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Hugo Dionísio
June 27, 2025
© Photo: Public domain

Já não existirão guerras como antigamente, daquelas em que a parte vitoriosa era facilmente assumida?

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Já não existirão guerras como antigamente, daquelas em que a parte vitoriosa era facilmente assumida? A verdade é que considerando as declarações e propaganda afecta aos três contendores directos envolvidos no conflito criado por Israel o insólito aconteceu: todas as partes se assumiram como vencedoras!

Antes de analisarmos as posições relativas de cada contendor teremos de estabelecer os seguintes pontos prévios:

  • Esta ambiguidade na forma como classificamos o resultado da disputa relativamente a cada uma das partes, é própria do momento intermédio em que nos encontramos;
  • Consequentemente, as avaliações que cada um faz enfermam da forma parcial como analisam oi evento, na relação entre o ponto de partida e o que cada um estabeleceu como ponto de chegada. O problema é que o “ponto de chegada”, não apenas é diferente para cada uma das partes envolvidas, como o que será o resultado final, a síntese dialéctica da contradição Israel-EUA/Irão-Islão-BRICS, é, neste momento, ainda imprevisível.

Nenhuma das partes pode arrogar-se de determinar à partida ter chegado ou saber como será o resultado final.

Neste sentido, todos se contentam como vantagens tácticas, mais ou menos relevantes. Neste quadro, todos podem assim cantar vitória, pois ainda nos encontramos nessa fase intermédia em que os avanços, recuos, perdas e ganhos não apenas são mútuos, como podem ser sobrevalorizados uns, em detrimento de outros. Na hora da definição final, essa ambiguidade desaparecerá, apenas para ser recuperada mais tarde.

Lembremo-nos que ainda numa fase embrionária da guerra da Ucrânia, todo o ocidente clamava vitória. Do outro lado, a Federação Russa fazia o mesmo. À medida que o conflito vai evoluindo e se vão definindo as suas constituintes fundamentais, vai sendo cada vez mais difícil às partes classificarem, de forma ambígua, o seu posicionamento. Hoje é inegável que a Federação Russa tem enorme vantagem e no ocidente já se vai assumindo a derrota. A própria paranóia belicista e militarista que tomou a União Europeia, tem a ver com esse desespero causado pela sensação de derrota eminente, numa fase em que já não pode ser escondida.

Por muito que se congele o conflito entre Irão e EUA/Israel, por muito que se evite a escalada final, haverá um momento de definição. Até esse momento, todos cantarão vitória, até não mais o poderem fazer.

Um conflito que não começou agora, mas há 78 anos

Este conflito ganha contornos decisivos – torna-se inevitável – com a Nabka em 1967 e prosseguem com o estabelecimento do estado de Israel em 1948, cujas ondas de choque, resultantes da ocupação de territórios palestinos e mais de um século de intervencionismo ocidental na região, não deixaram de conduzir a algo como a Revolução Islâmica – à data secretamente apoiada pelos EUA e Reino Unido. Em 1979 nasce assim o contendor mais poderoso que o ocidente e Israel encontrarão no seu domínio hegemónico do médio-oriente. Um contendor endurecido por décadas de sanções, tentativas de mudança de regime, uma guerra brutal que lhe foi movida por EUA e Saddam Husein e boicotes, sabotagens e corrupções permanentes no seu território. O que não nos mata, torna-nos mais fortes, diz o ditado.

Diz muito bem Sherman Narwani do The Cradle que esta intervenção dos EUA marca um novo momento na Ásia Ocidental, constituindo o fim das “guerras proxy”, uma vez que, segundo a sua avaliação, em guerra convencional, de botas no chão e consideradas as vantagens geográficas, o Irão é um par ao nível dos EUA.

Desta feita, assistimos a um império já sem anéis, necessitado de prescindir dos dedos. À falta de um país suicida cuja elite aceitasse atirar-se contra o Irão em nome da “democracia e direitos humanos”, como outros o fizeram, no caso o Iraque, sempre com péssimos resultados para os próprios, e uma vez que os Emires das arábias pagam com petróleo e petrodólar para que os deixem em paz, a oligarquia estado-unidense teve de recorrer ao filho pródigo e aos seus próprios recursos, para atacar o Irão, sempre no pressuposto de que, se corresse mal para Israel, o posto avançado poderia sempre contar com o grande irmão (em sentido literal, figurado e em sentido orwelliano também).

Já na Ucrânia, a NATO, os EUA, também tiveram a necessidade de se envolver directamente no conflito, mesmo que mascarando – com a anuência russa, refira-se – essa intervenção com “contratados”, “técnicos”, “consultores” e tudo mais. O exemplo da Geórgia, e outros virão, demonstra que o exemplo ucraniano está também a ser aprendido na região, como o foram o sírio, o líbio e o iraquiano. Idos os anéis, está na hora do império usar os dedos.

Trump empurrou e Grossi tornou-se o cangalheiro da AIEA e do TNPAN, criando a justificação que permitirá a continuação do conflito – em modo morno ou quente

Neste processo assistimos também ao fim da multilateralidade herdada da segunda guerra mundial. A verdade é que Grossi não quis para ele o mesmo futuro que teve Scott Ritter, o inspector que à data certificou ao mundo, ao congresso, contra a CIA, contra Biden (no senado) e George W. Bush, que não haviam armas de destruição em massa no Iraque. Mariano Grossi lá foi mantendo a dúvida, de forma torpe como só os trepadores sabem fazer e, tal como na NPP Energodar, olhando para os Drones, afirmava não saber de onde vinham, também desta feita assumiu a mesma atitude mesquinha e parcial, impensável para alguém que representa uma instituição com tão enorme responsabilidade.

À frente de uma Agência que visa impedir que o mundo acabe no holocausto nuclear, está alguém que nem sequer foi capaz de exigir a Israel que admita que as suas instalações nucleares sejam monitoradas pela organização que diz presidir.

Grossi foi assim o executor mor da destruição do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares e da Agência Internacional de Energia Atómica. A sua relutância em publicar um simples nota em que dissesse – mesmo sem condenar – que Israel estava a violar a lei internacional ao bombardear instalações nucleares monitoradas pela AIEA, já deu os primeiros resultados: o Parlamento Iraniano acaba de determinar que a AIEA e os seus inspectores não mais monitorização o programa iraniano.

A ver vamos se o senhor Grossi também não terá conseguido lançar a justificação para uma guerra definitiva contra o Irão, como se verá mais à frente! Israel dificilmente deixará de aproveitar a oportunidade que a ausência de monitorização “independente” comporta, e os EUA terão de se chegar à frente, desta vez, de forma definitiva. E nessa altura, as vitórias ou derrotas já não serão contas pelos próprios, mas pelos outros.

A vitória contada por Trump

Convém começar por dizer que os EUA têm duas cabeças, neste caso. Não é nova a contenda entre Trump e o deepstate. Daí que Trump tenha dado a entender que só fez o que fez porque a isso foi forçado. E não é difícil de encontrar indícios que para aí apontam, tais como a defesa, por Trump, de que tudo está acabado e que o programa nuclear está liquidado. Já o Pentágono e os Think Thank dizem que não, que os danos são limitados e o programa pode ser reposto nuns meros dois meses.

Então, podemos dizer que Trump cantou vitória, acreditou que poderia ir lá, descarregar umas MOP, fazer a vontade aos néocons (os tais que a comentadora Diana Soler da CNNN Portugal diz não existirem) e seguir o business as usual. Como mais ninguém, elogiou a força aérea, o comando militar, na esperança, talvez, de os encher de orgulho e conseguir que deixassem de o chatear com guerra. Mas, o que sucedeu é que, se Trump cantou vitória, o establishment norte americano não o fez e está profundamente renitente em aceitar que tudo acabou. Temos então uma atitude bicéfala e ambígua, por parte dos EUA, em que o Presidente assume a vitória, mas a sua estrutura, não assumindo derrota, também não se considera vitoriosa.

A vitória de Trump é fácil de entender e está relacionada, uma vez mais, com o seu ponto de partida, a sua posição relativa e os seus objectivos para o conflito. Trump estava perante uma economia dos EUA que cresce abaixo do esperado, com um crescimento industrial anémico que contraria as expectativas MAGA, um enfraquecimento do mercado de emprego, o que nos EUA tem suma importância face à falta de rede pública e solidária de apoio, o aumento da dívida, a queda do dólar e a fuga para o ouro. Prometendo à sua base que governaria para dentro, é fácil perceber o que seria uma vitória para Trump: conter a escalada e impedir movimentos económicos que aumentem a inflação e a degradação do dólar.

Para tal, Trump tinha de apaziguar os néocons, os sionistas, deixá-los saborear um gosto de vitória – que em ambos os casos é regada com sangue – e impor a contenção do conflito, a qual mesmo sendo muito frágil, levasse o Irão a não encerrar o estreito de Ormuz. Trump, na sua cabeça, conseguiu as três coisas. Para tal teve de jogar de forma arriscada e entrar no jogo voluntarista a aventureiro de Netanyahu. O risco é enorme e veremos se Trump poderá contê-lo. Para já, as mensagens que vai produzindo demonstram que o risco era mesmo muito elevado e que uma caixa de pandora foi aberta, com a sua anuência.

O que fez Trump, partindo do princípio de que não quer, de facto, a guerra longa, jogar de forma tão arriscada? Primeiro o seu sionismo, depois a pressão que sofre do complexo militar-industrial, por fim, as “vitórias” tácticas que poderia retirar.

A primeira dessas “vitórias” tácticas terá sido a bicada à sustentabilidade energética e comercial chinesa. É sabido que 90% do Petróleo e gás iranianos vão República Popular da China. Não será sem escárnio que Trump disse que “agora o Irão pode voltar a vender petróleo à China”, como que dizendo “façam-no lá com tudo arrasado”. Não é algo muito relevante, mas não deixa de ser uma provocação ganha segundo as regras de Trump.

Aliás, relativamente a este aspecto, Trump e a sua estratégia para os EUA ganham ainda outra coisa, que consiste em passar a ideia de que, quando quiserem arrasam as infra-estruturas iranianas, as quais são de suma importância para a BRI, os BRICS, a sustentabilidade energética chinesa e a sua influência na região. E as cabeças de Trump e néocons acreditam nisto com tal vigor que logo vieram uns quantos dizer que os BRICS assistiram à destruição do Irão e nada fizeram, que a Rússia e China não defenderam o seu aliado… Em termos comunicacionais Trump passa a ideia de que são os maiores e que ninguém tem coragem de os afrontar. Ao mesmo tempo, teme os efeitos económicos que uma guerra de alta intensidade poderia ter.

Depois, Trump e os seus EUA retiram ainda algo de muito importante de todo este teatro: não apenas retiraram parte importante dos seus equipamentos da Ucrânia, afastando-se ainda mais daquele cancro criado pelos próprios e alimentado pelo fanatismo e seguidismo europeus; como criaram um filme bélico que agrava a sensação de insegurança das elites europeias e providencia mais uma justificação – esfarrapada, como sempre – para que os “líderes” europeus baixem a cabeça e aceitem, como se viu, com a excepção da Espanha, o investimento de 5% do PIB em armamento. Considerando que a EU não tem capacidade para produzir tal quantidade de armas, já se está a ver onde as vai comprar.

