O US Doctrinal Program de 1953, programa iniciado pela CIA após a morte de Stálin cujo fito era converter as esquerdas filossoviéticas em americanófilas, deu muito certo na América Ibérica.
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Os novos protestos no México, que ecoam o do Nepal ao se dizerem “da geração Z” e usarem um desenho de anime, fizeram com que a esquerda ibero-americana corresse para denunciar uma revolução colorida. Para piorar, uma pichação onde se lia “narcoestado” fez os mais afobados concluírem que a CIA urdira o protesto para começar a bombardear o México – do mesmo jeito que já faz com a Colômbia – e, quem sabe, declarar uma guerra, como há tempos o governo Trump vem insinuando que vai fazer com a Venezuela.
Sobre o que aconteceu no México, é preciso tomar cuidado para não alargar demais o conceito de revolução colorida, e para não deslegitimar toda e qualquer manifestação contrária aos tropos esquerdistas. Nesse sentido, vale ler o resumo do jornalista Juan David Rojas: os protestos “foram claramente organizados pela oposição mexicana tradicional, majoritariamente de direita. […] De fato, apesar de sua alusão aos protestos da juventude no Nepal e nas Filipinas, os jovens foram uma evidente minoria entre os manifestantes. Uma imagem viral e especialmente cômica foi a do septuagenário Vicente Fox usando uma camisa com a caveira Jolly Roger da popular série de animes One Piece. Ao mesmo tempo, seria uma insensibilidade alegar que os manifestantes não tinham problemas legítimos com o status quo mexicano, sobretudo com a segurança pública. No começo do mês, o prefeito de Uruapan Carlos Manzo, no estado de Michoacán, foi assassinado pelo Cartel de Jalisco Nueva Generación (CJNG) por causa de sua estridente crítica à narco-corrupção. Seu movimento político, que não era alinhado nem com o Morena [governo], nem com a oposição, foi o organizador inicial dos protestos.” Ou seja, não adianta a economia ir bem, se o governo se mostrar impotente diante do crime organizado.
No Brasil, a esquerda ainda tem gente interessada pela política ibero-americana. Um brasileiro comum, porém, quando pensa na política ibero-americana, raramente sai da América do Sul. Por muito tempo, só pensava na vizinha Argentina, um país importante com o qual há maior proximidade demográfica (as Amazônia tem muitas fronteiras, mas são pouco povoadas) e tem uma politização muito grande (diferente do Paraguai, aonde os brasileiros vão por negócios). De repente, a Venezuela apareceu no noticiário e no imaginário político brasileiro por causa da onda de refugiados pobres (que não pegaram um avião para um país de primeiro mundo, nem saíram pela fronteira viva com a Colômbia; em vez disso, atravessaram a floresta e sobrecarregaram o diminuto estado de Roraima).
Não obstante, o México apareceu no imaginário brasileiro de direita ainda antes dos protestos. Circulou em português, por exemplo, a história de que Claudia Sheinbaum não quer combater os traficantes porque isso seria fascismo. De fato, em 5 novembro de 2025, Sheinbaum disse que “voltar à guerra contra o tráfico não é opção”, que “a guerra contra o tráfico está fora da lei, é permissão para matar […] é ir em direção ao fascismo”, e que “é o verdadeiro autoritarismo, a volta à guerra contra o tráfico”.
A filosofia é a mesmíssima da Nova República brasileira: o Estado é concebido como defensor dos frascos e comprimidos, e a autoridade (que inclui o monopólio do uso da força) é vista como autoritária em si mesma. A semelhança entre Brasil e México aumenta se observarmos que Claudia Sheinbaum rejeita a guerra ao tráfico desde o começo do governo, e prometia resolver o problema por meio de ações de inteligência. No Brasil, diante do apoio popular à operação letal no Rio de Janeiro, a esquerda passou a contrapor as operações da Polícia Federal no centro financeiro do país – como se combater esquemas de lavagem de dinheiro do PCC tivesse alguma coisa a ver com uma ação para ingressar em territórios controlados pelo Comando Vermelho, que tem fuzis de vários exércitos do mundo, sistema anti-drones ucraniano, combatentes treinados na Ucrânia e vive não só de vender drogas, mas também de cobrar taxas e obrigar os moradores a contratarem os seus serviços. Tudo isso para repetir a crítica social digna de universitários bêbados: a polícia só atira em bandidos na favela porque é má – e não porque os bandidos da favela recebem a polícia com drones lançando bombas enquanto os lavadores de dinheiro engravatados não usam nem estilingue.
No entanto, a taça de melhor ciência social bêbada fica no meio do caminho entre o México e o Brasil: na Colômbia, Gustavo Petro disse que a cocaína não faz mais mal que uísque e só é ilegal por ser da América Latina, manifestou-se contra a operação no Rio, lamentando a opção por matar os “jovens pobres” em vez de incluí-los e dar-lhes oportunidade, e redigiu um longo tuíte surrealista no qual dizia coisas embaraçosas como: “Não gosto do seu petróleo, Trump, vai acabar com a espécie humana por cobiça.”
Pode-se dizer que faz parte do senso comum da esquerda ibero-americana considerar o problema das facções é um dado da natureza sobre o qual não há o que fazer além de esperar. No futuro, quando Marx voltar, vai acontecer a revolução proletária e aí as desigualdades vão acabar. As desigualdades acabando, ninguém mais vai querer ser traficante, e assim o tráfico acabará. Ou talvez o tráfico acabe porque Marx vai avisar à humanidade que cocaína é tão boa quanto uísque. De todo modo, aí a violência vai acabar. Enquanto Marx não vem, os seus fiéis esperam discutindo como ganhar eleições, para, ganhando-as, passar o novo mandato discutindo como ganhar as próximas eleições. E um meio eficiente é governar seguindo a agenda dos banqueiros para impedir que os banqueiros apoiem só a concorrência na eleição seguinte. Mas tenham fé, que um dia Marx há de voltar.
Se a esquerda chinesa pensasse assim, a China estaria até hoje viciada em ópio. Viciada em ópio, ela também seria, na certa, muito menos industrializada e, por conseguinte, emitiria muito menos carbono. O que a esquerda ibero-americana exige hoje é uma anti-China: países onde o emprego é catar latinha e vender para a reciclagem, coisa sabidamente comum entre usuários de crack, mas que foi elogiada por Guilherme Boulos (um possível sucessor de Lula) como uma prática ESG positiva para o país.
É verdade que a maioria dos governos de direita na Ibero-América tampouco conseguiu frear a criminalidade, e que não poucos políticos de direita estão envolvidos com facções. Isso só torna o caso da esquerda mais irracional: eles poderiam segurar a língua, mas não se contêm. Falam um monte de besteira que traz prejuízos eleitorais.
Só podemos concluir que o US Doctrinal Program de 1953, programa iniciado pela CIA após a morte de Stálin cujo fito era converter as esquerdas filossoviéticas em americanófilas, deu muito certo na América Ibérica. Afinal, as esquerdas atuais se parecem muito mais com sucursais do Partido Democrata do que com qualquer esquerda que possa reivindicar o título legítimo de anticolonial.


