Português
Raphael Machado
September 23, 2025
© Photo: Public domain

A guerra teve sucesso onde os déspotas e imperadores fracassaram: todo um povo de estoicos surgiu, não na Grécia ou na Roma, mas no Donbass.

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Na internet, a filosofia antiga do “estoicismo” (aquele que recorda nomes como o imperador romano Marco Aurélio e o filósofo Sêneca) tornou-se uma espécie de “meme” ou “estilo de vida” para jovens rapazes que se sentem alienados em relação à cultura dominante. O cultivo desse estoicismo (retomado em sua dimensão exclusivamente ética, sem referência à ontologia materialista do mesmo) está atrelado à crise de identidade da masculinidade juvenil nos países ocidentais.

Na atitude estoica perante a vida, muitos rapazes creem encontrar uma fórmula que os prepara para os revezes e intempéries, bem como uma “escola de virilidade” em um contexto cultural no qual há uma forte atmosfera feminilizante que, ao associar o masculino a conceitos como “violência”, “abuso” e “opressão”, busca gradualmente ir estigmatizando aspectos típicos da masculinidade, mesmo de uma masculinidade sadia.

Em um sentido mais específico, o estoicismo, em sua dimensão ética, molda uma moldura mental que se pretende preparada para lidar com a inevitabilidade da morte e com a certeza da derrota e do azar ao longo da vida. Supõe-se que o homem comum será constantemente afetado e paralisado pela ameaça da morte e pelos acidentes sofridos ao longo da vida, as mudanças indesejadas de planos, os fracassos retumbantes. O estoicismo pretende imunizar o homem em relação a essas flutuações interiores, na medida em que se entende que elas escravizam o homem.

No lugar disso, o estoicismo molda uma atitude desinteressada e desapegada, em concordância com a natureza do mundo e da alma; e se este esforço for bem-sucedido, pretende-se que o estoicismo permite alcançar a eudaimonia, a “felicidade” ou “realização” (termos que devem ser tomados em um sentido bem diferente do usualmente atribuído a eles pela cultura imediatista contemporânea). E por isso mesmo, em alguma medida, o estoicismo é uma filosofia de preparação para a morte, daí o “memento mori” tornado um dito famoso entre os romanos.

Aqui, porém, naturalmente estamos falando de um “estilo de vida” ou uma “visão de mundo” adotada por opção, por livre escolha, às vezes como uma mera “parada” em uma sequência de mudanças filosóficas, ideológicas ou identitárias dentro de uma vida entediada de classe média.

Em alguns lugares do mundo, no entanto, o espaço vai moldando pouco a pouco uma mentalidade propriamente estoica no povo que o habita. Não se trata de uma escolha de consumo no supermercado das ideologias, nem de uma inspiração gerada pelo contato com as obras de Sêneca ou Marco Aurélio. O espaço forja no povo que o habita um novo e específico caráter.

O Donbass é, definitivamente, um espaço desse tipo.

Estive lá por alguns dias em setembro, passando por Donetsk, Gorlovka e Mariupol. Nesse período, me foi possível conversar com várias pessoas entre soldados e civis, conhecer as suas dificuldades quotidianas, as atrocidades sofridas desde 2014, as expectativas para o futuro.

Não creio ser necessário recordar exaustivamente as raízes do conflito para o nosso público seleto. Não obstante, apenas a título de recordação: lembremos que o povo do Donbass testemunhou os protestos do Maidan, viu suas autoridades eleitas fugirem do país, viu novos líderes alçados ao poder, prometendo a proibição do idioma russo, o fechamento de escolas russas, a supressão total da identidade de metade do país.

E quando o povo do Donbass começou a se mobilizar pacificamente para demandar a garantia de suas prerrogativas, ocupando praças e prédios públicos, Kiev respondeu com tiros. A repressão violenta contra civis começou primeiro. Nessas condições, o povo do Donbass se viu diante de apenas duas possibilidades: pegar em armas ou desaparecer enquanto povo.