Trump ainda retira daqui outras vitórias pessoais importantes:

  • Demonstra que os “líderes” europeus não passam de meros executivos ao serviço do Tio Sam e que, como qualquer CEO, a sua arte esgota-se na capacidade de serem bem-mandados; 2. Ultrapassa as barreiras morais de Biden e assume como política de estado que a NATO não passa de um supermercado de venda de armas à Europa;
  • Demonstra que o trumpismo não é mais danoso para a sociedade americana, do que o é o radical centrismo das “lideranças” europeias, capazes de tirar da saúde, educação, habitação e justiça dos povos que dizem representar, os recursos que depois entregam a Trump;
  • O caminho que o radical centrismo prossegue conduzirá à vitória do trumpismo na Europa, uma vez que este não deixará de usar as contradições levantadas por governos que prometem uma coisa e entregam outra;
  • Trump apresenta-se como o plenipotenciário da política norte-americana, uma espécie de líder faraónico, messiânico e de origem divina.

É claro que não são só vitórias que Trump retira, mas diria que, face às suas necessidades pessoais e de política externa, perante a ameaça de desagregação da sua base de apoio, Trump sai bastante bem do risco que enfrentou. Para já, pelo menos!

Não podemos argumentar que a destruição as instituições multilaterais do século XX são uma derrota de Trump, porque Trump não as respeita nem parece contar com elas. Enquanto pilares do soft power de outrora e tentáculos de uma visão globalista, Trump considera-as ultrapassadas. A visão de Trump é a da força bruta como factor de convencimento negocial, um pouco à imagem da tortura: não aceitas? Ficas sem um dedo! E Trump, na sua perspectiva, cortou uma mão ao Irão. A destruição da arquitectura multilateral proposta e construída pelos EUA, a seguir à segunda guerra mundial, é uma derrota para os EUA no longo prazo, mas para Trump, considerando a sua estratégia para os EUA, o valor desta estrutura é desprezível. A meu ver, arrepender-se-á disso mais tarde. E descobrirá que para as vítimas as mãos não são tão importantes como para os agressores. Lutando por causas, luta-se com tudo! Nem os EUA, nem Israel, viciados em conforto e luxo, adversários fragilizados pelos próprios e guerras limitadas, terão vida fácil num conflito aberto com um povo consciente e unido como o iraniano.

Para Trump, qual imperador faraónico, que anulou o congresso e a estrutura de poder representativo dos EUA (mais uma vitória pessoal), reforçando, como Biden já o havia feito, que a democracia que ainda existia está morta e enterrada (veja-se o que disse Bruce Springsteen sobre o assunto), o poder é transaccionável e impõe-se através de uma relação e forças que é construída com cartas de trunfo. Para o globalismo, as cartas de trunfo só eram jogadas quando o bluff da democracia e dos direitos humanos não funcionava. Trump dispensa isto tudo. Tem pressa e precisa de resultados rápidos com que possa convencer a sua base, se possível alargá-la e, quem sabe, através de muita volta e reviravolta, conseguir um terceiro mandato. Como? Veremos.

Mas não se pense é que tudo acabou por aqui, pois tal seria um erro, num conflito que ganhou o seu mais forte contendor em 1979, com o nascimento da República Islâmica do Irão, que desde logo proclamou pretender o fim da ocupação israelita, presumir que seria o próprio Trump a definir os trâmites sob os quais tudo se desenvolve. Trump e os EUA iniciaram um processo que, sabendo o Irão jogar bem as suas cartas, é a nação persa que terá a última palavra sobre onde acaba o conflito.

Também não podemos colocar de parte que Trump possa ter percebido nisto tudo a ideia de que o ataque ao Irão constituiu uma armadilha montada para tramar e envolver directamente os EUA. Mesmo sabendo disto, arriscou e deixou Israel obrigar o grande irmão a entrar num conflito mortal, para o defender. Quer tenha participado de forma convicta ou forçada, Trump pode, para já contentar-se com o resultado, mas o incontrolável futuro não deixará de o assaltar mais tarde.

Israel, o mais derrotado, foi mais longe e declarou atingidos todos os objectivos

Para Netanyahu não houve dúvidas: o Iron Dome não deixou passar nada e todos os objectivos foram atingidos! Entrementes, censurou a comunicação social, as redes sociais e aplicou regras draconianas a quem divulgasse os danos provocados pelos mísseis iranianos que nunca passaram o Iron Dome.

É verdade que Israel sofreu danos que nunca havia sofrido, também é verdade que, por muito pequeno e concentrado que seja o território, o Irão apenas atacou locais de interesse estratégico e militar, sendo que, também como o Irão, Israel tem mais infra-estruturas por debaixo, do que por cima. E essas, não parece que tenham sido afectadas. Por muito que tenhamos vistos os israelitas assustados como nunca, a verdade também é que, na sua potência, o ataque do Irão não foi brutalmente desumano, como sucedeu com o israelita. Os israelitas ainda não experimentaram, verdadeiramente, o que é ver os seus alvos civis serem transformados em militares, porque lá se encontram reservistas, como faz Israel. Num conflito desenfreado, o Irão não deixará de entrar nessa escalada e, aí sim, não haverá nenhum Netanyahu que o possa esconder.

Para os fanáticos, a condescendência humana inimiga é interpretada como fraqueza. Em Promessa verdadeira 1 e 2, o Irão limitou os ataques a meras demonstrações. Tal como a Rússia havia feito na Ucrânia com a sua operação militar especial, poupando civis quando possível e infra-estruturas básicas. Para neonazis e sionistas estes comportamentos são interpretados como vindo de gente fraca ou de gente sem recursos. O regime neonazi de Kiev já percebeu que estava errado, parece-me, no entanto, que Netanyahu ainda não o entendeu.

No caso israelita também temos de distinguir os objectivos pessoais de Netanyahu, dos do posto avançado sionista. Israel, o território, só perdeu com este ataque ao Irão. Daqui saiu um povo com sensação de insegurança e paranóia persecutória que continuará a jogar-se em cima das crianças, idosos e mulheres Palestinas, agora que já uma patente militar veio reconhecer que o ritmo de aniquilação do Hamas não está a dar os frutos desejados. Mas Netanyahu ganhou tempo, principalmente quando foi citado para comparecer no julgamento a decorrer no Supremo Tribunal. A situação de emergência poderá ser invocada para se manter no poder.

Considerando as palavras de Netanyahu e seus apaniguados, Israel conseguiu: 1. Atrasar – ou aniquilar – de forma inequívoca o programa nuclear iraniano; 2. Atrasar o desenvolvimento industrial iraniano, logo agora que a linha ferroviária que liga a China a Teerão já se encontra em funcionamento; 3. Conseguiu arrastar o grande irmão – os EUA – para um conflito regional de proporções imprevisíveis, garantindo que será Trump a seguir o seu aventureirismo e não o contrário; 4. Israel consegue praticar um genocídio, em que Harvard já fala em 377.000 pessoas desaparecidas em Gaza, e receber apoio incondicional da Europa, ao mesmo tempo, retirando daí a conclusão que tem, da parte da EU, tapete vermelho para continuar.

Claro que esta sensação de “vitória” não pode ser nem total, nem verdadeira. A mudança de regime tentada não aconteceu, bem pelo contrário, mas sobre isso, Netanyahu nada diz, o que não pode ser interpretado como uma desistência. Também não ficou provado que a força aérea israelita tenha tido caminho tão livre como diz: o blogger “Simplicius The Thinker”, que faz algumas das melhores apreciações militares que conheço, diz que só existe um vídeo com um avião israelita a sobrevoar o Irão, numa cidade periférica e fornecido pelos próprios israelitas. Sabemos também que muitos dos ataques que Israel diz ter praticado com drones, foram praticados a partir de dentro. Esta situação não deixa de demonstrar o que já se sabe: que a MOSSAD tem uma capacidade brutal de inserção social, o que não constitui uma vitória, neste caso. O Irão aproveitou a deixa para limpar o país de colaboracionistas e traidores.

Não obstante o sabermos das ineficiências do Iron Dome e do sistema Arrow, do receio de ficar sem interceptores, a verdade é que ainda existem alguns objectivos que Netanyahu e os eu aparato adicionam à sua lista. Para quem quer uma mudança de regime, atrasar o desenvolvimento iraniano significa ganhar tempo para capitalizar as contradições sociais que se produzem nas sociedades estagnadas e incapazes de responderem às necessidades dos respectivos povos. Uma vez que o programa nuclear iraniano significa energia barata e limpa, o seu atraso, não deixará de trazer dificuldades ao crescimento económico do Irão, dificuldades essas que Israel – e EUA – não deixará de capitalizar em seu favor. Veremos o quão afectado ficou o programa e quanto tempo demorará a recompor e, o que acontecerá quando o for.

Como se constata, as supostas “vitórias” israelitas são condicionais, efémeras e meramente temporárias. Nenhuma é realmente definitiva e nenhuma representa algo de novo, para além do que já sabíamos existir: capacidade da MOSSAD; aventureirismo e fanatismo suicida de Netanyahu; pretensão de Netanyahu em se manter no poder; protecção conferida pelos EUA.

No entanto, não nos esqueçamos: muitas vezes os objectivos declarados não correspondem aos objectivos assumidos. Será que Netanyahu contava com a efectiva destruição do programa nuclear e de mísseis do Irão e a mudança de regime, ou estava mais preocupado em arrastar os EUA para o confronto? À luz do primeiro, não pode cantar vitória, mas… E do segundo? Conseguiu, ou não, o que queria? Alguém duvida que Netanyahu esteja convencido de uma vitória sobre o Irão, tendo os EUA ao seu lado?

Isto significa que temos de ler todas as direcções, declaradas e visíveis, como as invisíveis e nunca declaradas, de um conflito. O que não se pode confessar, pode constituir uma vitória mais importante do que o declarado. E se existe alguém torpe, cínico e obstinado – igualmente messiânico -, esse alguém é Netanyahu. Se todos sabemos que foi o próprio quem esteve por detrás da destruição e vários estados, manipulação de outros e aniquilação de milhões de seres humanos, como duvidar da sua eficácia e da sua capacidade para prosseguir objectivos?

O equilíbrio, nestas coisas, é fundamental. O exemplo Sírio deve ficar-nos a todos bem presente. Um dia Israel estava cercado e depois já não estava!

O Irão declara-se vitorioso por sobreviver

Já o Irão ganha porque sobreviveu ao ataque de dois exércitos brutais e poderosos. Diria mesmo, os mais poderosos e assassinos da história humana. As vítimas ganham quando sobrevivem a ataques que as visam aniquilar. Quem falha em fazê-lo é derrotado!

O Irão logrou impor danos que nunca antes tinham sido impostos a Israel e assim criar a dúvida na sociedade israelita face à estratégia de Netanyahu. Para já, o Irão vai resistindo, apesar das perdas maiores. Mas, um país que é centenas de vezes maior que Israel, tem muito maior capacidade de absorção do dano. Acresce que a sociedade iraniana está endurecida por décadas de agressão ocidental, o que não deixa de produzir níveis de resiliência e consciência superiores.

Os níveis de consciência do povo iraniano são também o que permite à sua liderança cantar vitória. Se o inimigo queria desacreditar o regime, fez o contrário. Os exemplos de Iraque, Líbia, Síria e Ucrânia estão bem vívidos na memória de cada um e, em especial dos Iranianos, que vivem ao lado do Iraque, país de maioria xiita, como o Irão, e que, uma vez alvo de mudança de regime por acção externa, nunca mais se endireitou.

A verdade é que as franjas da população iraniana que não se revêem no regime demo-teocrático de Al-Khamenei, todos, exceptuando os corrompidos pela MOSSAD e CIA, sobrepesaram as suas diferenças e chegaram à consideração de duas coisas muito importantes:

  • Entre o deve e o haver, é melhor o que está, do que o que os EUA e Israel têm para oferecer;
  • Mesmo considerando todas as contradições, o regime actual tem a credibilidade de pelo menos, conseguir defender a existência, integridade e soberania da nação iraniana.

