Ao pé de Milei, os fascistas europeus dos anos 30 e os latino-americanos dos anos 70 e 80 eram uns visionários intelectualizados
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Claro que nem vale a pena tentar explicar que o seu discurso peca por ser ontologicamente impossível. Acusar a “elites de Davos” de estarem a atirar o ocidente para o “socialismo” … Elites essas que agrupam as pessoas mais ricas do mundo, com mais capital acumulado… Desafia todo o entendimento… Se algum socialismo vem aí, deve ser alguma espécie de “socialismo invertido”.
Compreender é um verdadeiro exercício de sanidade. Milei começa por dizer que “o ocidente está em perigo”. Dentro da lógica de Milei, nunca saberemos se pensa que é o mundo que vai ficar sem “ocidente”, ou se é o seu ideal de “ocidente liberal”, o mesmo que alimenta os fundos abutres que destruíram a economia argentina, a que ele se refere.
Milei diz que “os que devem defender os valores do ocidente” estão cooptados por uma visão do mundo que conduz ao “socialismo” e logo à pobreza. Nem valendo a pena referir que o “socialismo”, na China, elevou da miséria, da pobreza, mais de mil milhões de seres humanos, o facto é que, quando olhamos para as políticas, no ocidente, temos de nos questionar: será nas privatizações ao desbarato, na dolarização ou na financeirização e concentração da riqueza, em cada vez menos mãos, que devemos encontrar a chave do “socialismo” de que Milei fala?
Segundo Milei, o ocidente caminha, ainda, em direcção ao que designa por “colectivismo”. Bem, quando no “ocidente”, os partidos colectivistas (comunistas, socialistas…), têm cada vez menos votos, os sindicatos “colectivistas”, ou seja, que sustentam a sua acção da luta dialéctica de classes, funcionam com cada vez mais dificuldades; as “colectivistas” leis laborais regridem, dando lugar à precariedade, á destruição da contratação colectiva e à desregulamentação dos horários de trabalho; os clubes desportivos “colectivos”, ou seja, associativos e recreativos, vêem o seu principal rendimento – o futebol – comprado por individuais investidores; os estados privatizam e apostam em Parcerias Publico Privadas, que remuneram de forma principesca individuais empresários; o teletrabalho, a inteligência artificial, o comercio electrónico, ameaçam desestruturar a sociedade e afastar as pessoas, individualizando-as; a mobilidade, a migração que provoca o desenraizamento social das pessoas em relação à sua comunidade, tornando-nos indivíduos entre estranhos… Afinal, caro Milei… Onde está tanto “colectivismo”? Não existem quase cooperativas, as associações não têm poder, o estado tem cada vez menos poder e propriedade… Onde está, então, a propriedade colectiva?
Ficamos, portanto, sem saber a que “experimentos colectivistas” se refere. Não deve ser o identitarismo, ele próprio uma forma de individualismo, que procura a diferença, ao invés da identificação mútua e a igualdade. Não se referirá, também, à agenda ambiental, na medida em que a mesma aposta precisamente em soluções que assentam, apenas e tão só, em tecnologias e metodologias que o Ocidente tem para vender. Ou seja, a agenda verde ocidental, cria novos ciclos de acumulação e não destrói os que já existem. No final, tal como a agenda digital ou energética, apenas contribui para mais concentração de riqueza, em cada vez menos mãos. E nenhuma delas é estado. A única forma “colectiva” que encontro, são as grandes corporações capitalistas ocidentais, mas essas, são as que apoiam Milei e estão em Davos.
Mas, o discurso de Milei é tremendamente rico. Nele encontramos o alfa e ómega da ignorância, da imbecilidade e da hipocrisia panfletárias, mascaradas de discurso visionário. Ao pé de Milei, os fascistas europeus dos anos 30 e os latino-americanos dos anos 70 e 80 eram uns visionários intelectualizados. O que se recuou!
Diz ele que os seus concidadãos argentinos são os primeiros a testemunhar esta realidade paradoxal. Paradoxal é também que todos estejam na rua…. Contra ele. Portanto, ficamos também sem saber a que argentinos se refere, porque a ver pela dimensão e violência das manifestações, muitos dos que nele votaram, já terão aberto os olhos e acordado do encanto “anti-socialista imaginário”.
É que o anti-socialismo de Milei, o seu anti colectivismo são tão fortes, tão veementes e absorventes que lhe afectam a função sensorial, fechando-o numa espécie de bolha esquizofrénica, comparável apenas com aquela em que está quem fica em prisão solitária demasiado tempo. Começa a ver o que não existe e, nem pode, existir.