E assim começou o longo martírio do Donbass, que viu os avanços iniciais da milícia formada ad hoc a partir de aventureiros, veteranos, guardas de trânsito, pais de família e extremistas políticos, o seu recuo diante dos avanços da Força Armada da Ucrânia na operação dita “antiterrorista”, a batalha do aeroporto, o aumento no fluxo de voluntários vindos da Rússia e equipamentos doados por apoiadores, o caldeirão de Debaltsevo e os Acordos de Minsk. Depois, o limbo, a zona cinzenta que não era nem paz, nem guerra, com Kiev ainda bombardeando esporadicamente o Donbass. Até que começou a operação militar especial.

Em primeiro lugar, é necessário dizer que para qualquer habitante típico de uma grande cidade abastada das Américas e Europa, é inimaginável viver nessas condições.

Entendam: por “condições”, não estou falando aqui meramente em carestia econômica. O povo do Donbass come normalmente – e come bem –, vai ao shopping, faz compras no supermercado, dirige seus carros, vai a salões de beleza, frequenta a escola e a universidade (excetuando alguns lugares, em que tem sido mais seguro manter as aulas virtuais), festeja, vai a danceterias.

A “condição” fundamental à qual me refiro é a consciência constante da morte. Estive em lugares bombardeados no centro de Donetsk, longe de qualquer possível alvo militar – e toda a cidade segue sob o alcance de certos drones e dos melhores mísseis à disposição de Kiev. Nesse sentido, uma “companheira” constante da minha viagem foi a Morte, não só pela possibilidade de que eu mesmo poderia morrer a qualquer momento, mas pela percepção de que cada cidadão do Donbass tem a Morte como companheira.

Qualquer um pode morrer estando parado num ponto de ônibus, numa fila de banco, indo até ao mercado ou simplesmente descansando em uma praça ou parte – tal como já aconteceu várias vezes, centenas de vezes, ao longo dos últimos 11 anos. Esses cenários não são meramente hipotéticos, todos eles efetivamente ocorreram, diversas vezes, nesse espaço de tempo.

Na bolha de conforto e alienação da vida urbana nas Américas e Europa não vivemos assim. Ao contrário, vivemos no permanente temor e fuga da morte, tentando afastá-la por todos os meios possíveis e imagináveis – inclusive os indignos – das cirurgias plásticas feitas por mulheres da classe média desesperadas por simular juventude às mais avançadas pretensões transumanistas de cientistas, oligarcas e burocratas, ansiosos por se transformarem em tecnomúmias imortais.

Esquecemos que a Morte existe até que ela nos atinge de maneira repentina, fulminante e, aparentemente, aleatória, caótica, injusta – injusta porque é como se ela viesse sem ser anunciada, inesperada, como se ela já não fosse sempre uma certeza implícita na vida, e uma possibilidade permanente a cada segundo.

O povo do Donbass, portanto, vive na consciência permanente da Morte e não esquece a Morte em momento algum. Qualquer um pode morrer a qualquer momento, todos têm familiares ou amigos que já morreram – como civis ou militares – e toda a região é plena da memória viva de heróis e comandantes que sacrificaram suas vidas pela liberdade do povo e da terra.

Poderíamos aqui dar até mesmo um salto para fazer também uma alusão ao bushido japonês, ou mais especificamente ao Hagakure, e a sua recomendação da meditação diária sobre a morte inevitável. Quisesse ou não, o Ocidente impôs ao Donbass essa meditação como uma obrigação.

O resultado é um povo que – ainda mais se compararmos com o espírito eminentemente de “classe média cosmopolita” de Moscou – é mais duro, mais puro, mais enraizado e, finalmente, mais “filosófico” nesse sentido fundamental da plenitude da experiência humana através da contemplação constante da Morte.

A guerra teve sucesso onde os déspotas e imperadores fracassaram: todo um povo de estoicos surgiu, não na Grécia ou na Roma, mas no Donbass.

