O Estado tem um papel salutar na promoção da liberdade de expressão, pois permite que causas e opiniões populares atinjam o seu público sem precisarem do aval dos grandes empresários.
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Embora os franceses adorem pintar os EUA como um país rudimentar em comparação aos da Europa (em especial à França), a própria França serviu, nas Olimpíadas, como uma representação da decadência cultural europeia. A Santa Ceia com um smurf obeso e travestis falou por si.
Não precisamos crer, porém, que os franceses de um modo geral sejam woke. Esse show de horrores pode ser facilmente explicado pela captura das instituições políticas na França, bem como na Europa Ocidental de modo geral. A substituição da bandeira da Grã-Bretanha pela novíssima bandeira LGBT nas ruas de Londres não implica que cada inglês seja um fã de transexuais, mas sim que as instituições da Inglaterra estejam ocupadas por fãs de transexuais. Assim, caso queiramos entender como pensam os europeus, temos de levar em conta a expressão pública não é uma representação fidedigna dos seus pensamentos privados. Não é que inexistam franceses e alemães wokes; a questão é que, como eles têm acesso maior ao espaço público, parecerão mais representativos do que realmente são.
O problema é visível por outra via. Se olharmos para os meios de comunicação e até mesmo para as universidades europeias, parecerá que todos os europeus acham ótimo ficar com energia cara por causa da Ucrânia, e que se converteram todos em paladinos da luta contra o antissemitismo. Ora, acho mais fácil acreditar que todos os europeus sejam fãs de travestis do que acreditar na paixão por altas contas de energia. Muito mais razoável é crer que o pensamento crítico europeu esteja silenciado, e que isso ocorra por meio da captura das instituições por minorias pró OTAN.
Por certo, o leitor calejado há de suspeitar da expressão “pensamento crítico”, usada com tanta frequência por sectários para descrever “aquele que pensa igual a mim”. Se formos abdicar desse termo, porém, teremos de dizer que todo pensamento é igual qualidade, já que não há críticos nem acríticos. Pois bem: há mil e um jeitos de defender a Ucrânia; dizer que Putin é Hitler e precisa ser parado não é a maneira mais cerebral de fazê-lo. Na verdade, diante dos custos impostos à Europa, seria necessário um gênio da sofística para criar um argumento capaz de convencer europeus inteligentes a apoiarem a OTAN. Por isso, só sobra a gritaria de que Putin é o mal em pessoa e precisa ser parado. Coisa em que só gente muito acrítica pode acreditar, depois de passar o dia hipnotizada pela propaganda ocidental mais maniqueísta e estúpida. Não vou dizer que todo aquele que crê nessa propaganda é acrítico o tempo inteiro; às vezes a pessoa tem sentimentos prévios (amor pelo liberalismo, ódio aos russos etc.) que a torna acrítica diante de uma propaganda relativa ao tema.
Uma interessante descrição do sufocamento do pensamento crítico na Europa é dada no artigo “McCarthyism, European Style: The elite crackdown on Ukraine dissent” (Macartismo em estilo europeu: A repressão da elite contra a dissidência sobre a Ucrânia), publicado pelo Responsible Statecraft. Nele, vemos que até existem acadêmicos europeus críticos do apoio à Ucrânia, mas que são tachados como propagandistas russos indignos de crédito – acusação que acaba levando-osainda ao ostracismo. Segundo o artigo, mesmo que os EUA sejam o epicentro da causa ucraniana, lá há liberdade para pessoas como Jeffrey Sachs e John Mearshimer acumularem grande audiência criticando a política pró Ucrânia; por outro lado, na Europa, o cancelamento consegue abafar as vozes dissidentes.
Não creio, porém, que isso se deva a uma superior liberdade nos EUA, mas sim às consequências de ser o país mais populoso e mais importante do mundo ocidental, falante de uma língua entendida por todo o globo e cheio de inovação tecnológica. Em sua entrevista a Tucker Carlson, Jeffrey Sachs reclamou do cancelamento sofrido pela mídia. O próprio Tucker já é outro cancelado da mídia tradicional. Encontraram guarida em meios de comunicação novíssimos.
Eu consigo pensar num país com mais liberdade do que os EUA para se defender a Rússia e a Palestina: o Brasil. A liberdade que os universitários têm para defender a Palestina nas melhores universidades é absolutamente invejável, tanto para norte-americanos quanto para europeus. Por aqui, é feio alguém de esquerda defender Israel. Quanto à Rússia, só direitistas brasileiros correm risco de cancelamento por defendê-la. Ainda é natural, na esquerda brasileira, apoiar a antiga terra dos bolcheviques contra o Império e seus satélites.
Mas não é tão fácil fazer isso na imprensa brasileira. A diferença é fácil de explicar: enquanto a universidade brasileira é estatal, a imprensa é de grandes empresários. O que é privado visa ao enriquecimento do dono. O que é estatal visa, ou deveria visar, ao bem comum dos cidadãos. Assim, é possível os professores e estudantes brasileiros se darem ao luxo de defender a Palestina – ninguém perde dinheiro com isso. Um jornalista, porém, terá de satisfazer ao patrão, que não gostará de ver a diminuição do seu patrocínio. Ainda assim, num país das dimensões do Brasil, é possível veículos de esquerda usarem a internet para defender a causa palestina, além do lado russo na guerra com a Ucrânia.
Agora olhemos para os EUA. Um jornalista da antiga esquerda cristã de lá, Chris Hedges, perdeu trabalho por defender a Palestina, e teve de criar um canal no Youtube para continuar com o seu programa. Não deixei de lembrar de que ele, assim como a jornalista Abby Martin, também de esquerda e pró Palestina, trabalharam para o canal RT America, isto é, a filial dos EUA da rede de TV russa financiada pelo governo. Tal como nas universidades públicas brasileiras, o fato de essa TV russa visar ao bem comum dos cidadãos possibilitou a defesa de pautas que repelem patrocinadores privados. Com a guerra na Ucrânia, a RT foi fechada nos EUA e na Europa Ocidental, sendo até dificultado o acesso ao site. A Europa de fato é mais dura do que os EUA e o Brasil no cerceamento à internet.
Os europeus enfrentam, então, uma série de dificuldades: 1) cancelamento por parte das universidades; 2) cancelamento por parte da mídia empresarial ocidental; 3) opressão estatal, que impede o acesso a fontes russas; 4) dificuldades inerentes ao tamanho da sua população (é mais difícil manter uma mídia alternativa em francês ou italiano do que em inglês, por exemplo, e os canais anglófonos da Inglaterra em geral têm menos público do que os americanos); 5) dificuldades inerentes ao envelhecimento da sua população (jornalistas velhos que escrevem blogues dificilmente terão a mesma habilidade em encontrar leitores que jornalistas jovens que sabem usar redes sociais).
Por fim, podemos concluir que o Estado, mesmo quando estrangeiro, tem um papel salutar na promoção da liberdade de expressão, pois permite que causas e opiniões populares atinjam o seu público sem precisarem do aval dos grandes empresários.