Sem esta última hipótese nunca será possível o desenvolvimento que anseiam. A prova-lo estão os que caíram no logro e agora têm de viver em países destruídos, cuja alma social, nacional e colectiva foram destruídas em prol da existência e “segurança” de Israel. Aos EUA e a Israel faltam exemplos na região, de que vale a pena trabalhar com eles e deixá-los tomar o poder. Todos os que o fizeram, arrependeram-se profundamente. Essa é também uma vitória do Irão, uma vitória da sua resistência. A “segurança” de Israel alimenta-se da podridão alheia. Ao não cair no logro montado pelo ocidente, podemos dizer que o Irão ganhou futuro. Um futuro conturbado e desafiante, mas é um futuro. Algo que não assiste aos restantes, a Ucrânia que o diga.

Mas o Irão, para além desta coesão nacional, ainda ganha outras coisas:

  • Ganhou o apoio e simpatia generalizada do sul global;
  • O sentimento e coesão nacional ficam reforçados;
  • Tem a garantia e todo o mundo o ficou a conhecer, de que conta com apoios pesados de China e Rússia;
  • Consegue fazer frente a Israel e, para já, sobreviver;
  • Consegue amedrontar Trump ao ponto de este parecer temer mais os danos económicos decorrentes do encerramento do estreito de Ormuz, do que a continuidade dos negócios entre o Irão e a China;
  • Consegue manter o seu programa nuclear e de mísseis;
  • Consegue passar de uma certa imagem de agressor, para uma imagem de vítima de agressão.

Torna-se hoje muito mais complicado ao ocidente apresentar o Irão como esse papão que tudo invade e mata, uma vez que Israel foi quem o agrediu e de forma não provocada. Por fim, o Irão consegue manter-se ligado aos seus parceiros estratégicos, sem ter caído no que pretendia Israel: usar este conflito para obrigar o mundo a isolar o Irão, outra vez.

Agora, isto não quer dizer que o Irão não tenha perdido algo com este conflito. O Irão perde algumas das suas melhores lideranças. Mas, por outro lado, ao longo dos dias de conflito, falou-se muito do Irão e em parte, esse facto foi usado para construir consciência sobre o que é realmente o país, abrindo portas a uma nova e reforçada imagem projectada para o mundo. Mas nunca nos esqueçamos que as vitórias das vítimas são sempre mais danosas para elas, do que as derrotas o são para os seus agressores. Nunca nos esqueçamos que são as vítimas que pagam sempre o maior preço. Simplesmente porque são mais pobres.

Esse sacrifício maior ainda pode estar para chegar. Mas chegando, Israel e EUA ficam com pelo menos uma certeza, guerrear com o Irão não vai ser uma passeata na Síria ou um tiro ao alvo em Gaza.

O Irão ganha ainda o poder da decisão. A meu ver cabe ao Irão dizer quando a guerra acabou, ou não. Quando o supremo líder Ali Khamenei diz que “nunca nos renderemos”, está a anunciar ao mundo que serão eles, e não os inimigos, a dizer quando tudo acabará. Acresce que, o Irão tem também um trunfo, penoso, mas decisivo, que consiste no facto de a sua melhor hipótese de ganhar uma guerra com estes contendores e, através dela determinar o fim de Israel e a queda o império estado-unidense, reside na capacidade que tenha para atrair os EUA a uma invasão terrestre, que alienaria a base MAGA, exauriria os cofres imperiais e acabaria, com um Irão extenuado, mas vitorioso. O Irão contaria, nesse caso com forças poderosas como o fecho do estreito de Ormuz, o bloqueio Chinês e talvez Russo à venda de minerais críticos ao ocidente, à instabilização dos mercados energéticos, de bens de consumo, componentes e matérias primas. Ao invés, a Rússia ficaria a vender petróleo a 300$ o barril, que todos quereriam comprar.

Vamos ver por quanto tempo se evita este cenário, mas parece-me que Israel está inclinado para se dirigir para algo como isto, por muito que EUA e Trump o temam. Este temor é um trunfo para o Irão. Num conflito desses, uma vez mais se provará a que a doutrina militar dos EUA não funcionará, como não funcionou no Iémen ou no Afeganistão, como não funciona a de Israel em Gaza, apesar da chacina de milhares de seres humanos.

E a derrota? Houve alguma derrota?

Neste processo todo houve um derrotado anunciado, uma vez que os restantes vitoriosos o são em suspenso, trata-se da União Europeia! Não apenas a União Europeia assistiu à destruição das estruturas multilaterais que dão importância aos principais países que a compõem – França e Inglaterra fazem parte do Conselho de Segurança da ONU, o que não corresponde minimamente à sua importância actual -, como se mostrou incapaz do mínimo pensamento independente, colectivo, coordenado e estrategicamente relevante.

A União Europeia seria a principal prejudicada com o encerramento do estreito de Ormuz. Ao invés de apaziguar, conter a escalada, proteger a ordem internacional e usar uma carta poderosa que tem em seu poder, que é o tratado de associação com Israel, o que fizeram os líderes europeus? Uma vez mais foram incapazes de proteger os países europeus, os povos europeus, a ordem internacional que fez a europa prosperar e reconstruir-se após a segunda guerra.

Mas não foi só. A antagonização do Irão, o fim do JCPOA em Trump 1.0, afectou muito os negócios que os países europeus tinham com o Irão, nomeadamente numa área em que a União Europeia é extremamente carente: o petróleo e o gás. Uma vez mais, a EU que já deu orientações no sentido de continuar a permitir veículos de combustão interna até 2040, que pretende montar uma indústria de armamento, tecnologicamente atrasada, com baixo valor acrescentado e com perfil de consumo energético brutal, voltou a alienar a possibilidade de concorrer com a China na compra do petróleo e gás iraniano, sempre mais barato do que o americano.

Acresce que a EU, que não consegue unir-se relativamente ao genocídio que Israel opera na Palestina, assistiu a gente como Merz, Rutte ou Kallas, com as suas declarações infantis e irresponsáveis, estourarem com a réstia de credibilidade que ainda alguém muito cego lhes poderia atribuir. Tudo o que acusam a Federação Russa e Putin de fazer, aceitam de bom grado a Netanyahu e em proporções absolutamente desconcertantes. Netanyahu atacou 5 países num ano: Palestina; Líbano, Síria, Iémen e Irão! E o que dizem tais figuras? É para continuar!

O descalabro maior ainda estaria para vir quando, vendo Trump aproveitar todo este circo para impor 5% de compras à NATO, com excepção da Espanha, todos embrulharam a encomenda e aceitaram os 5%, que agora dizem ser 3,5%, mas que sabemos serem mesmo 5%, porquanto os 1,5% serem de despesas indirectas em infra-estruturas e coisas do género, mas importantes para a estratégia de defesa.

Esta EU faz tudo isto e quer convencer-nos a todos de que se vai armar e que uma vez armada até aos dentes ganhará capacidade para se defender, quando tudo o que fez até hoje demonstra apenas e só uma certeza: quando na posse de tais armas, a EU usará as mesmas para se aniquilar a si própria!

Os “líderes” da EU comportam-se como aqueles indivíduos muito fracos a quem de repente dão uma arma. Confundem a afronta que Putin lhes fez, o caracter vincado de Xi e a arrogância de Trump, como sendo algo relacionado com o armamento que dispõem… nada mais errado! O caracter não se constrói em fábricas metalomecânicas. Um incapaz armado, será apenas um incapaz perigoso! No caso da EU, muito perigoso mesmo! E não o podendo ser para outros, por falta de coragem ou incapacidade, será para dentro que se virará e acabará a punir as Hungrias, Espanhas ou Eslováquias da vida, porque têm a coragem de a contradizer.

Dizer que a Turquia se reservou a este comportamento seria redundante. Neste processo, que tanto interessaria à Turquia, o Sr. Erdogan comportou-se também como um moço de recados! Mais envergonhado, é certo, mas um mero garçonete de Trump.

A ver vamos as cenas dos próximos capítulos, mas a guerra ainda está a começar e já tem um derrotado. O mesmo de sempre!

Uma guerra, três vitórias e o derrotado de sempre!

Já não existirão guerras como antigamente, daquelas em que a parte vitoriosa era facilmente assumida?

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Já não existirão guerras como antigamente, daquelas em que a parte vitoriosa era facilmente assumida? A verdade é que considerando as declarações e propaganda afecta aos três contendores directos envolvidos no conflito criado por Israel o insólito aconteceu: todas as partes se assumiram como vencedoras!

Antes de analisarmos as posições relativas de cada contendor teremos de estabelecer os seguintes pontos prévios:

  • Esta ambiguidade na forma como classificamos o resultado da disputa relativamente a cada uma das partes, é própria do momento intermédio em que nos encontramos;
  • Consequentemente, as avaliações que cada um faz enfermam da forma parcial como analisam oi evento, na relação entre o ponto de partida e o que cada um estabeleceu como ponto de chegada. O problema é que o “ponto de chegada”, não apenas é diferente para cada uma das partes envolvidas, como o que será o resultado final, a síntese dialéctica da contradição Israel-EUA/Irão-Islão-BRICS, é, neste momento, ainda imprevisível.

Nenhuma das partes pode arrogar-se de determinar à partida ter chegado ou saber como será o resultado final.

Neste sentido, todos se contentam como vantagens tácticas, mais ou menos relevantes. Neste quadro, todos podem assim cantar vitória, pois ainda nos encontramos nessa fase intermédia em que os avanços, recuos, perdas e ganhos não apenas são mútuos, como podem ser sobrevalorizados uns, em detrimento de outros. Na hora da definição final, essa ambiguidade desaparecerá, apenas para ser recuperada mais tarde.

Lembremo-nos que ainda numa fase embrionária da guerra da Ucrânia, todo o ocidente clamava vitória. Do outro lado, a Federação Russa fazia o mesmo. À medida que o conflito vai evoluindo e se vão definindo as suas constituintes fundamentais, vai sendo cada vez mais difícil às partes classificarem, de forma ambígua, o seu posicionamento. Hoje é inegável que a Federação Russa tem enorme vantagem e no ocidente já se vai assumindo a derrota. A própria paranóia belicista e militarista que tomou a União Europeia, tem a ver com esse desespero causado pela sensação de derrota eminente, numa fase em que já não pode ser escondida.

Por muito que se congele o conflito entre Irão e EUA/Israel, por muito que se evite a escalada final, haverá um momento de definição. Até esse momento, todos cantarão vitória, até não mais o poderem fazer.

Um conflito que não começou agora, mas há 78 anos

Este conflito ganha contornos decisivos – torna-se inevitável – com a Nabka em 1967 e prosseguem com o estabelecimento do estado de Israel em 1948, cujas ondas de choque, resultantes da ocupação de territórios palestinos e mais de um século de intervencionismo ocidental na região, não deixaram de conduzir a algo como a Revolução Islâmica – à data secretamente apoiada pelos EUA e Reino Unido. Em 1979 nasce assim o contendor mais poderoso que o ocidente e Israel encontrarão no seu domínio hegemónico do médio-oriente. Um contendor endurecido por décadas de sanções, tentativas de mudança de regime, uma guerra brutal que lhe foi movida por EUA e Saddam Husein e boicotes, sabotagens e corrupções permanentes no seu território. O que não nos mata, torna-nos mais fortes, diz o ditado.

Diz muito bem Sherman Narwani do The Cradle que esta intervenção dos EUA marca um novo momento na Ásia Ocidental, constituindo o fim das “guerras proxy”, uma vez que, segundo a sua avaliação, em guerra convencional, de botas no chão e consideradas as vantagens geográficas, o Irão é um par ao nível dos EUA.