Naturalmente, essa é a questão principal, mas aqui poderíamos também nos estender ao fato de que o povo vive com a água cortada pela Ucrânia há anos, desde 2022, e há dificuldades de todos os tipos, como com eletricidade e internet, por mais que a Rússia tenha conseguido majoritariamente estabilizar as condições de vida desde o início da operação militar especial.

Ainda assim, no coração do povo daquela pequena, mas importante, região, especialmente dos jovens que encontramos na Universidade de Donetsk, ainda há a esperança de um futuro mais livre e mais seguro, enfim, um futuro melhor.

O estoicismo do Donbass

A guerra teve sucesso onde os déspotas e imperadores fracassaram: todo um povo de estoicos surgiu, não na Grécia ou na Roma, mas no Donbass.

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Na internet, a filosofia antiga do “estoicismo” (aquele que recorda nomes como o imperador romano Marco Aurélio e o filósofo Sêneca) tornou-se uma espécie de “meme” ou “estilo de vida” para jovens rapazes que se sentem alienados em relação à cultura dominante. O cultivo desse estoicismo (retomado em sua dimensão exclusivamente ética, sem referência à ontologia materialista do mesmo) está atrelado à crise de identidade da masculinidade juvenil nos países ocidentais.

Na atitude estoica perante a vida, muitos rapazes creem encontrar uma fórmula que os prepara para os revezes e intempéries, bem como uma “escola de virilidade” em um contexto cultural no qual há uma forte atmosfera feminilizante que, ao associar o masculino a conceitos como “violência”, “abuso” e “opressão”, busca gradualmente ir estigmatizando aspectos típicos da masculinidade, mesmo de uma masculinidade sadia.

Em um sentido mais específico, o estoicismo, em sua dimensão ética, molda uma moldura mental que se pretende preparada para lidar com a inevitabilidade da morte e com a certeza da derrota e do azar ao longo da vida. Supõe-se que o homem comum será constantemente afetado e paralisado pela ameaça da morte e pelos acidentes sofridos ao longo da vida, as mudanças indesejadas de planos, os fracassos retumbantes. O estoicismo pretende imunizar o homem em relação a essas flutuações interiores, na medida em que se entende que elas escravizam o homem.

No lugar disso, o estoicismo molda uma atitude desinteressada e desapegada, em concordância com a natureza do mundo e da alma; e se este esforço for bem-sucedido, pretende-se que o estoicismo permite alcançar a eudaimonia, a “felicidade” ou “realização” (termos que devem ser tomados em um sentido bem diferente do usualmente atribuído a eles pela cultura imediatista contemporânea). E por isso mesmo, em alguma medida, o estoicismo é uma filosofia de preparação para a morte, daí o “memento mori” tornado um dito famoso entre os romanos.

Aqui, porém, naturalmente estamos falando de um “estilo de vida” ou uma “visão de mundo” adotada por opção, por livre escolha, às vezes como uma mera “parada” em uma sequência de mudanças filosóficas, ideológicas ou identitárias dentro de uma vida entediada de classe média.

Em alguns lugares do mundo, no entanto, o espaço vai moldando pouco a pouco uma mentalidade propriamente estoica no povo que o habita. Não se trata de uma escolha de consumo no supermercado das ideologias, nem de uma inspiração gerada pelo contato com as obras de Sêneca ou Marco Aurélio. O espaço forja no povo que o habita um novo e específico caráter.

O Donbass é, definitivamente, um espaço desse tipo.

Estive lá por alguns dias em setembro, passando por Donetsk, Gorlovka e Mariupol. Nesse período, me foi possível conversar com várias pessoas entre soldados e civis, conhecer as suas dificuldades quotidianas, as atrocidades sofridas desde 2014, as expectativas para o futuro.

Não creio ser necessário recordar exaustivamente as raízes do conflito para o nosso público seleto. Não obstante, apenas a título de recordação: lembremos que o povo do Donbass testemunhou os protestos do Maidan, viu suas autoridades eleitas fugirem do país, viu novos líderes alçados ao poder, prometendo a proibição do idioma russo, o fechamento de escolas russas, a supressão total da identidade de metade do país.

