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Uma nova onda de “terrorismo” tem se abatido sobre o Oriente Médio desde o final do ano passado, desde que “os terroristas do Hamas” cometeram “graves atrocidades” contra “civis inocentes” em Israel, no dia 7 de outubro de 2023.
É esse tipo de discurso que tem permeado os principais noticiários brasileiros e internacionais nos últimos 14 meses. Somente no primeiro mês de “guerra” entre os “terroristas do Hamas” (termo que é repetido exaustivamente pelos âncoras e repórteres da Rede Globo, por exemplo) e o exército de Israel, no Jornal Nacional foram difundidas precisamente 258 acusações de terrorismo contra o Hamas. Os âncoras e repórteres do telejornal, sozinhos, foram responsáveis por 160 dessas acusações – uma média de praticamente sete acusações de terrorismo por edição.
Nenhum representante da Rede Globo, contudo, explicou por que considera o Hamas um grupo terrorista, se nem a ONU nem o governo brasileiro o fazem. A Record, por sua vez, chama de terrorista também o Hezbollah – que tampouco é considerado como tal pela ONU e pelo Brasil.
A guerra santa da imprensa brasileira contra o “terrorismo”, contudo, é rigorosamente seletiva. Na semana passada, uma coalizão de grupos armados liderados pelo Hayat Tahrir al Sham (HTS) iniciou uma ofensiva surpreendente no norte da Síria, após anos de relativa calma no país, vítima de uma guerra civil iniciada em 2011.
O HTS é um grupo considerado terrorista pelo Conselho de Segurança das Nações Unidas. Logo após a sua fundação, em 2017, a organização passou a praticar uma série de atos que se enquadrar na categoria amplamente consensuada como terrorismo. Em março daquele ano, Tahrir al Sham executou dois ataques a bomba em um santuário na cidade velha de Damasco, matando 76 pessoas, incluindo 43 peregrinos iraquianos.
Contudo, o termo “terrorismo” não está sendo utilizado pela imprensa brasileira para designar o Hayat Tahrir al Sham e sua coalizão. No Jornal Hoje de 30 de novembro, a âncora Zileide Silva noticiava que “rebeldes” haviam entrado na cidade de Aleppo. O GC descrevia a mesma coisa, chamando os grupos de “rebeldes”. Ela ainda contextualizou a situação de forma resumida, explicando que há anos vigorava um cessar-fogo entre “forças rebeldes” e o governo sírio. Em seguida, o correspondente em Londres, Murilo Salviano, se referiu à “aliança rebelde”, formada por “grupos jihadistas de oposição”. A contradição no discurso fica evidente quando o repórter assinala que os “rebeldes (…) explodiram dois carros-bomba” e que, em anos anteriores, os mesmos “rebeldes chegaram a estabelecer um califado” sob a liderança do Estado Islâmico – o mais temido e chocante dos grupos terroristas dos tempos recentes. Nos 2 minutos e 47 segundos do noticiário dedicado ao assunto, o termo “rebelde” foi utilizado sete vezes e o termo “terrorismo” ou “terrorista” não foi utilizado nenhuma vez.
Na noite do mesmo dia (30 de novembro), a apresentadora Ana Luíza Guimarães iniciava a pauta no Jornal Nacional: “rebeldes tomaram o controle da segunda maior cidade da Síria.” E continuava: “essa é a maior ofensiva contra o ditador Bashar al-Assad em oito anos.” A nota coberta de 38 segundos não faz qualquer referência ao terrorismo.
Também em nota coberta durante o noticiário Agora CNN de 1° de dezembro, o GC imprimia “Síria: rebeldes tomam controle da maior parte de Aleppo”. O âncora Gustavo Uribe falava apenas de “ataques rebeldes” ou de “insurgentes”, enquanto também se referia ao regime sírio como uma “ditadura”.
Um artigo de Igor Gielow, publicado em 2 de dezembro na Folha de S.Paulo, pretende explicar “o que está acontecendo na guerra civil da Síria”. A linha fina reza que o “conflito em Israel abriu janela para rebeldes”. O texto começa assim: “A surpreendente tomada de Aleppo por rebeldes contrários à ditadura de Bashar al Assad na Síria recolocou a guerra civil no país árabe no topo do noticiário internacional.” O que é seguido pelo segundo parágrafo, que assim inicia: “O ataque terrorista do Hamas palestino contra Israel em 2023 abriu uma caixa de Pandora regional.”
