Milei executa em ritmo alucinante a liquidação da Argentina como Estado soberano e liderança sul-americana.
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A Argentina sempre foi um elemento-chave da geopolítica da América do Sul e, ao mesmo tempo, um dos seus elos fracos. A posição geográfica dá à Argentina, ao sul, um acesso preferencial à Antártida bem como um acesso fácil ao Estreito de Magalhães (controlado pelo Chile), uma das principais vias de passagem do Oceano Atlântico para o Pacífico. Ao norte, a Argentina se estende até o Chaco, que constitui o núcleo do Heartland sul-americano.
É importante apontar, também, que ao longo do processo de construção da Argentina, apesar dos inúmeros conflitos armados internos e externos, o país platino aparecia nas Américas como um dos países mais desenvolvidos economicamente e militarmente, com uma população bem-educada e politicamente engajada.
Mas a Argentina, ao mesmo tempo, sempre teve que lidar com certas fraquezas, como uma elite patentemente filobritânica, que sempre se sublevou quando o Estado era conduzido por alguma figura soberanista. Para além disso, os argentinos nunca conseguiram solucionar o problema da concentração demográfica excessiva ao redor de Buenos Aires, com a metade sul do país praticamente desabitada, uma região fértil, rica em recursos naturais, mas vazia.
O fortalecimento argentino colocou o país em choque com o Brasil diversas vezes ao longo da história, especialmente durante o século XIX, mas no século XX, sob Perón e Vargas respectivamente, ambos países compreenderam que o destino do continente estava atrelado aos rumos desses dos Estados. Dotados de uma consciência geopolítica extemporânea, eles projetaram uma aliança continental que poderia ser o eixo de um projeto de Estados soberanistas não alinhados.
Não devemos nos surpreender, portanto, que ambos foram derrubados por movimentações civil-militares golpistas, gestadas pelas elites compradoras oligárquicas cujos interesses econômicos estavam atrelados à hegemonia atlantista.
O caso da Argentina e dos interesses atlantistas sobre ela tem as suas peculiaridades.
É de conhecimento comum que quando Theodor Herzl escreve a obra O Estado Judeu, trabalho seminal do movimento sionista organizado, especulava-se “pátrias” judaicas alternativas caso não se pudesse adquirir a Palestina para o assentamento. É informação pública e notória o papel desempenhado pelo Barão Edmond de Rothschild na aquisição de terras palestinas e no financiamento de assentamentos. Menos conhecido é o papel do Barão Maurice de Hirsch no financiamento de assentos coloniais judaicos na Argentina, de modo que o país é hoje o que possui a maior proporção de judeus na América Latina.
Essa imigração, porém, nem acarretou em divisão territorial, tampouco houve problemas imediatos no que concerne a integração dos imigrantes. Ainda assim, suspeitas em relação a possíveis projetos de longo prazo permaneceram, gerando a narrativa do “Plano Andinia”.
Segundo comentado por patriotas argentinos desde os tempos de Perón, haveria um plano para separar o sul da Argentina, transformando-a em uma nova nação que serviria como uma espécie de “segunda Israel”, um projeto que tem sido bastante recordado nos últimos anos pelo jornalista e geopolitólogo francês Thierry Meyssan. Historicamente, porém, até alguns anos atrás, não se descobriu elementos suficientes para indicar a realidade deste plano.
Não obstante, na medida em que o movimento indigenista mapuche começou a receber atenção midiática ocidental, bem como financiamento estrangeiro e uma espécie de “patrocínio” da Coroa Britânica, retornou à evidência a noção de que a fragmentação da Argentina constituía um risco real, independentemente de qual fosse a desculpa utilizada para fazê-lo.
A isso se soma o fato de que quase 6% do território argentino é controlado por grandes conglomerados estrangeiros, como o Grupo Benetton – o que levou Cristina Kirchner a tentar limitar a quantidade de terra nas mãos de estrangeiros no país, com o limite de mil hectares por proprietário, o que foi aprovado, mas revogado agora pelo governo de Javier Milei.
Em outras palavras, sob o governo de Milei não há mais limites sobre quanta terra um estrangeiro poderá ter na Argentina, ou quanta terra em cada província poderia estar em posse de estrangeiros (o que antes era regulado).
Logo antes das eleições presidenciais argentinas houve uma outra polêmica envolvendo a propriedade de terras por estrangeiros na Argentina.
O caso tratava especificamente de Joe Lewis, dono do Tottenham através da sua companhia ENIC Sport. Lewis, um bilionário judeu de predileções sionistas que enriqueceu principalmente nos anos 90 por causa de seus ataques especulativos empreendidos em parceria com George Soros, possui 30 mil hectares de terras na Patagônia argentina.
Desses 30 mil hectares, 15 mil hectares estariam ao redor do Lago Escondido (o que acarretou, na prática, na privatização do lago) e 15 mil hectares estariam em Playas Doradas, onde Lewis teria um aeroporto privado que não estaria sob o controle da alfândega ou da polícia argentina.