E quando o povo do Donbass começou a se mobilizar pacificamente para demandar a garantia de suas prerrogativas, ocupando praças e prédios públicos, Kiev respondeu com tiros. A repressão violenta contra civis começou primeiro. Nessas condições, o povo do Donbass se viu diante de apenas duas possibilidades: pegar em armas ou desaparecer enquanto povo.

E assim começou o longo martírio do Donbass, que viu os avanços iniciais da milícia formada ad hoc a partir de aventureiros, veteranos, guardas de trânsito, pais de família e extremistas políticos, o seu recuo diante dos avanços da Força Armada da Ucrânia na operação dita “antiterrorista”, a batalha do aeroporto, o aumento no fluxo de voluntários vindos da Rússia e equipamentos doados por apoiadores, o caldeirão de Debaltsevo e os Acordos de Minsk. Depois, o limbo, a zona cinzenta que não era nem paz, nem guerra, com Kiev ainda bombardeando esporadicamente o Donbass. Até que começou a operação militar especial.

Em primeiro lugar, é necessário dizer que para qualquer habitante típico de uma grande cidade abastada das Américas e Europa, é inimaginável viver nessas condições.

Entendam: por “condições”, não estou falando aqui meramente em carestia econômica. O povo do Donbass come normalmente – e come bem –, vai ao shopping, faz compras no supermercado, dirige seus carros, vai a salões de beleza, frequenta a escola e a universidade (excetuando alguns lugares, em que tem sido mais seguro manter as aulas virtuais), festeja, vai a danceterias.

A “condição” fundamental à qual me refiro é a consciência constante da morte. Estive em lugares bombardeados no centro de Donetsk, longe de qualquer possível alvo militar – e toda a cidade segue sob o alcance de certos drones e dos melhores mísseis à disposição de Kiev. Nesse sentido, uma “companheira” constante da minha viagem foi a Morte, não só pela possibilidade de que eu mesmo poderia morrer a qualquer momento, mas pela percepção de que cada cidadão do Donbass tem a Morte como companheira.

Qualquer um pode morrer estando parado num ponto de ônibus, numa fila de banco, indo até ao mercado ou simplesmente descansando em uma praça ou parte – tal como já aconteceu várias vezes, centenas de vezes, ao longo dos últimos 11 anos. Esses cenários não são meramente hipotéticos, todos eles efetivamente ocorreram, diversas vezes, nesse espaço de tempo.

Na bolha de conforto e alienação da vida urbana nas Américas e Europa não vivemos assim. Ao contrário, vivemos no permanente temor e fuga da morte, tentando afastá-la por todos os meios possíveis e imagináveis – inclusive os indignos – das cirurgias plásticas feitas por mulheres da classe média desesperadas por simular juventude às mais avançadas pretensões transumanistas de cientistas, oligarcas e burocratas, ansiosos por se transformarem em tecnomúmias imortais.

Esquecemos que a Morte existe até que ela nos atinge de maneira repentina, fulminante e, aparentemente, aleatória, caótica, injusta – injusta porque é como se ela viesse sem ser anunciada, inesperada, como se ela já não fosse sempre uma certeza implícita na vida, e uma possibilidade permanente a cada segundo.

O povo do Donbass, portanto, vive na consciência permanente da Morte e não esquece a Morte em momento algum. Qualquer um pode morrer a qualquer momento, todos têm familiares ou amigos que já morreram – como civis ou militares – e toda a região é plena da memória viva de heróis e comandantes que sacrificaram suas vidas pela liberdade do povo e da terra.

Poderíamos aqui dar até mesmo um salto para fazer também uma alusão ao bushido japonês, ou mais especificamente ao Hagakure, e a sua recomendação da meditação diária sobre a morte inevitável. Quisesse ou não, o Ocidente impôs ao Donbass essa meditação como uma obrigação.