Desta feita, assistimos a um império já sem anéis, necessitado de prescindir dos dedos. À falta de um país suicida cuja elite aceitasse atirar-se contra o Irão em nome da “democracia e direitos humanos”, como outros o fizeram, no caso o Iraque, sempre com péssimos resultados para os próprios, e uma vez que os Emires das arábias pagam com petróleo e petrodólar para que os deixem em paz, a oligarquia estado-unidense teve de recorrer ao filho pródigo e aos seus próprios recursos, para atacar o Irão, sempre no pressuposto de que, se corresse mal para Israel, o posto avançado poderia sempre contar com o grande irmão (em sentido literal, figurado e em sentido orwelliano também).

Já na Ucrânia, a NATO, os EUA, também tiveram a necessidade de se envolver directamente no conflito, mesmo que mascarando – com a anuência russa, refira-se – essa intervenção com “contratados”, “técnicos”, “consultores” e tudo mais. O exemplo da Geórgia, e outros virão, demonstra que o exemplo ucraniano está também a ser aprendido na região, como o foram o sírio, o líbio e o iraquiano. Idos os anéis, está na hora do império usar os dedos.

Trump empurrou e Grossi tornou-se o cangalheiro da AIEA e do TNPAN, criando a justificação que permitirá a continuação do conflito – em modo morno ou quente

Neste processo assistimos também ao fim da multilateralidade herdada da segunda guerra mundial. A verdade é que Grossi não quis para ele o mesmo futuro que teve Scott Ritter, o inspector que à data certificou ao mundo, ao congresso, contra a CIA, contra Biden (no senado) e George W. Bush, que não haviam armas de destruição em massa no Iraque. Mariano Grossi lá foi mantendo a dúvida, de forma torpe como só os trepadores sabem fazer e, tal como na NPP Energodar, olhando para os Drones, afirmava não saber de onde vinham, também desta feita assumiu a mesma atitude mesquinha e parcial, impensável para alguém que representa uma instituição com tão enorme responsabilidade.

À frente de uma Agência que visa impedir que o mundo acabe no holocausto nuclear, está alguém que nem sequer foi capaz de exigir a Israel que admita que as suas instalações nucleares sejam monitoradas pela organização que diz presidir.

Grossi foi assim o executor mor da destruição do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares e da Agência Internacional de Energia Atómica. A sua relutância em publicar um simples nota em que dissesse – mesmo sem condenar – que Israel estava a violar a lei internacional ao bombardear instalações nucleares monitoradas pela AIEA, já deu os primeiros resultados: o Parlamento Iraniano acaba de determinar que a AIEA e os seus inspectores não mais monitorização o programa iraniano.

A ver vamos se o senhor Grossi também não terá conseguido lançar a justificação para uma guerra definitiva contra o Irão, como se verá mais à frente! Israel dificilmente deixará de aproveitar a oportunidade que a ausência de monitorização “independente” comporta, e os EUA terão de se chegar à frente, desta vez, de forma definitiva. E nessa altura, as vitórias ou derrotas já não serão contas pelos próprios, mas pelos outros.

A vitória contada por Trump

Convém começar por dizer que os EUA têm duas cabeças, neste caso. Não é nova a contenda entre Trump e o deepstate. Daí que Trump tenha dado a entender que só fez o que fez porque a isso foi forçado. E não é difícil de encontrar indícios que para aí apontam, tais como a defesa, por Trump, de que tudo está acabado e que o programa nuclear está liquidado. Já o Pentágono e os Think Thank dizem que não, que os danos são limitados e o programa pode ser reposto nuns meros dois meses.

Então, podemos dizer que Trump cantou vitória, acreditou que poderia ir lá, descarregar umas MOP, fazer a vontade aos néocons (os tais que a comentadora Diana Soler da CNNN Portugal diz não existirem) e seguir o business as usual. Como mais ninguém, elogiou a força aérea, o comando militar, na esperança, talvez, de os encher de orgulho e conseguir que deixassem de o chatear com guerra. Mas, o que sucedeu é que, se Trump cantou vitória, o establishment norte americano não o fez e está profundamente renitente em aceitar que tudo acabou. Temos então uma atitude bicéfala e ambígua, por parte dos EUA, em que o Presidente assume a vitória, mas a sua estrutura, não assumindo derrota, também não se considera vitoriosa.

A vitória de Trump é fácil de entender e está relacionada, uma vez mais, com o seu ponto de partida, a sua posição relativa e os seus objectivos para o conflito. Trump estava perante uma economia dos EUA que cresce abaixo do esperado, com um crescimento industrial anémico que contraria as expectativas MAGA, um enfraquecimento do mercado de emprego, o que nos EUA tem suma importância face à falta de rede pública e solidária de apoio, o aumento da dívida, a queda do dólar e a fuga para o ouro. Prometendo à sua base que governaria para dentro, é fácil perceber o que seria uma vitória para Trump: conter a escalada e impedir movimentos económicos que aumentem a inflação e a degradação do dólar.

Para tal, Trump tinha de apaziguar os néocons, os sionistas, deixá-los saborear um gosto de vitória – que em ambos os casos é regada com sangue – e impor a contenção do conflito, a qual mesmo sendo muito frágil, levasse o Irão a não encerrar o estreito de Ormuz. Trump, na sua cabeça, conseguiu as três coisas. Para tal teve de jogar de forma arriscada e entrar no jogo voluntarista a aventureiro de Netanyahu. O risco é enorme e veremos se Trump poderá contê-lo. Para já, as mensagens que vai produzindo demonstram que o risco era mesmo muito elevado e que uma caixa de pandora foi aberta, com a sua anuência.

O que fez Trump, partindo do princípio de que não quer, de facto, a guerra longa, jogar de forma tão arriscada? Primeiro o seu sionismo, depois a pressão que sofre do complexo militar-industrial, por fim, as “vitórias” tácticas que poderia retirar.

A primeira dessas “vitórias” tácticas terá sido a bicada à sustentabilidade energética e comercial chinesa. É sabido que 90% do Petróleo e gás iranianos vão República Popular da China. Não será sem escárnio que Trump disse que “agora o Irão pode voltar a vender petróleo à China”, como que dizendo “façam-no lá com tudo arrasado”. Não é algo muito relevante, mas não deixa de ser uma provocação ganha segundo as regras de Trump.

Aliás, relativamente a este aspecto, Trump e a sua estratégia para os EUA ganham ainda outra coisa, que consiste em passar a ideia de que, quando quiserem arrasam as infra-estruturas iranianas, as quais são de suma importância para a BRI, os BRICS, a sustentabilidade energética chinesa e a sua influência na região. E as cabeças de Trump e néocons acreditam nisto com tal vigor que logo vieram uns quantos dizer que os BRICS assistiram à destruição do Irão e nada fizeram, que a Rússia e China não defenderam o seu aliado… Em termos comunicacionais Trump passa a ideia de que são os maiores e que ninguém tem coragem de os afrontar. Ao mesmo tempo, teme os efeitos económicos que uma guerra de alta intensidade poderia ter.

Depois, Trump e os seus EUA retiram ainda algo de muito importante de todo este teatro: não apenas retiraram parte importante dos seus equipamentos da Ucrânia, afastando-se ainda mais daquele cancro criado pelos próprios e alimentado pelo fanatismo e seguidismo europeus; como criaram um filme bélico que agrava a sensação de insegurança das elites europeias e providencia mais uma justificação – esfarrapada, como sempre – para que os “líderes” europeus baixem a cabeça e aceitem, como se viu, com a excepção da Espanha, o investimento de 5% do PIB em armamento. Considerando que a EU não tem capacidade para produzir tal quantidade de armas, já se está a ver onde as vai comprar.

Trump ainda retira daqui outras vitórias pessoais importantes:

  • Demonstra que os “líderes” europeus não passam de meros executivos ao serviço do Tio Sam e que, como qualquer CEO, a sua arte esgota-se na capacidade de serem bem-mandados; 2. Ultrapassa as barreiras morais de Biden e assume como política de estado que a NATO não passa de um supermercado de venda de armas à Europa;
  • Demonstra que o trumpismo não é mais danoso para a sociedade americana, do que o é o radical centrismo das “lideranças” europeias, capazes de tirar da saúde, educação, habitação e justiça dos povos que dizem representar, os recursos que depois entregam a Trump;
  • O caminho que o radical centrismo prossegue conduzirá à vitória do trumpismo na Europa, uma vez que este não deixará de usar as contradições levantadas por governos que prometem uma coisa e entregam outra;
  • Trump apresenta-se como o plenipotenciário da política norte-americana, uma espécie de líder faraónico, messiânico e de origem divina.

É claro que não são só vitórias que Trump retira, mas diria que, face às suas necessidades pessoais e de política externa, perante a ameaça de desagregação da sua base de apoio, Trump sai bastante bem do risco que enfrentou. Para já, pelo menos!

Não podemos argumentar que a destruição as instituições multilaterais do século XX são uma derrota de Trump, porque Trump não as respeita nem parece contar com elas. Enquanto pilares do soft power de outrora e tentáculos de uma visão globalista, Trump considera-as ultrapassadas. A visão de Trump é a da força bruta como factor de convencimento negocial, um pouco à imagem da tortura: não aceitas? Ficas sem um dedo! E Trump, na sua perspectiva, cortou uma mão ao Irão. A destruição da arquitectura multilateral proposta e construída pelos EUA, a seguir à segunda guerra mundial, é uma derrota para os EUA no longo prazo, mas para Trump, considerando a sua estratégia para os EUA, o valor desta estrutura é desprezível. A meu ver, arrepender-se-á disso mais tarde. E descobrirá que para as vítimas as mãos não são tão importantes como para os agressores. Lutando por causas, luta-se com tudo! Nem os EUA, nem Israel, viciados em conforto e luxo, adversários fragilizados pelos próprios e guerras limitadas, terão vida fácil num conflito aberto com um povo consciente e unido como o iraniano.

Para Trump, qual imperador faraónico, que anulou o congresso e a estrutura de poder representativo dos EUA (mais uma vitória pessoal), reforçando, como Biden já o havia feito, que a democracia que ainda existia está morta e enterrada (veja-se o que disse Bruce Springsteen sobre o assunto), o poder é transaccionável e impõe-se através de uma relação e forças que é construída com cartas de trunfo. Para o globalismo, as cartas de trunfo só eram jogadas quando o bluff da democracia e dos direitos humanos não funcionava. Trump dispensa isto tudo. Tem pressa e precisa de resultados rápidos com que possa convencer a sua base, se possível alargá-la e, quem sabe, através de muita volta e reviravolta, conseguir um terceiro mandato. Como? Veremos.

Mas não se pense é que tudo acabou por aqui, pois tal seria um erro, num conflito que ganhou o seu mais forte contendor em 1979, com o nascimento da República Islâmica do Irão, que desde logo proclamou pretender o fim da ocupação israelita, presumir que seria o próprio Trump a definir os trâmites sob os quais tudo se desenvolve. Trump e os EUA iniciaram um processo que, sabendo o Irão jogar bem as suas cartas, é a nação persa que terá a última palavra sobre onde acaba o conflito.

Também não podemos colocar de parte que Trump possa ter percebido nisto tudo a ideia de que o ataque ao Irão constituiu uma armadilha montada para tramar e envolver directamente os EUA. Mesmo sabendo disto, arriscou e deixou Israel obrigar o grande irmão a entrar num conflito mortal, para o defender. Quer tenha participado de forma convicta ou forçada, Trump pode, para já contentar-se com o resultado, mas o incontrolável futuro não deixará de o assaltar mais tarde.

Israel, o mais derrotado, foi mais longe e declarou atingidos todos os objectivos

Para Netanyahu não houve dúvidas: o Iron Dome não deixou passar nada e todos os objectivos foram atingidos! Entrementes, censurou a comunicação social, as redes sociais e aplicou regras draconianas a quem divulgasse os danos provocados pelos mísseis iranianos que nunca passaram o Iron Dome.

