Se o ateísmo faz indivíduos mais morais do que os seus pares religiosos, deve-se perguntar pela qualidade moral da religião abandonada.
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No meu local de trabalho anterior, um jornal de direita, escrevi um artigo que, desde o título, aludia a um judeu petista que estava sofrendo processos por causa do seu antissionismo. Eu achava que o título seria provocador porque a oposição, pegando a carona do lobby sionista, tentava colar no PT a imagem de antissemita. Para minha surpresa, porém, na caixa de comentários havia uma porção de leitores indignados com a mera possibilidade de que um judeu fosse petista. Consideravam uma ofensa aos judeus afirmar que um deles fosse petista – não obstante o líder do governo no Senado fosse um judeu petista, e ainda por cima sionista (Jaques Wagner).
Notei, então, que muita água rolou desde os Protocolos dos Sábios do Sião: se antes a direita achava que todo judeu era um bolchevique, agora crê que todo judeu é de direita – e de uma americanizada mainstream que inclui religiosidade.
Se ambas as crenças são falsas, a anterior pelo menos tinha algum lastro na realidade. Na história do comunismo há muitos judeus importantes, a começar pelo próprio Karl Marx. A história da Revolução Russa e a composição dos quadros comunistas europeus do século XX fazem com que seja possível surgir, de maneira espontânea e em várias partes do globo, a crença falsa de que os judeus e os comunistas são as mesmas pessoas.
O caso do judeu de direita é bem diferente. Ocidente afora, a coisa mais difícil é ver um judeu que anda de solidéu, ou seja, um judeu religioso. E se o estereótipo de judeu comunista caiu junto com a Cortina de Ferro, o do estereótipo do judeu esquerdista ainda está de pé. Se olharmos para as lideranças de esquerda nos EUA à procura de judeus, encontramos fácil Bernie Sanders, o líder radical do Partido Democrata. Como candidata independente, concorreu a judia antissionista Jill Stein. Um democrata cotado para ser vice de Kamala era Josh Shapiro, judeu, governador da decisiva Pensilvânia. Se formos procurar por políticos judeus de direita, a mim não ocorre nenhum. O genro judeu de Trump é empresário. No âmbito intelectual, há os pensadores neoconservadores, que no entanto confirmam o estereótipo por serem notórios ex-trotskistas. E há, por fim, a estrela do conservadorismo Ben Shapiro, que corresponde fielmente ao novo estereótipo: anda de solidéu, alardeia que respeita o shabat, é conservador “nos costumes”, sionista ferrenho, liberal na economia, defende a “civilização judaico-cristã ocidental”. Daí eu suponho que os direitistas, expostos a muita mídia dos EUA, ou americanófila, achem que todo judeu é Ben Shapiro. Porque qualquer pessoa que tenha contato com judeus reais não tem por que ter esse tipo de crença.
No caso do Brasil, onde há poucos judeus, é possível que essas pessoas não tenham contato com eles. Mas nos EUA, onde há muitos, e são politicamente bem ativos, é improvável que o direitista não tope com judeus seculares de esquerda – como Noam Chomsky, Glenn Greenwald, Bill Maher, Naomi Wolf, Norman Finkelstein… De todo modo, com a agitação pró-Palestina promovida pelos judeus antissionistas, o direitista inevitavelmente se defronta com a figura do judeu vermelho. E diante disso, terá uma singular resposta: “este não é um verdadeiro judeu!”. Essa resposta é errada, porque todo filho de um útero judaico é considerado judeu pela religião judaica. Nem com a “excomunhão” um judeu deixa de ser judeu; a “excomunhão” deles está mais para uma forte sanção social similar ao cancelamento.