O resultado é um povo que – ainda mais se compararmos com o espírito eminentemente de “classe média cosmopolita” de Moscou – é mais duro, mais puro, mais enraizado e, finalmente, mais “filosófico” nesse sentido fundamental da plenitude da experiência humana através da contemplação constante da Morte.

A guerra teve sucesso onde os déspotas e imperadores fracassaram: todo um povo de estoicos surgiu, não na Grécia ou na Roma, mas no Donbass.

Naturalmente, essa é a questão principal, mas aqui poderíamos também nos estender ao fato de que o povo vive com a água cortada pela Ucrânia há anos, desde 2022, e há dificuldades de todos os tipos, como com eletricidade e internet, por mais que a Rússia tenha conseguido majoritariamente estabilizar as condições de vida desde o início da operação militar especial.

Ainda assim, no coração do povo daquela pequena, mas importante, região, especialmente dos jovens que encontramos na Universidade de Donetsk, ainda há a esperança de um futuro mais livre e mais seguro, enfim, um futuro melhor.

A guerra teve sucesso onde os déspotas e imperadores fracassaram: todo um povo de estoicos surgiu, não na Grécia ou na Roma, mas no Donbass.

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Na internet, a filosofia antiga do “estoicismo” (aquele que recorda nomes como o imperador romano Marco Aurélio e o filósofo Sêneca) tornou-se uma espécie de “meme” ou “estilo de vida” para jovens rapazes que se sentem alienados em relação à cultura dominante. O cultivo desse estoicismo (retomado em sua dimensão exclusivamente ética, sem referência à ontologia materialista do mesmo) está atrelado à crise de identidade da masculinidade juvenil nos países ocidentais.

Na atitude estoica perante a vida, muitos rapazes creem encontrar uma fórmula que os prepara para os revezes e intempéries, bem como uma “escola de virilidade” em um contexto cultural no qual há uma forte atmosfera feminilizante que, ao associar o masculino a conceitos como “violência”, “abuso” e “opressão”, busca gradualmente ir estigmatizando aspectos típicos da masculinidade, mesmo de uma masculinidade sadia.

Em um sentido mais específico, o estoicismo, em sua dimensão ética, molda uma moldura mental que se pretende preparada para lidar com a inevitabilidade da morte e com a certeza da derrota e do azar ao longo da vida. Supõe-se que o homem comum será constantemente afetado e paralisado pela ameaça da morte e pelos acidentes sofridos ao longo da vida, as mudanças indesejadas de planos, os fracassos retumbantes. O estoicismo pretende imunizar o homem em relação a essas flutuações interiores, na medida em que se entende que elas escravizam o homem.

No lugar disso, o estoicismo molda uma atitude desinteressada e desapegada, em concordância com a natureza do mundo e da alma; e se este esforço for bem-sucedido, pretende-se que o estoicismo permite alcançar a eudaimonia, a “felicidade” ou “realização” (termos que devem ser tomados em um sentido bem diferente do usualmente atribuído a eles pela cultura imediatista contemporânea). E por isso mesmo, em alguma medida, o estoicismo é uma filosofia de preparação para a morte, daí o “memento mori” tornado um dito famoso entre os romanos.

Aqui, porém, naturalmente estamos falando de um “estilo de vida” ou uma “visão de mundo” adotada por opção, por livre escolha, às vezes como uma mera “parada” em uma sequência de mudanças filosóficas, ideológicas ou identitárias dentro de uma vida entediada de classe média.

Em alguns lugares do mundo, no entanto, o espaço vai moldando pouco a pouco uma mentalidade propriamente estoica no povo que o habita. Não se trata de uma escolha de consumo no supermercado das ideologias, nem de uma inspiração gerada pelo contato com as obras de Sêneca ou Marco Aurélio. O espaço forja no povo que o habita um novo e específico caráter.

O Donbass é, definitivamente, um espaço desse tipo.

Estive lá por alguns dias em setembro, passando por Donetsk, Gorlovka e Mariupol. Nesse período, me foi possível conversar com várias pessoas entre soldados e civis, conhecer as suas dificuldades quotidianas, as atrocidades sofridas desde 2014, as expectativas para o futuro.