É verdade que Israel sofreu danos que nunca havia sofrido, também é verdade que, por muito pequeno e concentrado que seja o território, o Irão apenas atacou locais de interesse estratégico e militar, sendo que, também como o Irão, Israel tem mais infra-estruturas por debaixo, do que por cima. E essas, não parece que tenham sido afectadas. Por muito que tenhamos vistos os israelitas assustados como nunca, a verdade também é que, na sua potência, o ataque do Irão não foi brutalmente desumano, como sucedeu com o israelita. Os israelitas ainda não experimentaram, verdadeiramente, o que é ver os seus alvos civis serem transformados em militares, porque lá se encontram reservistas, como faz Israel. Num conflito desenfreado, o Irão não deixará de entrar nessa escalada e, aí sim, não haverá nenhum Netanyahu que o possa esconder.

Para os fanáticos, a condescendência humana inimiga é interpretada como fraqueza. Em Promessa verdadeira 1 e 2, o Irão limitou os ataques a meras demonstrações. Tal como a Rússia havia feito na Ucrânia com a sua operação militar especial, poupando civis quando possível e infra-estruturas básicas. Para neonazis e sionistas estes comportamentos são interpretados como vindo de gente fraca ou de gente sem recursos. O regime neonazi de Kiev já percebeu que estava errado, parece-me, no entanto, que Netanyahu ainda não o entendeu.

No caso israelita também temos de distinguir os objectivos pessoais de Netanyahu, dos do posto avançado sionista. Israel, o território, só perdeu com este ataque ao Irão. Daqui saiu um povo com sensação de insegurança e paranóia persecutória que continuará a jogar-se em cima das crianças, idosos e mulheres Palestinas, agora que já uma patente militar veio reconhecer que o ritmo de aniquilação do Hamas não está a dar os frutos desejados. Mas Netanyahu ganhou tempo, principalmente quando foi citado para comparecer no julgamento a decorrer no Supremo Tribunal. A situação de emergência poderá ser invocada para se manter no poder.

Considerando as palavras de Netanyahu e seus apaniguados, Israel conseguiu: 1. Atrasar – ou aniquilar – de forma inequívoca o programa nuclear iraniano; 2. Atrasar o desenvolvimento industrial iraniano, logo agora que a linha ferroviária que liga a China a Teerão já se encontra em funcionamento; 3. Conseguiu arrastar o grande irmão – os EUA – para um conflito regional de proporções imprevisíveis, garantindo que será Trump a seguir o seu aventureirismo e não o contrário; 4. Israel consegue praticar um genocídio, em que Harvard já fala em 377.000 pessoas desaparecidas em Gaza, e receber apoio incondicional da Europa, ao mesmo tempo, retirando daí a conclusão que tem, da parte da EU, tapete vermelho para continuar.

Claro que esta sensação de “vitória” não pode ser nem total, nem verdadeira. A mudança de regime tentada não aconteceu, bem pelo contrário, mas sobre isso, Netanyahu nada diz, o que não pode ser interpretado como uma desistência. Também não ficou provado que a força aérea israelita tenha tido caminho tão livre como diz: o blogger “Simplicius The Thinker”, que faz algumas das melhores apreciações militares que conheço, diz que só existe um vídeo com um avião israelita a sobrevoar o Irão, numa cidade periférica e fornecido pelos próprios israelitas. Sabemos também que muitos dos ataques que Israel diz ter praticado com drones, foram praticados a partir de dentro. Esta situação não deixa de demonstrar o que já se sabe: que a MOSSAD tem uma capacidade brutal de inserção social, o que não constitui uma vitória, neste caso. O Irão aproveitou a deixa para limpar o país de colaboracionistas e traidores.

Não obstante o sabermos das ineficiências do Iron Dome e do sistema Arrow, do receio de ficar sem interceptores, a verdade é que ainda existem alguns objectivos que Netanyahu e os eu aparato adicionam à sua lista. Para quem quer uma mudança de regime, atrasar o desenvolvimento iraniano significa ganhar tempo para capitalizar as contradições sociais que se produzem nas sociedades estagnadas e incapazes de responderem às necessidades dos respectivos povos. Uma vez que o programa nuclear iraniano significa energia barata e limpa, o seu atraso, não deixará de trazer dificuldades ao crescimento económico do Irão, dificuldades essas que Israel – e EUA – não deixará de capitalizar em seu favor. Veremos o quão afectado ficou o programa e quanto tempo demorará a recompor e, o que acontecerá quando o for.

Como se constata, as supostas “vitórias” israelitas são condicionais, efémeras e meramente temporárias. Nenhuma é realmente definitiva e nenhuma representa algo de novo, para além do que já sabíamos existir: capacidade da MOSSAD; aventureirismo e fanatismo suicida de Netanyahu; pretensão de Netanyahu em se manter no poder; protecção conferida pelos EUA.

No entanto, não nos esqueçamos: muitas vezes os objectivos declarados não correspondem aos objectivos assumidos. Será que Netanyahu contava com a efectiva destruição do programa nuclear e de mísseis do Irão e a mudança de regime, ou estava mais preocupado em arrastar os EUA para o confronto? À luz do primeiro, não pode cantar vitória, mas… E do segundo? Conseguiu, ou não, o que queria? Alguém duvida que Netanyahu esteja convencido de uma vitória sobre o Irão, tendo os EUA ao seu lado?

Isto significa que temos de ler todas as direcções, declaradas e visíveis, como as invisíveis e nunca declaradas, de um conflito. O que não se pode confessar, pode constituir uma vitória mais importante do que o declarado. E se existe alguém torpe, cínico e obstinado – igualmente messiânico -, esse alguém é Netanyahu. Se todos sabemos que foi o próprio quem esteve por detrás da destruição e vários estados, manipulação de outros e aniquilação de milhões de seres humanos, como duvidar da sua eficácia e da sua capacidade para prosseguir objectivos?

O equilíbrio, nestas coisas, é fundamental. O exemplo Sírio deve ficar-nos a todos bem presente. Um dia Israel estava cercado e depois já não estava!

O Irão declara-se vitorioso por sobreviver

Já o Irão ganha porque sobreviveu ao ataque de dois exércitos brutais e poderosos. Diria mesmo, os mais poderosos e assassinos da história humana. As vítimas ganham quando sobrevivem a ataques que as visam aniquilar. Quem falha em fazê-lo é derrotado!

O Irão logrou impor danos que nunca antes tinham sido impostos a Israel e assim criar a dúvida na sociedade israelita face à estratégia de Netanyahu. Para já, o Irão vai resistindo, apesar das perdas maiores. Mas, um país que é centenas de vezes maior que Israel, tem muito maior capacidade de absorção do dano. Acresce que a sociedade iraniana está endurecida por décadas de agressão ocidental, o que não deixa de produzir níveis de resiliência e consciência superiores.

Os níveis de consciência do povo iraniano são também o que permite à sua liderança cantar vitória. Se o inimigo queria desacreditar o regime, fez o contrário. Os exemplos de Iraque, Líbia, Síria e Ucrânia estão bem vívidos na memória de cada um e, em especial dos Iranianos, que vivem ao lado do Iraque, país de maioria xiita, como o Irão, e que, uma vez alvo de mudança de regime por acção externa, nunca mais se endireitou.

A verdade é que as franjas da população iraniana que não se revêem no regime demo-teocrático de Al-Khamenei, todos, exceptuando os corrompidos pela MOSSAD e CIA, sobrepesaram as suas diferenças e chegaram à consideração de duas coisas muito importantes:

  • Entre o deve e o haver, é melhor o que está, do que o que os EUA e Israel têm para oferecer;
  • Mesmo considerando todas as contradições, o regime actual tem a credibilidade de pelo menos, conseguir defender a existência, integridade e soberania da nação iraniana.

Sem esta última hipótese nunca será possível o desenvolvimento que anseiam. A prova-lo estão os que caíram no logro e agora têm de viver em países destruídos, cuja alma social, nacional e colectiva foram destruídas em prol da existência e “segurança” de Israel. Aos EUA e a Israel faltam exemplos na região, de que vale a pena trabalhar com eles e deixá-los tomar o poder. Todos os que o fizeram, arrependeram-se profundamente. Essa é também uma vitória do Irão, uma vitória da sua resistência. A “segurança” de Israel alimenta-se da podridão alheia. Ao não cair no logro montado pelo ocidente, podemos dizer que o Irão ganhou futuro. Um futuro conturbado e desafiante, mas é um futuro. Algo que não assiste aos restantes, a Ucrânia que o diga.

Mas o Irão, para além desta coesão nacional, ainda ganha outras coisas:

  • Ganhou o apoio e simpatia generalizada do sul global;
  • O sentimento e coesão nacional ficam reforçados;
  • Tem a garantia e todo o mundo o ficou a conhecer, de que conta com apoios pesados de China e Rússia;
  • Consegue fazer frente a Israel e, para já, sobreviver;
  • Consegue amedrontar Trump ao ponto de este parecer temer mais os danos económicos decorrentes do encerramento do estreito de Ormuz, do que a continuidade dos negócios entre o Irão e a China;
  • Consegue manter o seu programa nuclear e de mísseis;
  • Consegue passar de uma certa imagem de agressor, para uma imagem de vítima de agressão.

Torna-se hoje muito mais complicado ao ocidente apresentar o Irão como esse papão que tudo invade e mata, uma vez que Israel foi quem o agrediu e de forma não provocada. Por fim, o Irão consegue manter-se ligado aos seus parceiros estratégicos, sem ter caído no que pretendia Israel: usar este conflito para obrigar o mundo a isolar o Irão, outra vez.

Agora, isto não quer dizer que o Irão não tenha perdido algo com este conflito. O Irão perde algumas das suas melhores lideranças. Mas, por outro lado, ao longo dos dias de conflito, falou-se muito do Irão e em parte, esse facto foi usado para construir consciência sobre o que é realmente o país, abrindo portas a uma nova e reforçada imagem projectada para o mundo. Mas nunca nos esqueçamos que as vitórias das vítimas são sempre mais danosas para elas, do que as derrotas o são para os seus agressores. Nunca nos esqueçamos que são as vítimas que pagam sempre o maior preço. Simplesmente porque são mais pobres.

Esse sacrifício maior ainda pode estar para chegar. Mas chegando, Israel e EUA ficam com pelo menos uma certeza, guerrear com o Irão não vai ser uma passeata na Síria ou um tiro ao alvo em Gaza.

O Irão ganha ainda o poder da decisão. A meu ver cabe ao Irão dizer quando a guerra acabou, ou não. Quando o supremo líder Ali Khamenei diz que “nunca nos renderemos”, está a anunciar ao mundo que serão eles, e não os inimigos, a dizer quando tudo acabará. Acresce que, o Irão tem também um trunfo, penoso, mas decisivo, que consiste no facto de a sua melhor hipótese de ganhar uma guerra com estes contendores e, através dela determinar o fim de Israel e a queda o império estado-unidense, reside na capacidade que tenha para atrair os EUA a uma invasão terrestre, que alienaria a base MAGA, exauriria os cofres imperiais e acabaria, com um Irão extenuado, mas vitorioso. O Irão contaria, nesse caso com forças poderosas como o fecho do estreito de Ormuz, o bloqueio Chinês e talvez Russo à venda de minerais críticos ao ocidente, à instabilização dos mercados energéticos, de bens de consumo, componentes e matérias primas. Ao invés, a Rússia ficaria a vender petróleo a 300$ o barril, que todos quereriam comprar.

Vamos ver por quanto tempo se evita este cenário, mas parece-me que Israel está inclinado para se dirigir para algo como isto, por muito que EUA e Trump o temam. Este temor é um trunfo para o Irão. Num conflito desses, uma vez mais se provará a que a doutrina militar dos EUA não funcionará, como não funcionou no Iémen ou no Afeganistão, como não funciona a de Israel em Gaza, apesar da chacina de milhares de seres humanos.