Gielow ainda se refere à coalizão do Hayat Tahrir al Sham como “forças de oposição a Assad”. Embora reconheça que o HTS tem origem “na rede terrorista Al Qaeda” e que seu líder, Abu Mohamed al-Joulani, “é um terrorista conhecido por crueldade”, ele ameniza o caráter da “oposição” armada, caracterizando-a como uma “colcha de retalhos”, com “atores que vendem moderação”. Em nenhum momento é lembrado que o HTS é considerado pelas Nações Unidas como um grupo terrorista, e nem essa concepção é utilizada para caracterizá-lo.
Por sua vez, um despacho da Associated Press editado e publicado no dia 29 de novembro pelo jornal O Estado de S.Paulo utilizou o termo “rebelde” incríveis 15 vezes. Nem mesmo quando se referiu ao HTS ou ao próprio Estado Islâmico a publicação se referiu ao terrorismo, preferindo rotular os seus membros de “militantes” ou de “insurgentes”, além, como dito, de “rebeldes”.
Já o colunista Guga Chacra, do Globo, publicou dois artigos sobre o tema. Em 29 de novembro, um sob o título “Jihadistas avançam contra regime de Assad em Aleppo”, no qual a al-Qaeda e o Estado Islâmico são tachados mais de uma vez de “jihadistas”, não de terroristas. A expressão, aliás, é utilizada apenas uma vez no artigo, para especificar os tipos de ações que são executadas pelo HTS, que, apesar disso, é caracterizado, em si, como um grupo jihadista de oposição. Tais opositores, que são considerados terroristas pelas Nações Unidas, não passam de “facções armadas” ou “grupos anti-Assad” para Chacra. O presidente sírio, por outro lado, parece ser um mal muito mais nocivo pelo jornalista, que o descreve como o líder de uma “ditadura acusada de crimes contra a humanidade”.
No dia 1° de dezembro, o correspondente em Nova Iorque escreveu o artigo “Quais os cenários para a Guerra da Síria?”. Não há nenhuma referência ao terrorismo do Hayat Tahrir al Sham. Pelo contrário, ele é chamado de “grupo jihadista da oposição, com origem na Al Qaeda” – mas esta também não é lembrada como uma organização terrorista (a mais famosa do mundo durante mais de duas décadas). Curiosamente, Chacra faz referência a uma “organização terrorista”, mas ao PKK – e apenas à sua matriz na Turquia, não ao seu braço sírio. “Jihadista” é o termo preferido de Chacra para se referiu aos que, em outro contexto, possivelmente seriam chamados de terroristas. Ele os utilizou 15 vezes em suas duas colunas.
O governo de Bashar al-Assad é considerado pelos Estados Unidos como um inimigo. Atualmente, a pretexto de combater o Estado Islâmico (que foi expulso da Síria em 2019), tropas americanas ocupam uma parte do território sírio, tendo estabelecido bases militares e roubado petróleo – sem autorização do governo sírio ou da ONU. Além disso, os EUA utilizam sua presença ilegal na Síria para financiar, treinar e armas grupos “rebeldes” contra o regime.
Esse é o motivo pelo qual os jornais e TVs brasileiros (seguindo suas matrizes estadunidenses) adotam, uma vez mais, um padrão duplo no noticiário internacional. Como os palestinos estão lutando, em última análise, contra o domínio dos Estados Unidos na região, eles são retratados como terroristas. Por outro lado, uma vez que grupos que, pelos critérios da imprensa sobre o que seria terrorismo, também deveriam ser considerados terroristas estão lutando contra um governo inimigo dos EUA, eles não são considerados terroristas. Foi assim com o Talibã: enquanto recebia dinheiro, armas e treinamento do Pentágono para lutar contra os soviéticos, seus membros eram “combatentes da liberdade”. Depois que se voltaram contra os EUA, tornaram-se “terroristas”.
Em tempo: a ofensiva liderada pelo Hayat Tahrir al Sham contra Bashar al Assad começou no mesmo dia em que entrou em vigor o cessar-fogo entre Hezbollah e Israel. Será coincidência?