasil. A oposição mais séria que ele enfrentou foi, para variar, a oligarquia paulista, que em 1932 fez a dita “Revolução Constitucionalista” usando as forças estaduais e Vargas, embora reprimisse o movimento com o Exército, aceitou governar com uma Constituição que leva anos para ficar pronta. Em 1937, porém, ele cria o Estado Novo e volta a ter plenos poderes, com uma nova constituição, feita ao seu gosto sob inspiração polonesa.

Durante a II Guerra, Vargas envia militares brasileiros para combater sob os Estados Unidos – erro que se provará fatal. No fim da II Guerra, os EUA se consolidam como potência incontestável do mundo ocidental e decidem espalhar democracias por aí. Os militares forçam Vargas a renunciar, põem um ministro do STF como presidente interino e o Brasil vira uma democracia em 1945. Nessa democracia, o povo elege Vargas e seus aliados. Não obstante, os liberais, agora alinhados com os EUA, contra-atacam. Em 1954, Vargas se suicida em meio a acusações de corrupção e seu funeral é uma apoteose. A oposição liberal se torna tóxica.

Em 1964, uma concertação entre a imprensa liberal e a CIA articula um golpe parlamentar apoiado pelos militares. A proposta declarada era salvar a democracia de um iminente golpe comunista que seria dado por um sucessor de Vargas. Um militar liberal que lutaram na II Guerra toma conta do governo. Em 1967, porém, a linha dura dá uma espécie de contragolpe e põe o país num ritmo desenvolvimentista e sem alinhamento automático com os EUA. Aí a elite liberal vira democrata de novo e volta a odiar os militares. O povo, por outro lado, adora os presidentes mais autoritários: o Brasil crescia mais que a China.

Veio, porém, o choque de Paul Volcker em 1979. Além da pressão dos EUA e das elites liberais por democracia, a economia não ia tão bem. O último dos presidentes militares coisas começaram a ir mal, e em 1985 eles decidiram sair do poder elegendo o primeiro presidente civil.

O regime militar não foi propriamente uma ditadura, porque não tinha ditador. Havia uma excessiva regulação eleitoral que só permitia haver, na prática, dois partidos (oposição e situação) e as eleições presidenciais eram indiretas. Tais eleições sempre resultavam em um presidente militar do partido da situação, e o fim do regime ocorreu quando foi eleito o primeiro civil. De maneira um tanto profética, o último presidente militar, João Figueiredo, disse que, se alguém fosse contra a abertura democrática, ele prendia e arrebentava. É basicamente o que o Supremo Tribunal Federal faz, hoje, em nome da democracia.

Mas não ponhamos os carros diante dos bois. Para terminar a nossa história, há a Nova República. Ela começa pra valer em 1988, com a nova constituição. Valendo-se dos traumas do período militar (no qual houve tortura e desaparecimentos de supostos comunistas), a elite liberal criou um regime que castra o Executivo em nome dos Direitos Humanos. Todo o poder foi entregue aos bacharéis de direito – e eles, sim, são os principais agentes que põem em prática a Revolução Colorida Permanente, para usar a ótima expressão de Lucas Leiroz.

Na Constituição de 1988, vigente até hoje, o Ministério Público tem o poder de processar todo o mundo, com o fito de proteger a democracia, os direitos humanos etc. Isso quer dizer que um procurador de qualquer parte do país tem o poder de parar obras de infraestrutura alegando causas ambientais, por exemplo. Outra tarefa importante é perseguir o presidente popular da vez, seja Lula ou Bolsonaro. Outra característica chave da Constituição de 1988 é a primazia do Supremo Tribunal Federal sobre os demais poderes. Além de ser uma corte constitucional, o STF é uma corte criminal que julga os processos de todos os presidentes, senadores, deputados e ministros do STF. O STF decide, em última instância, o que é crime e o que não é, e se algum ministro cometer algum crime, ele será julgado pelos colegas. O ministro só pode perder o cargo se os senadores votarem o seu impeachment, mas eles nunca fazem isso porque temem pelo destino dos seus processos.

É a Suprema Corte que decide se mulheres têm pênis, ou se todo o território brasileiro pode ser reivindicado como reserva indígena. E são os procuradores que costumam tumultuar o Brasil com processos malucos.

Por tudo isso, a atual crise institucional, que coloca o STF em conflito com os EUA de Trump, é algo sem precedentes na Nova República. Até então, os operadores da Revolução Colorida Permanente passavam incólumes. Os EUA atiravam nos políticos do Executivo; nunca tinham mirado o real poder político do país.

The views of individual contributors do not necessarily represent those of the Strategic Culture Foundation.

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