E a derrota? Houve alguma derrota?

Neste processo todo houve um derrotado anunciado, uma vez que os restantes vitoriosos o são em suspenso, trata-se da União Europeia! Não apenas a União Europeia assistiu à destruição das estruturas multilaterais que dão importância aos principais países que a compõem – França e Inglaterra fazem parte do Conselho de Segurança da ONU, o que não corresponde minimamente à sua importância actual -, como se mostrou incapaz do mínimo pensamento independente, colectivo, coordenado e estrategicamente relevante.

A União Europeia seria a principal prejudicada com o encerramento do estreito de Ormuz. Ao invés de apaziguar, conter a escalada, proteger a ordem internacional e usar uma carta poderosa que tem em seu poder, que é o tratado de associação com Israel, o que fizeram os líderes europeus? Uma vez mais foram incapazes de proteger os países europeus, os povos europeus, a ordem internacional que fez a europa prosperar e reconstruir-se após a segunda guerra.

Mas não foi só. A antagonização do Irão, o fim do JCPOA em Trump 1.0, afectou muito os negócios que os países europeus tinham com o Irão, nomeadamente numa área em que a União Europeia é extremamente carente: o petróleo e o gás. Uma vez mais, a EU que já deu orientações no sentido de continuar a permitir veículos de combustão interna até 2040, que pretende montar uma indústria de armamento, tecnologicamente atrasada, com baixo valor acrescentado e com perfil de consumo energético brutal, voltou a alienar a possibilidade de concorrer com a China na compra do petróleo e gás iraniano, sempre mais barato do que o americano.

Acresce que a EU, que não consegue unir-se relativamente ao genocídio que Israel opera na Palestina, assistiu a gente como Merz, Rutte ou Kallas, com as suas declarações infantis e irresponsáveis, estourarem com a réstia de credibilidade que ainda alguém muito cego lhes poderia atribuir. Tudo o que acusam a Federação Russa e Putin de fazer, aceitam de bom grado a Netanyahu e em proporções absolutamente desconcertantes. Netanyahu atacou 5 países num ano: Palestina; Líbano, Síria, Iémen e Irão! E o que dizem tais figuras? É para continuar!

O descalabro maior ainda estaria para vir quando, vendo Trump aproveitar todo este circo para impor 5% de compras à NATO, com excepção da Espanha, todos embrulharam a encomenda e aceitaram os 5%, que agora dizem ser 3,5%, mas que sabemos serem mesmo 5%, porquanto os 1,5% serem de despesas indirectas em infra-estruturas e coisas do género, mas importantes para a estratégia de defesa.

Esta EU faz tudo isto e quer convencer-nos a todos de que se vai armar e que uma vez armada até aos dentes ganhará capacidade para se defender, quando tudo o que fez até hoje demonstra apenas e só uma certeza: quando na posse de tais armas, a EU usará as mesmas para se aniquilar a si própria!

Os “líderes” da EU comportam-se como aqueles indivíduos muito fracos a quem de repente dão uma arma. Confundem a afronta que Putin lhes fez, o caracter vincado de Xi e a arrogância de Trump, como sendo algo relacionado com o armamento que dispõem… nada mais errado! O caracter não se constrói em fábricas metalomecânicas. Um incapaz armado, será apenas um incapaz perigoso! No caso da EU, muito perigoso mesmo! E não o podendo ser para outros, por falta de coragem ou incapacidade, será para dentro que se virará e acabará a punir as Hungrias, Espanhas ou Eslováquias da vida, porque têm a coragem de a contradizer.

Dizer que a Turquia se reservou a este comportamento seria redundante. Neste processo, que tanto interessaria à Turquia, o Sr. Erdogan comportou-se também como um moço de recados! Mais envergonhado, é certo, mas um mero garçonete de Trump.

A ver vamos as cenas dos próximos capítulos, mas a guerra ainda está a começar e já tem um derrotado. O mesmo de sempre!

Já não existirão guerras como antigamente, daquelas em que a parte vitoriosa era facilmente assumida?

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Já não existirão guerras como antigamente, daquelas em que a parte vitoriosa era facilmente assumida? A verdade é que considerando as declarações e propaganda afecta aos três contendores directos envolvidos no conflito criado por Israel o insólito aconteceu: todas as partes se assumiram como vencedoras!

Antes de analisarmos as posições relativas de cada contendor teremos de estabelecer os seguintes pontos prévios:

  • Esta ambiguidade na forma como classificamos o resultado da disputa relativamente a cada uma das partes, é própria do momento intermédio em que nos encontramos;
  • Consequentemente, as avaliações que cada um faz enfermam da forma parcial como analisam oi evento, na relação entre o ponto de partida e o que cada um estabeleceu como ponto de chegada. O problema é que o “ponto de chegada”, não apenas é diferente para cada uma das partes envolvidas, como o que será o resultado final, a síntese dialéctica da contradição Israel-EUA/Irão-Islão-BRICS, é, neste momento, ainda imprevisível.

Nenhuma das partes pode arrogar-se de determinar à partida ter chegado ou saber como será o resultado final.

Neste sentido, todos se contentam como vantagens tácticas, mais ou menos relevantes. Neste quadro, todos podem assim cantar vitória, pois ainda nos encontramos nessa fase intermédia em que os avanços, recuos, perdas e ganhos não apenas são mútuos, como podem ser sobrevalorizados uns, em detrimento de outros. Na hora da definição final, essa ambiguidade desaparecerá, apenas para ser recuperada mais tarde.

Lembremo-nos que ainda numa fase embrionária da guerra da Ucrânia, todo o ocidente clamava vitória. Do outro lado, a Federação Russa fazia o mesmo. À medida que o conflito vai evoluindo e se vão definindo as suas constituintes fundamentais, vai sendo cada vez mais difícil às partes classificarem, de forma ambígua, o seu posicionamento. Hoje é inegável que a Federação Russa tem enorme vantagem e no ocidente já se vai assumindo a derrota. A própria paranóia belicista e militarista que tomou a União Europeia, tem a ver com esse desespero causado pela sensação de derrota eminente, numa fase em que já não pode ser escondida.

Por muito que se congele o conflito entre Irão e EUA/Israel, por muito que se evite a escalada final, haverá um momento de definição. Até esse momento, todos cantarão vitória, até não mais o poderem fazer.

Um conflito que não começou agora, mas há 78 anos

Este conflito ganha contornos decisivos – torna-se inevitável – com a Nabka em 1967 e prosseguem com o estabelecimento do estado de Israel em 1948, cujas ondas de choque, resultantes da ocupação de territórios palestinos e mais de um século de intervencionismo ocidental na região, não deixaram de conduzir a algo como a Revolução Islâmica – à data secretamente apoiada pelos EUA e Reino Unido. Em 1979 nasce assim o contendor mais poderoso que o ocidente e Israel encontrarão no seu domínio hegemónico do médio-oriente. Um contendor endurecido por décadas de sanções, tentativas de mudança de regime, uma guerra brutal que lhe foi movida por EUA e Saddam Husein e boicotes, sabotagens e corrupções permanentes no seu território. O que não nos mata, torna-nos mais fortes, diz o ditado.

Diz muito bem Sherman Narwani do The Cradle que esta intervenção dos EUA marca um novo momento na Ásia Ocidental, constituindo o fim das “guerras proxy”, uma vez que, segundo a sua avaliação, em guerra convencional, de botas no chão e consideradas as vantagens geográficas, o Irão é um par ao nível dos EUA.

Desta feita, assistimos a um império já sem anéis, necessitado de prescindir dos dedos. À falta de um país suicida cuja elite aceitasse atirar-se contra o Irão em nome da “democracia e direitos humanos”, como outros o fizeram, no caso o Iraque, sempre com péssimos resultados para os próprios, e uma vez que os Emires das arábias pagam com petróleo e petrodólar para que os deixem em paz, a oligarquia estado-unidense teve de recorrer ao filho pródigo e aos seus próprios recursos, para atacar o Irão, sempre no pressuposto de que, se corresse mal para Israel, o posto avançado poderia sempre contar com o grande irmão (em sentido literal, figurado e em sentido orwelliano também).

Já na Ucrânia, a NATO, os EUA, também tiveram a necessidade de se envolver directamente no conflito, mesmo que mascarando – com a anuência russa, refira-se – essa intervenção com “contratados”, “técnicos”, “consultores” e tudo mais. O exemplo da Geórgia, e outros virão, demonstra que o exemplo ucraniano está também a ser aprendido na região, como o foram o sírio, o líbio e o iraquiano. Idos os anéis, está na hora do império usar os dedos.

Trump empurrou e Grossi tornou-se o cangalheiro da AIEA e do TNPAN, criando a justificação que permitirá a continuação do conflito – em modo morno ou quente

Neste processo assistimos também ao fim da multilateralidade herdada da segunda guerra mundial. A verdade é que Grossi não quis para ele o mesmo futuro que teve Scott Ritter, o inspector que à data certificou ao mundo, ao congresso, contra a CIA, contra Biden (no senado) e George W. Bush, que não haviam armas de destruição em massa no Iraque. Mariano Grossi lá foi mantendo a dúvida, de forma torpe como só os trepadores sabem fazer e, tal como na NPP Energodar, olhando para os Drones, afirmava não saber de onde vinham, também desta feita assumiu a mesma atitude mesquinha e parcial, impensável para alguém que representa uma instituição com tão enorme responsabilidade.

À frente de uma Agência que visa impedir que o mundo acabe no holocausto nuclear, está alguém que nem sequer foi capaz de exigir a Israel que admita que as suas instalações nucleares sejam monitoradas pela organização que diz presidir.

Grossi foi assim o executor mor da destruição do Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares e da Agência Internacional de Energia Atómica. A sua relutância em publicar um simples nota em que dissesse – mesmo sem condenar – que Israel estava a violar a lei internacional ao bombardear instalações nucleares monitoradas pela AIEA, já deu os primeiros resultados: o Parlamento Iraniano acaba de determinar que a AIEA e os seus inspectores não mais monitorização o programa iraniano.

A ver vamos se o senhor Grossi também não terá conseguido lançar a justificação para uma guerra definitiva contra o Irão, como se verá mais à frente! Israel dificilmente deixará de aproveitar a oportunidade que a ausência de monitorização “independente” comporta, e os EUA terão de se chegar à frente, desta vez, de forma definitiva. E nessa altura, as vitórias ou derrotas já não serão contas pelos próprios, mas pelos outros.

A vitória contada por Trump

Convém começar por dizer que os EUA têm duas cabeças, neste caso. Não é nova a contenda entre Trump e o deepstate. Daí que Trump tenha dado a entender que só fez o que fez porque a isso foi forçado. E não é difícil de encontrar indícios que para aí apontam, tais como a defesa, por Trump, de que tudo está acabado e que o programa nuclear está liquidado. Já o Pentágono e os Think Thank dizem que não, que os danos são limitados e o programa pode ser reposto nuns meros dois meses.

Então, podemos dizer que Trump cantou vitória, acreditou que poderia ir lá, descarregar umas MOP, fazer a vontade aos néocons (os tais que a comentadora Diana Soler da CNNN Portugal diz não existirem) e seguir o business as usual. Como mais ninguém, elogiou a força aérea, o comando militar, na esperança, talvez, de os encher de orgulho e conseguir que deixassem de o chatear com guerra. Mas, o que sucedeu é que, se Trump cantou vitória, o establishment norte americano não o fez e está profundamente renitente em aceitar que tudo acabou. Temos então uma atitude bicéfala e ambígua, por parte dos EUA, em que o Presidente assume a vitória, mas a sua estrutura, não assumindo derrota, também não se considera vitoriosa.