De onde vem, então, a ideia de que um judeu esquerdista não é um verdadeiro judeu? Creio que Norman Finkelstein dê a resposta. Eis o que ele escreve em A indústria do Holocausto, p. 23: “A Solução Final era um tabu para as elites judaicas dos EUA por mais uma razão. Os judeus de esquerda, que se opunham ao alinhamento com a Alemanha contra a URSS na Guerra Fria, não paravam de falar disso. A lembrança do holocausto nazista era marcada como uma causa comunista. Presas ao estereótipo que fundia os judeus com a esquerda (de fato, os judeus compunham um terço dos votos do candidato presidencial progressista Henry Wallace em 1948), as elites judaicas dos EUA não deixaram de sacrificar judeus ao altar do anticomunismo. Oferecendo às agências do governo seus arquivos com supostos judeus subversivos, a AJC e a ADL colaboraram ativamente com a caça às bruxas da Era McCarthy. A AJC endossou a pena de morte dos Rosenbergs, e fez um editorial em sua revista mensal, a Commentary, dizendo que eles não eram judeus de verdade.” O casal norte-americano Julius e Ethel Rosenberg, judeus e comunistas, foi executado em 1953 por espionagem soviética. Ou seja, a ideia de que um judeu de esquerda não é um verdadeiro judeu (o exato oposto do senso comum da época) remonta pelo menos à década de 1950; e é, no seu provável início, uma reação das elites judaicas ao macartismo e ao próprio estereótipo do judeu comunista.
A coisa não parou por aí. Billy Graham, o mais famoso tele-evangelista a promover o sionismo cristão, chegou a defender que os judeus que não se atêm às tradições judaicas são a “sinagoga de satanás”. A teoria veio à luz em 2007 por vias tortas: apareceram fitas de conversas do presidente Nixon e, em 1973, Graham lhe dissera que os judeus mandam na imprensa e que se tratava da sinagoga de Satanás. Em 2007, seu porta-voz explica que, para Graham, essa expressão, retirada da Bíblia, se refere a judeus que não seguem as tradições. Se for invenção de quem foi pego no ato, caiu como uma luva, porque de fato os jornalistas judeus não são religiosos. E como na direita online tudo se copia, Olavo de Carvalho difundiu para os brasileiros a teoria de que os judeus comunistas são falsos judeus, portanto são a sinagoga de satanás. E mais: a culpa pelo holocausto era deles, dos judeus comunistas, que fizeram todos crerem que os judeus eram comunistas.
Assim, ao que parece, uma passagem bíblica, segundo a qual os falsos judeus são a sinagoga de Satanás, foi usada para defender que só os judeus iguais a Ben Shapiro prestam, ao passo que os judeus seculares, que em geral são esquerdistas, são a sinagoga de satanás. O problema é que, como Jesus e os apóstolos eram judeus que não respeitavam a tradição (tanto que fundaram uma religião nova), o próprio cristianismo teria de ser interpretado como um fruto da sinagoga de Satanás… Se a conclusão não é óbvia nos EUA, é porque lá há uma série de seitas calvinistas que julgam que o cristianismo é uma continuidade do judaísmo.
Essa fabricação é útil para os cristãos sionistas apoiarem o Estado de Israel. No entanto, uma parte relevante dos judeus que vivem nas sociedades ocidentais absorveu o seu universalismo (mesmo que em versão laicizada), e faz a oposição mais estridente ao Estado de Israel. Será que os evangélicos quererão queimá-los em fogueiras?
A História, de fato, pregou uma peça. Graças ao calvinismo, o cristianismo, uma religião universalista, tribalizou-se. Por outro lado, em locais do Ocidente onde o cristianismo feneceu, o seu universalismo cristalizou-se num ideal de direitos humanos que, embora seja fácil de desvirtuar, serve para nortear os judeus que recusam o tribalismo de sua cultura ancestral. E assim temos cristãos tribais que pregam a superioridade racial dos judeus, enquanto judeus universalistas e ateus exigem uma compaixão mundial pelos palestinos.
Agora, se o ateísmo faz indivíduos mais morais do que os seus pares religiosos (como Ben Shapiro e Itamar Ben Gvir), deve-se perguntar pela qualidade moral da religião abandonada.