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Dos tempos soviéticos até uns dez anos atrás, com a ascensão do wokismo, foi lugar comum na esquerda brasileira apontar as urdiduras da CIA. O tópico mais comum nesse assunto era a ingerência da CIA no Golpe de 1964. De fato, a CIA tinha ONGs de fachada que faziam propaganda em defesa da democracia (notoriamente o IPES e o IBAD), mesmo quando o Brasil estava numa democracia. Com auxílio da imprensa, pintou-se o cenário fantasioso segundo o qual o presidente, um trabalhista herdeiro de Vargas, estava na iminência de dar um golpe comunista. Aí justificou-se um golpe militar preventivo, para salvar a democracia do comunismo. O regime instaurado anunciou alinhamento com os EUA e manteve, sob eleições indiretas e limitação de liberdades partidárias, uma fachada de democracia. Tudo foi lavado pelo Congresso, e, se o clichê já existisse, alguém poderia dizer que “as instituições estão funcionando”.
A esquerda tinha uma verdadeira obsessão pela CIA, e não raro desprezava a dinâmica interna do Brasil para explicar qualquer coisa como pura ingerência da CIA. Com o wokismo, isso virou fumaça: agora os EUA de Biden (só os de Biden) são bons porque vão salvar a democracia. Na direita, há algo semelhante: os EUA de Trump (só os de Trump) são bons porque vão salvar o mundo do comunismo – não o da União Soviética, mas o da cabeça deles.
Como já contei aqui, ando encafifada com as ONGs em defesa da liberdade de expressão no Brasil. Há Mike Benz, ex-agente do Departamento de Estado; há Michael Shellenberger, um ongueiro à la Irmãos Koch; há o próprio Elon Musk, que selecionou os jornalistas dos Twitter Files e retuíta uma porção de tuiteiros de direita que chegaram à fama graças a ele. Um desses tuiteiros, Mario Nawfal, chegou a escrever em inglês um texto com o título: “A CIA estava envolvida no Golpe de 1964 e nas eleições brasileiras de 2022”. Mike Benz foi mais direto: “O engraçado é que tanto a junta militar no Brasil de 1964 e a junta judicial no Brasil de 2022 receberam apoio direto da CIA para chegar ao poder”. Tanto Nawfal quanto Benz mencionam a pressão da CIA; nenhum menciona a vinda de Victoria Nuland. Tudo é old news – até os Twitter Files Brazil, que passaram um ano na gaveta de Shellenberger. De uma hora pra outra, um clube de bilionários e ongueiros dos EUA resolve que vai denunciar a ingerência do seu governo no Brasil. Por que esse pessoal resolveu virar anti-imperialista?
A novidade prosperou, e agora, enquanto escrevo, foi noticiada uma iniciativa parlamentar nos EUA que visa a segurar as campanhas do NED e da USAID em defesa da “democracia”, argumentando que as organizações têm usado dólares públicos para financiar censura no exterior, contrariando a Primeira Emenda. Espero que dê certo, mas duvido muito e aposto que é marketing.
Para além das coisas que já apontei antes – a saber: divisão real no establishment dos EUA; eleições (o Brasil seria os EUA sob Kamala); impor sanções protecionistas ao Brasil, usando a censura como desculpa –, ocorrem-me mais uma: diversionismo.
É uma narrativa para isentar os EUA de suas ações. O wokismo é uma criação da inteligência dos EUA (agências estatais e ONGs inclusas); no entanto, a direita faz de conta que o wokismo é um “vírus mental” (para usar a expressão de Gad Saad), ou então, de alguma maneira, é culpa dos comunistas. Ou bem é um fenômeno natural, ou bem é culpa dos outros. É essa concepção que faz com que os EUA pareçam bons à direita, mesmo que patrocinem o wokismo pelo mundo.
Junto com esse disfarce, vem uma pauta. Agora os brasileiros têm que achar que uma coisa que não está na sua própria Constituição – a Primeira Emenda – é a régua única para medir a moralidade de um governo ou regime. O Brasil tem mil problemas, mas tudo o que interessa é a liberdade de xingar muito no Twitter. Não precisa ser nossa a Amazônia, nem o petróleo. O brasileiro agora irá às ruas com os cartazes: “O Twitter é nosso!”
Outra coisa digna de nota é que, se agora a direita também quer resumir o golpe de 1964 a uma ingerência da CIA, desprezando causas internas, então acabou-se de vez qualquer dessemelhança profunda entre a direita mainstream e a esquerda mainstream na apreciação de um período tão importante quanto o do regime militar. Foi aí que se constituiu a identidade do esquerdista no Brasil, e foi constituída primeiro em oposição aos militares. Depois, o típico esquerdismo seria uma mistura de oposição aos militares com apoio à democracia liberal. Na ponta oposta, a direita apoiava os militares, que foram responsáveis por grandes sucessos econômicos no Brasil (dentre os quais eu destaco a criação da Embrapa, da qual falei aqui). Na economia, os militares brasileiros não tinham nada a ver com Pinochet.
Sob a batuta de Olavo de Carvalho, a Nova Direita começou a dizer que os militares não prestavam. O mesmo andou espalhando as obras de Gene Sharp, um esquerdista da CIA, como um modelo para a ação política. Agora, se a Nova Direita também detesta a CIA e sua ingerência no Brasil, e ainda defende a democracia liberal com unhas e dentes, então não há mais diferenças mesmo. Quanto à luta pela liberdade de expressão na época da ditadura, são famosos os versos “Pai, afasta de mim esse cálice / de vinho tinto de sangue”, que joga com as palavras homófonas cale-se e cálice. Um famoso influencer de direita usou essa música de Chico Buarque e Gilberto Gil e, sem autorização, alterou a letra para atacar o STF. Os compositores processaram, ganharam e o influencer pôde então se sentir barbaramente censurado.
Agora a direita e a esquerda estão iguais: ambas querem democracia liberal, ambas acham que um lado dos EUA a apoia, e que outro lado espalha ditaduras pelo mundo.