A vitória de Trump é fácil de entender e está relacionada, uma vez mais, com o seu ponto de partida, a sua posição relativa e os seus objectivos para o conflito. Trump estava perante uma economia dos EUA que cresce abaixo do esperado, com um crescimento industrial anémico que contraria as expectativas MAGA, um enfraquecimento do mercado de emprego, o que nos EUA tem suma importância face à falta de rede pública e solidária de apoio, o aumento da dívida, a queda do dólar e a fuga para o ouro. Prometendo à sua base que governaria para dentro, é fácil perceber o que seria uma vitória para Trump: conter a escalada e impedir movimentos económicos que aumentem a inflação e a degradação do dólar.

Para tal, Trump tinha de apaziguar os néocons, os sionistas, deixá-los saborear um gosto de vitória – que em ambos os casos é regada com sangue – e impor a contenção do conflito, a qual mesmo sendo muito frágil, levasse o Irão a não encerrar o estreito de Ormuz. Trump, na sua cabeça, conseguiu as três coisas. Para tal teve de jogar de forma arriscada e entrar no jogo voluntarista a aventureiro de Netanyahu. O risco é enorme e veremos se Trump poderá contê-lo. Para já, as mensagens que vai produzindo demonstram que o risco era mesmo muito elevado e que uma caixa de pandora foi aberta, com a sua anuência.

O que fez Trump, partindo do princípio de que não quer, de facto, a guerra longa, jogar de forma tão arriscada? Primeiro o seu sionismo, depois a pressão que sofre do complexo militar-industrial, por fim, as “vitórias” tácticas que poderia retirar.

A primeira dessas “vitórias” tácticas terá sido a bicada à sustentabilidade energética e comercial chinesa. É sabido que 90% do Petróleo e gás iranianos vão República Popular da China. Não será sem escárnio que Trump disse que “agora o Irão pode voltar a vender petróleo à China”, como que dizendo “façam-no lá com tudo arrasado”. Não é algo muito relevante, mas não deixa de ser uma provocação ganha segundo as regras de Trump.

Aliás, relativamente a este aspecto, Trump e a sua estratégia para os EUA ganham ainda outra coisa, que consiste em passar a ideia de que, quando quiserem arrasam as infra-estruturas iranianas, as quais são de suma importância para a BRI, os BRICS, a sustentabilidade energética chinesa e a sua influência na região. E as cabeças de Trump e néocons acreditam nisto com tal vigor que logo vieram uns quantos dizer que os BRICS assistiram à destruição do Irão e nada fizeram, que a Rússia e China não defenderam o seu aliado… Em termos comunicacionais Trump passa a ideia de que são os maiores e que ninguém tem coragem de os afrontar. Ao mesmo tempo, teme os efeitos económicos que uma guerra de alta intensidade poderia ter.

Depois, Trump e os seus EUA retiram ainda algo de muito importante de todo este teatro: não apenas retiraram parte importante dos seus equipamentos da Ucrânia, afastando-se ainda mais daquele cancro criado pelos próprios e alimentado pelo fanatismo e seguidismo europeus; como criaram um filme bélico que agrava a sensação de insegurança das elites europeias e providencia mais uma justificação – esfarrapada, como sempre – para que os “líderes” europeus baixem a cabeça e aceitem, como se viu, com a excepção da Espanha, o investimento de 5% do PIB em armamento. Considerando que a EU não tem capacidade para produzir tal quantidade de armas, já se está a ver onde as vai comprar.

Trump ainda retira daqui outras vitórias pessoais importantes:

  • Demonstra que os “líderes” europeus não passam de meros executivos ao serviço do Tio Sam e que, como qualquer CEO, a sua arte esgota-se na capacidade de serem bem-mandados; 2. Ultrapassa as barreiras morais de Biden e assume como política de estado que a NATO não passa de um supermercado de venda de armas à Europa;
  • Demonstra que o trumpismo não é mais danoso para a sociedade americana, do que o é o radical centrismo das “lideranças” europeias, capazes de tirar da saúde, educação, habitação e justiça dos povos que dizem representar, os recursos que depois entregam a Trump;
  • O caminho que o radical centrismo prossegue conduzirá à vitória do trumpismo na Europa, uma vez que este não deixará de usar as contradições levantadas por governos que prometem uma coisa e entregam outra;
  • Trump apresenta-se como o plenipotenciário da política norte-americana, uma espécie de líder faraónico, messiânico e de origem divina.

É claro que não são só vitórias que Trump retira, mas diria que, face às suas necessidades pessoais e de política externa, perante a ameaça de desagregação da sua base de apoio, Trump sai bastante bem do risco que enfrentou. Para já, pelo menos!

Não podemos argumentar que a destruição as instituições multilaterais do século XX são uma derrota de Trump, porque Trump não as respeita nem parece contar com elas. Enquanto pilares do soft power de outrora e tentáculos de uma visão globalista, Trump considera-as ultrapassadas. A visão de Trump é a da força bruta como factor de convencimento negocial, um pouco à imagem da tortura: não aceitas? Ficas sem um dedo! E Trump, na sua perspectiva, cortou uma mão ao Irão. A destruição da arquitectura multilateral proposta e construída pelos EUA, a seguir à segunda guerra mundial, é uma derrota para os EUA no longo prazo, mas para Trump, considerando a sua estratégia para os EUA, o valor desta estrutura é desprezível. A meu ver, arrepender-se-á disso mais tarde. E descobrirá que para as vítimas as mãos não são tão importantes como para os agressores. Lutando por causas, luta-se com tudo! Nem os EUA, nem Israel, viciados em conforto e luxo, adversários fragilizados pelos próprios e guerras limitadas, terão vida fácil num conflito aberto com um povo consciente e unido como o iraniano.

Para Trump, qual imperador faraónico, que anulou o congresso e a estrutura de poder representativo dos EUA (mais uma vitória pessoal), reforçando, como Biden já o havia feito, que a democracia que ainda existia está morta e enterrada (veja-se o que disse Bruce Springsteen sobre o assunto), o poder é transaccionável e impõe-se através de uma relação e forças que é construída com cartas de trunfo. Para o globalismo, as cartas de trunfo só eram jogadas quando o bluff da democracia e dos direitos humanos não funcionava. Trump dispensa isto tudo. Tem pressa e precisa de resultados rápidos com que possa convencer a sua base, se possível alargá-la e, quem sabe, através de muita volta e reviravolta, conseguir um terceiro mandato. Como? Veremos.

Mas não se pense é que tudo acabou por aqui, pois tal seria um erro, num conflito que ganhou o seu mais forte contendor em 1979, com o nascimento da República Islâmica do Irão, que desde logo proclamou pretender o fim da ocupação israelita, presumir que seria o próprio Trump a definir os trâmites sob os quais tudo se desenvolve. Trump e os EUA iniciaram um processo que, sabendo o Irão jogar bem as suas cartas, é a nação persa que terá a última palavra sobre onde acaba o conflito.

Também não podemos colocar de parte que Trump possa ter percebido nisto tudo a ideia de que o ataque ao Irão constituiu uma armadilha montada para tramar e envolver directamente os EUA. Mesmo sabendo disto, arriscou e deixou Israel obrigar o grande irmão a entrar num conflito mortal, para o defender. Quer tenha participado de forma convicta ou forçada, Trump pode, para já contentar-se com o resultado, mas o incontrolável futuro não deixará de o assaltar mais tarde.

Israel, o mais derrotado, foi mais longe e declarou atingidos todos os objectivos

Para Netanyahu não houve dúvidas: o Iron Dome não deixou passar nada e todos os objectivos foram atingidos! Entrementes, censurou a comunicação social, as redes sociais e aplicou regras draconianas a quem divulgasse os danos provocados pelos mísseis iranianos que nunca passaram o Iron Dome.

É verdade que Israel sofreu danos que nunca havia sofrido, também é verdade que, por muito pequeno e concentrado que seja o território, o Irão apenas atacou locais de interesse estratégico e militar, sendo que, também como o Irão, Israel tem mais infra-estruturas por debaixo, do que por cima. E essas, não parece que tenham sido afectadas. Por muito que tenhamos vistos os israelitas assustados como nunca, a verdade também é que, na sua potência, o ataque do Irão não foi brutalmente desumano, como sucedeu com o israelita. Os israelitas ainda não experimentaram, verdadeiramente, o que é ver os seus alvos civis serem transformados em militares, porque lá se encontram reservistas, como faz Israel. Num conflito desenfreado, o Irão não deixará de entrar nessa escalada e, aí sim, não haverá nenhum Netanyahu que o possa esconder.

Para os fanáticos, a condescendência humana inimiga é interpretada como fraqueza. Em Promessa verdadeira 1 e 2, o Irão limitou os ataques a meras demonstrações. Tal como a Rússia havia feito na Ucrânia com a sua operação militar especial, poupando civis quando possível e infra-estruturas básicas. Para neonazis e sionistas estes comportamentos são interpretados como vindo de gente fraca ou de gente sem recursos. O regime neonazi de Kiev já percebeu que estava errado, parece-me, no entanto, que Netanyahu ainda não o entendeu.

No caso israelita também temos de distinguir os objectivos pessoais de Netanyahu, dos do posto avançado sionista. Israel, o território, só perdeu com este ataque ao Irão. Daqui saiu um povo com sensação de insegurança e paranóia persecutória que continuará a jogar-se em cima das crianças, idosos e mulheres Palestinas, agora que já uma patente militar veio reconhecer que o ritmo de aniquilação do Hamas não está a dar os frutos desejados. Mas Netanyahu ganhou tempo, principalmente quando foi citado para comparecer no julgamento a decorrer no Supremo Tribunal. A situação de emergência poderá ser invocada para se manter no poder.

Considerando as palavras de Netanyahu e seus apaniguados, Israel conseguiu: 1. Atrasar – ou aniquilar – de forma inequívoca o programa nuclear iraniano; 2. Atrasar o desenvolvimento industrial iraniano, logo agora que a linha ferroviária que liga a China a Teerão já se encontra em funcionamento; 3. Conseguiu arrastar o grande irmão – os EUA – para um conflito regional de proporções imprevisíveis, garantindo que será Trump a seguir o seu aventureirismo e não o contrário; 4. Israel consegue praticar um genocídio, em que Harvard já fala em 377.000 pessoas desaparecidas em Gaza, e receber apoio incondicional da Europa, ao mesmo tempo, retirando daí a conclusão que tem, da parte da EU, tapete vermelho para continuar.

Claro que esta sensação de “vitória” não pode ser nem total, nem verdadeira. A mudança de regime tentada não aconteceu, bem pelo contrário, mas sobre isso, Netanyahu nada diz, o que não pode ser interpretado como uma desistência. Também não ficou provado que a força aérea israelita tenha tido caminho tão livre como diz: o blogger “Simplicius The Thinker”, que faz algumas das melhores apreciações militares que conheço, diz que só existe um vídeo com um avião israelita a sobrevoar o Irão, numa cidade periférica e fornecido pelos próprios israelitas. Sabemos também que muitos dos ataques que Israel diz ter praticado com drones, foram praticados a partir de dentro. Esta situação não deixa de demonstrar o que já se sabe: que a MOSSAD tem uma capacidade brutal de inserção social, o que não constitui uma vitória, neste caso. O Irão aproveitou a deixa para limpar o país de colaboracionistas e traidores.