O caso de Lewis chamou a atenção porque semanas antes das eleições argentinas, uma procuradoria argentina abriu uma investigação por fraude na aquisição de terras por Joe Lewis. Não se fala mais neste caso desde a posse de Milei.
Também muito próximos a Milei são Eduardo Elzstein e Marcelo Mindlin, também ex-sócios de George Soros e donos de centenas de milhares de hectares no país, através da Cresud, cujo enfoque é a agropecuária, e da IRSA, cujo enfoque são os empreendimentos imobiliários. Ambos juntos possuem aproximadamente 500 mil hectares de terras na Argentina, com parte considerável dessas terras situadas na Patagônia.
Em 2019 a MintPress News abordou precisamente essa polêmica sobre a aquisição de terras patagônicas por bilionários com vínculos diretos ou indiretos com Israel e o sionismo, expondo tanto o caráter ilegal dessa acumulação fundiária quanto os vínculos políticos de Joe Lewis, por exemplo, com figuras como o Ex-Presidente da Argentina Maurício Macri.
A matéria menciona, também, um outro artigo, mais antigo, de Thierry Meyssan, que de fato desperta preocupações e lança um alerta para todo o continente: de que nas terras de Joe Lewis se recebia anualmente fluxos de centenas ou mesmo milhares de soldados das FDI disfarçados de “turistas”, não se sabe para qual finalidade.
Caso essas informações sejam verdadeiras, reacenderia o debate sobre a possibilidade da sobrevivência de interesses sionistas em relação à Patagônia argentina, mesmo que esses interesses sejam secundários ou terciários. De fato, se qualquer interesse desse tipo de fato existir, a presidência de Milei constitui a condição ideal para que projetos ligados a esse interesse avancem.
Não tendo qualquer vínculo étnico conhecido com Israel, não obstante Milei não fez questão de esconder, em momento algum, o seu amor por Israel já desde antes de chegar à Presidência. Entre estudos de Cabala e visitas à tumba do Rebbe Schneerson (“padrinho” espiritual de Benjamin Netanyahu), Milei tem oferecido um nível de apoio inaudito ao Estado de Israel, visitando o país, prometendo transferir a Embaixada Argentina a Jerusalém e, nessa semana, pedindo a prisão do Ministro do Interior do Irã por causa de explosões ocorridas na Embaixada de Israel na Argentina e na AMIA (Associação Mutual Israelita Argentina) no início dos anos 90 – mesmo com as investigações em torno do caso envoltas em controvérsias, incertezas e influências políticas.
Se a aproximação com Israel corresponde à confluência entre as próprias tendências sionistas do Milei com possíveis projetos de acumulação fundiária ligados a interesses oligárquicos ligados direta ou indiretamente a Israel, a aproximação com os EUA vincula-se ao “ocidentalismo libertário” de Milei que vê nos EUA um “baluarte da civilização”, e que pensa a Argentina como país fadado à subalternidade em relação ao hegemon unipolar.
Não houve, portanto, surpresa alguma na visita de Laura Richardson, Comandante do SOUTHCOM, à Argentina no início de abril. Inclusive porque Richardson tem feito, desde que chegou ao cargo, um périplo constante por todos os países da região, para fortalecer laços e afastá-los das potências contra-hegemônicas.
Surpreendente, porém, foi o repentino anúncio de que Ushuaia receberia uma base naval integrada dos EUA (o que, porém, ainda depende de aprovação do Congresso dos EUA), e vem em sequência à decisão argentina de adquirir F-16 (e suspender as negociações pelos JF-17 chineses), bem como de cancelar o acordo nuclear com a China, que garantiria um reator chinês para a usina nuclear de Atucha III. Essa se surpresa se soma à surpresa da solicitação argentina de participar na OTAN como “parceiro global”.
O interesse crescente dos EUA na Argentina, especialmente em sua região sul, é atribuída à busca por travar uma “guerra secreta” contra a presença chinesa na região (daí, portanto, o esforço por boicotar a base espacial chinesa em Neuquén, na Patagônia argentina. Naturalmente, essa investida estadunidense também aponta para a Antártida como palco futuro de conflitos geopolíticos (tal como já vemos no Polo Norte).
A visita de Laura Richardson foi precedida pela visita de William Burns, diretor da CIA, que fez-se presente em Buenos Aires para exercer pressão contra as relações com a China e a Rússia (mesma razão pela qual esteve no Brasil na mesma época).
Naturalmente, todas essas radicais mudanças argentinas em matéria de política externa afastam as esperanças de uma recuperação das Malvinas em termos satisfatórios e respeitosos da soberania argentina. Uma Argentina atlantista, alinhada à OTAN e sob tutela dos EUA, não tem como recuperar as Malvinas, ocupadas pela Grã-Bretanha, também da OTAN e aliado histórico dos EUA (nos últimos 200 anos).
Assim, entre a compra das terras argentinas por estrangeiros, o interesse sionista em um pedaço da Argentina, o alinhamento com a OTAN e a construção de bases estadunidenses, Milei executa em ritmo alucinante a liquidação da Argentina como Estado soberano e liderança sul-americana.