Diz o Sr. Milei que, em 1860, foi adoptado “um modelo de liberdade” e que, mais tarde, já no século XX, a Argentina abraçou o modelo “colectivista”. Ora, de acordo com o censo de 2018, 96% da terra argentina era privada e não colectiva, publica ou social. Apenas 3% são públicos. Com Milei, de certeza que esses 3% irão – ou já foram – vendidos, a preço de saldo e para uns poucos “colectivistas” privilegiados. As sociedades participadas pelo estado, cerca de 100 em 2016, detinham pouco mais do que 1% do emprego total. Um pouco mais do que a “socialista” Alemanha, menos do que os também “colectivizados” países baixos, Israel, Grécia, Nova Zelândia, Áustria, Irlanda, Itália, Suécia, França, sendo que, a Noruega, com quase 10% do emprego garantido por empresas participadas pelo estado, deve ser considerada, segundo os cálculos de Milei como uma potência “ultracolectivista e comunista radical”.
Aponta Milei que foi o “colectivismo” ou o “socialismo” que levaram a Argentina de ser um dos países mais ricos, à entrada do século XX, para um dos mais pobres – o que nem é o caso – no século XXI. Segundo ele, tudo o que existe, em qualquer país civilizado, como subsídios para os mais carenciados, pensões de reforma de um sistema de segurança social público, funcionários públicos e serviços públicos, e que existem no ocidente liberal há quase 100 anos, tornam a Argentina um país “socialista”, mesmo tendo uma estrutura proprietária privada ao nível dos demais. E este “socialismo” todo, que Milei quer que acabe, paradoxalmente, coexistiu com a que aponta como sendo a idade de ouro do seu capitalismo de livre empresa (entre 1950 e 2023) e que refere como caso de sucesso. Vá-se lá entender isto! E pensar que há 30 anos, quer Europa, quer EUA tinham mais propriedade pública e serviços públicos com maior qualidade do que os de hoje.
O que não fez diferença nenhuma, para o Sr. Milei – talvez devêssemos perguntar por onde andou – são os empréstimos sucessivos que o seu país contraiu ao FMI, a dependência do dólar e a ingerência constante dos EUA nos assuntos argentinos, a entrega das reservas do país aos fundos abutres… Para tudo isso, nem uma palavra. O problema nem é Milei não conhecer a realidade mundial… É nem conhecer a do seu próprio país.
Segundo ele o capitalismo livre de empresa é o único que garante o fim da pobreza. Então porque não acabou com ela na África, na Ásia, na India, na América latina quase toda, incluindo na Argentina?
Todos os dados que Milei aponta, contradizem, eles próprios, a sua assunção de que o modelo capitalismo liberal ocidental é solução. Vejamos, ele diz que que, com o capitalismo, o PIB mundial chegou a duplicar em cada 23 anos. O que ele não refere é a contribuição de países como a China, a ida URSS, India, Rússia, Irão, Vietname, Indonésia, Brasil, para esse esforço, nomeadamente entre 1950 e 2023. Todos países do sul global e alguns socialistas. É que, só para exemplificar, entre 1917 e 1991, o PIB da URSS multiplicou-se por 11 vezes. 11 vezes em 74 anos! Agora comparem isto com os dados de Milei!
Já a China passou de um PIB de 150 milhões de dólares em 1978, para um PIB de 8.227 trilhões em 2012! Vale a pena calcular, Sr. Milei? Não, não vale! Mesmo o da capitalista Rússia, que ele não integra no Ocidente e considerará “socialista” também, entre 1999 e 2013, o seu PIB per capita passou de 1,4 mil dólares, para mais de 15 mil em 2013. Estes países terão contribuído alguma coisinha para esse sucesso todo, não?
E considerando que, dois deles, extremamente populosos e enquadrados no campo inimigo de Milei, terão mesmo contribuído decisivamente para o crescimento rápido do PIB mundial, concretamente no melhor período apontado por Milei… Teremos de questionar: mas quem é que fez as contas a Milei? Algum tablóide do Reino Unido?
Não apenas o sr. Milei confunde o crescimento mundial, com o crescimento do capitalismo como um todo, mesmo quando as contribuições de países “socialistas” (na realidade ou apenas na imaginação de Milei) são decisivas, como confunde o capitalismo com o ocidente, quando, no mundo, outros países capitalistas, que Milei imagina – talvez por ignorância e imbecilidade – como socialistas, contribuíram decisivamente para os números que tão falaciosamente apresenta.
A fazer contas assim, uma coisa é certa. A Argentina vai para o buraco mais profundo que conseguir escavar. E ainda diz que a evidência é inquestionável. E trabalha este senhor no Fórum Económico Mundial.