Não obstante o sabermos das ineficiências do Iron Dome e do sistema Arrow, do receio de ficar sem interceptores, a verdade é que ainda existem alguns objectivos que Netanyahu e os eu aparato adicionam à sua lista. Para quem quer uma mudança de regime, atrasar o desenvolvimento iraniano significa ganhar tempo para capitalizar as contradições sociais que se produzem nas sociedades estagnadas e incapazes de responderem às necessidades dos respectivos povos. Uma vez que o programa nuclear iraniano significa energia barata e limpa, o seu atraso, não deixará de trazer dificuldades ao crescimento económico do Irão, dificuldades essas que Israel – e EUA – não deixará de capitalizar em seu favor. Veremos o quão afectado ficou o programa e quanto tempo demorará a recompor e, o que acontecerá quando o for.

Como se constata, as supostas “vitórias” israelitas são condicionais, efémeras e meramente temporárias. Nenhuma é realmente definitiva e nenhuma representa algo de novo, para além do que já sabíamos existir: capacidade da MOSSAD; aventureirismo e fanatismo suicida de Netanyahu; pretensão de Netanyahu em se manter no poder; protecção conferida pelos EUA.

No entanto, não nos esqueçamos: muitas vezes os objectivos declarados não correspondem aos objectivos assumidos. Será que Netanyahu contava com a efectiva destruição do programa nuclear e de mísseis do Irão e a mudança de regime, ou estava mais preocupado em arrastar os EUA para o confronto? À luz do primeiro, não pode cantar vitória, mas… E do segundo? Conseguiu, ou não, o que queria? Alguém duvida que Netanyahu esteja convencido de uma vitória sobre o Irão, tendo os EUA ao seu lado?

Isto significa que temos de ler todas as direcções, declaradas e visíveis, como as invisíveis e nunca declaradas, de um conflito. O que não se pode confessar, pode constituir uma vitória mais importante do que o declarado. E se existe alguém torpe, cínico e obstinado – igualmente messiânico -, esse alguém é Netanyahu. Se todos sabemos que foi o próprio quem esteve por detrás da destruição e vários estados, manipulação de outros e aniquilação de milhões de seres humanos, como duvidar da sua eficácia e da sua capacidade para prosseguir objectivos?

O equilíbrio, nestas coisas, é fundamental. O exemplo Sírio deve ficar-nos a todos bem presente. Um dia Israel estava cercado e depois já não estava!

O Irão declara-se vitorioso por sobreviver

Já o Irão ganha porque sobreviveu ao ataque de dois exércitos brutais e poderosos. Diria mesmo, os mais poderosos e assassinos da história humana. As vítimas ganham quando sobrevivem a ataques que as visam aniquilar. Quem falha em fazê-lo é derrotado!

O Irão logrou impor danos que nunca antes tinham sido impostos a Israel e assim criar a dúvida na sociedade israelita face à estratégia de Netanyahu. Para já, o Irão vai resistindo, apesar das perdas maiores. Mas, um país que é centenas de vezes maior que Israel, tem muito maior capacidade de absorção do dano. Acresce que a sociedade iraniana está endurecida por décadas de agressão ocidental, o que não deixa de produzir níveis de resiliência e consciência superiores.

Os níveis de consciência do povo iraniano são também o que permite à sua liderança cantar vitória. Se o inimigo queria desacreditar o regime, fez o contrário. Os exemplos de Iraque, Líbia, Síria e Ucrânia estão bem vívidos na memória de cada um e, em especial dos Iranianos, que vivem ao lado do Iraque, país de maioria xiita, como o Irão, e que, uma vez alvo de mudança de regime por acção externa, nunca mais se endireitou.

A verdade é que as franjas da população iraniana que não se revêem no regime demo-teocrático de Al-Khamenei, todos, exceptuando os corrompidos pela MOSSAD e CIA, sobrepesaram as suas diferenças e chegaram à consideração de duas coisas muito importantes:

  • Entre o deve e o haver, é melhor o que está, do que o que os EUA e Israel têm para oferecer;
  • Mesmo considerando todas as contradições, o regime actual tem a credibilidade de pelo menos, conseguir defender a existência, integridade e soberania da nação iraniana.

Sem esta última hipótese nunca será possível o desenvolvimento que anseiam. A prova-lo estão os que caíram no logro e agora têm de viver em países destruídos, cuja alma social, nacional e colectiva foram destruídas em prol da existência e “segurança” de Israel. Aos EUA e a Israel faltam exemplos na região, de que vale a pena trabalhar com eles e deixá-los tomar o poder. Todos os que o fizeram, arrependeram-se profundamente. Essa é também uma vitória do Irão, uma vitória da sua resistência. A “segurança” de Israel alimenta-se da podridão alheia. Ao não cair no logro montado pelo ocidente, podemos dizer que o Irão ganhou futuro. Um futuro conturbado e desafiante, mas é um futuro. Algo que não assiste aos restantes, a Ucrânia que o diga.

Mas o Irão, para além desta coesão nacional, ainda ganha outras coisas:

  • Ganhou o apoio e simpatia generalizada do sul global;
  • O sentimento e coesão nacional ficam reforçados;
  • Tem a garantia e todo o mundo o ficou a conhecer, de que conta com apoios pesados de China e Rússia;
  • Consegue fazer frente a Israel e, para já, sobreviver;
  • Consegue amedrontar Trump ao ponto de este parecer temer mais os danos económicos decorrentes do encerramento do estreito de Ormuz, do que a continuidade dos negócios entre o Irão e a China;
  • Consegue manter o seu programa nuclear e de mísseis;
  • Consegue passar de uma certa imagem de agressor, para uma imagem de vítima de agressão.

Torna-se hoje muito mais complicado ao ocidente apresentar o Irão como esse papão que tudo invade e mata, uma vez que Israel foi quem o agrediu e de forma não provocada. Por fim, o Irão consegue manter-se ligado aos seus parceiros estratégicos, sem ter caído no que pretendia Israel: usar este conflito para obrigar o mundo a isolar o Irão, outra vez.

Agora, isto não quer dizer que o Irão não tenha perdido algo com este conflito. O Irão perde algumas das suas melhores lideranças. Mas, por outro lado, ao longo dos dias de conflito, falou-se muito do Irão e em parte, esse facto foi usado para construir consciência sobre o que é realmente o país, abrindo portas a uma nova e reforçada imagem projectada para o mundo. Mas nunca nos esqueçamos que as vitórias das vítimas são sempre mais danosas para elas, do que as derrotas o são para os seus agressores. Nunca nos esqueçamos que são as vítimas que pagam sempre o maior preço. Simplesmente porque são mais pobres.

Esse sacrifício maior ainda pode estar para chegar. Mas chegando, Israel e EUA ficam com pelo menos uma certeza, guerrear com o Irão não vai ser uma passeata na Síria ou um tiro ao alvo em Gaza.

O Irão ganha ainda o poder da decisão. A meu ver cabe ao Irão dizer quando a guerra acabou, ou não. Quando o supremo líder Ali Khamenei diz que “nunca nos renderemos”, está a anunciar ao mundo que serão eles, e não os inimigos, a dizer quando tudo acabará. Acresce que, o Irão tem também um trunfo, penoso, mas decisivo, que consiste no facto de a sua melhor hipótese de ganhar uma guerra com estes contendores e, através dela determinar o fim de Israel e a queda o império estado-unidense, reside na capacidade que tenha para atrair os EUA a uma invasão terrestre, que alienaria a base MAGA, exauriria os cofres imperiais e acabaria, com um Irão extenuado, mas vitorioso. O Irão contaria, nesse caso com forças poderosas como o fecho do estreito de Ormuz, o bloqueio Chinês e talvez Russo à venda de minerais críticos ao ocidente, à instabilização dos mercados energéticos, de bens de consumo, componentes e matérias primas. Ao invés, a Rússia ficaria a vender petróleo a 300$ o barril, que todos quereriam comprar.

Vamos ver por quanto tempo se evita este cenário, mas parece-me que Israel está inclinado para se dirigir para algo como isto, por muito que EUA e Trump o temam. Este temor é um trunfo para o Irão. Num conflito desses, uma vez mais se provará a que a doutrina militar dos EUA não funcionará, como não funcionou no Iémen ou no Afeganistão, como não funciona a de Israel em Gaza, apesar da chacina de milhares de seres humanos.

E a derrota? Houve alguma derrota?

Neste processo todo houve um derrotado anunciado, uma vez que os restantes vitoriosos o são em suspenso, trata-se da União Europeia! Não apenas a União Europeia assistiu à destruição das estruturas multilaterais que dão importância aos principais países que a compõem – França e Inglaterra fazem parte do Conselho de Segurança da ONU, o que não corresponde minimamente à sua importância actual -, como se mostrou incapaz do mínimo pensamento independente, colectivo, coordenado e estrategicamente relevante.

A União Europeia seria a principal prejudicada com o encerramento do estreito de Ormuz. Ao invés de apaziguar, conter a escalada, proteger a ordem internacional e usar uma carta poderosa que tem em seu poder, que é o tratado de associação com Israel, o que fizeram os líderes europeus? Uma vez mais foram incapazes de proteger os países europeus, os povos europeus, a ordem internacional que fez a europa prosperar e reconstruir-se após a segunda guerra.

Mas não foi só. A antagonização do Irão, o fim do JCPOA em Trump 1.0, afectou muito os negócios que os países europeus tinham com o Irão, nomeadamente numa área em que a União Europeia é extremamente carente: o petróleo e o gás. Uma vez mais, a EU que já deu orientações no sentido de continuar a permitir veículos de combustão interna até 2040, que pretende montar uma indústria de armamento, tecnologicamente atrasada, com baixo valor acrescentado e com perfil de consumo energético brutal, voltou a alienar a possibilidade de concorrer com a China na compra do petróleo e gás iraniano, sempre mais barato do que o americano.

Acresce que a EU, que não consegue unir-se relativamente ao genocídio que Israel opera na Palestina, assistiu a gente como Merz, Rutte ou Kallas, com as suas declarações infantis e irresponsáveis, estourarem com a réstia de credibilidade que ainda alguém muito cego lhes poderia atribuir. Tudo o que acusam a Federação Russa e Putin de fazer, aceitam de bom grado a Netanyahu e em proporções absolutamente desconcertantes. Netanyahu atacou 5 países num ano: Palestina; Líbano, Síria, Iémen e Irão! E o que dizem tais figuras? É para continuar!

O descalabro maior ainda estaria para vir quando, vendo Trump aproveitar todo este circo para impor 5% de compras à NATO, com excepção da Espanha, todos embrulharam a encomenda e aceitaram os 5%, que agora dizem ser 3,5%, mas que sabemos serem mesmo 5%, porquanto os 1,5% serem de despesas indirectas em infra-estruturas e coisas do género, mas importantes para a estratégia de defesa.

Esta EU faz tudo isto e quer convencer-nos a todos de que se vai armar e que uma vez armada até aos dentes ganhará capacidade para se defender, quando tudo o que fez até hoje demonstra apenas e só uma certeza: quando na posse de tais armas, a EU usará as mesmas para se aniquilar a si própria!

Os “líderes” da EU comportam-se como aqueles indivíduos muito fracos a quem de repente dão uma arma. Confundem a afronta que Putin lhes fez, o caracter vincado de Xi e a arrogância de Trump, como sendo algo relacionado com o armamento que dispõem… nada mais errado! O caracter não se constrói em fábricas metalomecânicas. Um incapaz armado, será apenas um incapaz perigoso! No caso da EU, muito perigoso mesmo! E não o podendo ser para outros, por falta de coragem ou incapacidade, será para dentro que se virará e acabará a punir as Hungrias, Espanhas ou Eslováquias da vida, porque têm a coragem de a contradizer.

Dizer que a Turquia se reservou a este comportamento seria redundante. Neste processo, que tanto interessaria à Turquia, o Sr. Erdogan comportou-se também como um moço de recados! Mais envergonhado, é certo, mas um mero garçonete de Trump.

A ver vamos as cenas dos próximos capítulos, mas a guerra ainda está a começar e já tem um derrotado. O mesmo de sempre!

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