Claro que não se pode negar a contribuição decisiva que o capitalismo deu para elevar a base material da humanidade. Afinal, foi por isso que se desenvolveu, que venceu e que substituiu o modo de produção anterior. Mas o que o capitalismo não resolveu é a pobreza e a distribuição da riqueza de forma justa. A verdadeira erradicação da pobreza extrema só aconteceu em países socialistas (de facto), ou em países capitalistas que Milei considera “socialistas”, porque o estado detém propriedade pública e tem uma função importante de redistribuição a riqueza.
Para Milei, o problema é, portanto, a justiça social. Justiça social que ele confundirá com “socialismo” e “colectivização”, numa confusão de conceitos que denota o caracter muito pouco educado e culto dos meios que o envolvem.
Quando se sabe que, por exemplo, na Europa que ele diz estar a desaparecer, como modelo de “valores ocidentais”, se o estado não fizesse transferências sociais, a pobreza aumentaria de 20 para mais de 40%, tal como sucedeu na Argentina com a sua entrada, a questão fica: então a justiça social combate ou não a pobreza, senhor Milei? Vejamos, vivemos em estados liberais ocidentais, que ele diz estarem a caminhar para o “socialismo”, mas que ainda não lá chegaram; estados com liberdade de empresa, domínio quase total da propriedade pelo sector privado, individualistas e com mercados de capitais abertos; e, neste modelo quase ideal, a pobreza mais do que duplicaria, caso o estado não praticasse, alguma – pouca –, justiça social. Como confiar em Milei?
E é neste ponto do discurso que Milei nos diz que vai beber a sua inspiração fisiocrática a Hayek e Kirzner, propondo-nos o retorno de uma selva que pensávamos já ter ido embora. É que Hayek e Kirzner, eles próprios, resultado da reacção teórica ás propostas de filósofos como Marx ou mesmo Keynes, visaram construir uma teoria que justificasse a manutenção da riqueza sempre nas mãos dos mais ricos, dizendo que o estado é que distorce a economia com os seus impostos e subsídios para os “preguiçosos” dos trabalhadores.
É este pensamento quasi-medieval que representa a proposta de Milei, precisamente quando todos os países do sul global, afinal o que querem é desenvolver-se e melhorar as suas condições de justiça social. Claro que, Milei, ocidentalista radical, vê no enriquecimento dos países do sul global um perigo. Como a riqueza não é infinita – e isso ele saberá – quanto mais enriquecem, por exemplo, os BRICS, menos pilha o ocidente. E daí passamos à única coisa com a qual eu estou de acordo com Milei: o modelo ocidental está em causa!
Diz Milei que o capitalismo é “virtuoso” porque “promove a paz”. Bem, o que dirão as vítimas da 1ª e 2ª guerras mundiais, as vítimas da colonização a américa, os escravos negros que foram vítimas de “blanquemento”, na Argentina, ou as guerras do ópio promovidas pela Inglaterra. Tudo isto no período em que Milei situa o desenvolvimento do capitalismo de livre empresa.
Era bom que Milei desse uma volta, pelo médio-oriente, para perceber o quão pacífico é o mundo de hoje. Seria bom que fosse passar umas férias às trincheiras do Donbass, para perceber como pilha, oprime e manobra o seu ocidente. Talvez, se passasse umas férias forçadas num qualquer mercado de escravos da Líbia e o atirassem num bote de borracha atlântico fora, mudasse de ideias sobre o caracter pacífico do capitalismo imperialista ocidental.
Pensando que deu uma lição de economia ao mundo, o que Milei nos deu foi uma visão da sua mente perturbada e da sua incapacidade patológica para perceber a realidade, como algo vivo e em movimento. Bastaria retirar ao ocidente, que tanto defende, toda a pilhagem que, desde o Império romano, perpetua sobre o resto do mundo, para talvez perceber que, sem a pilhagem, sem o condicionamento, sem a apropriação do que é dos outros, este ocidente nunca poderia atingir os números de riqueza de que fala.
Mas a cereja no topo do bolo, a figurar entre os quadros mais típicos da demência humana, é quando, depois de fazer um suposto discurso “anti-globalista”, Milei acaba a dirigir-se aos empresários globalistas de Davos (não há um que não o seja), dizendo-lhes que são uns heróis!
Ao acabar com um “Viva la Libertad carajo”, Milei esqueceu o fundamental: Não existe uma constituição fascista, de Franco, Salazar, Mussolini ou Pinochet (o seu herói real?) que não fale em liberdade, estrutura fundamental do regime. Nenhuma! O problema é, como com Milei, o divórcio com a própria realidade!