Não creio ser necessário recordar exaustivamente as raízes do conflito para o nosso público seleto. Não obstante, apenas a título de recordação: lembremos que o povo do Donbass testemunhou os protestos do Maidan, viu suas autoridades eleitas fugirem do país, viu novos líderes alçados ao poder, prometendo a proibição do idioma russo, o fechamento de escolas russas, a supressão total da identidade de metade do país.

E quando o povo do Donbass começou a se mobilizar pacificamente para demandar a garantia de suas prerrogativas, ocupando praças e prédios públicos, Kiev respondeu com tiros. A repressão violenta contra civis começou primeiro. Nessas condições, o povo do Donbass se viu diante de apenas duas possibilidades: pegar em armas ou desaparecer enquanto povo.

E assim começou o longo martírio do Donbass, que viu os avanços iniciais da milícia formada ad hoc a partir de aventureiros, veteranos, guardas de trânsito, pais de família e extremistas políticos, o seu recuo diante dos avanços da Força Armada da Ucrânia na operação dita “antiterrorista”, a batalha do aeroporto, o aumento no fluxo de voluntários vindos da Rússia e equipamentos doados por apoiadores, o caldeirão de Debaltsevo e os Acordos de Minsk. Depois, o limbo, a zona cinzenta que não era nem paz, nem guerra, com Kiev ainda bombardeando esporadicamente o Donbass. Até que começou a operação militar especial.

Em primeiro lugar, é necessário dizer que para qualquer habitante típico de uma grande cidade abastada das Américas e Europa, é inimaginável viver nessas condições.

Entendam: por “condições”, não estou falando aqui meramente em carestia econômica. O povo do Donbass come normalmente – e come bem –, vai ao shopping, faz compras no supermercado, dirige seus carros, vai a salões de beleza, frequenta a escola e a universidade (excetuando alguns lugares, em que tem sido mais seguro manter as aulas virtuais), festeja, vai a danceterias.

A “condição” fundamental à qual me refiro é a consciência constante da morte. Estive em lugares bombardeados no centro de Donetsk, longe de qualquer possível alvo militar – e toda a cidade segue sob o alcance de certos drones e dos melhores mísseis à disposição de Kiev. Nesse sentido, uma “companheira” constante da minha viagem foi a Morte, não só pela possibilidade de que eu mesmo poderia morrer a qualquer momento, mas pela percepção de que cada cidadão do Donbass tem a Morte como companheira.

Qualquer um pode morrer estando parado num ponto de ônibus, numa fila de banco, indo até ao mercado ou simplesmente descansando em uma praça ou parte – tal como já aconteceu várias vezes, centenas de vezes, ao longo dos últimos 11 anos. Esses cenários não são meramente hipotéticos, todos eles efetivamente ocorreram, diversas vezes, nesse espaço de tempo.

Na bolha de conforto e alienação da vida urbana nas Américas e Europa não vivemos assim. Ao contrário, vivemos no permanente temor e fuga da morte, tentando afastá-la por todos os meios possíveis e imagináveis – inclusive os indignos – das cirurgias plásticas feitas por mulheres da classe média desesperadas por simular juventude às mais avançadas pretensões transumanistas de cientistas, oligarcas e burocratas, ansiosos por se transformarem em tecnomúmias imortais.

Esquecemos que a Morte existe até que ela nos atinge de maneira repentina, fulminante e, aparentemente, aleatória, caótica, injusta – injusta porque é como se ela viesse sem ser anunciada, inesperada, como se ela já não fosse sempre uma certeza implícita na vida, e uma possibilidade permanente a cada segundo.

O povo do Donbass, portanto, vive na consciência permanente da Morte e não esquece a Morte em momento algum. Qualquer um pode morrer a qualquer momento, todos têm familiares ou amigos que já morreram – como civis ou militares – e toda a região é plena da memória viva de heróis e comandantes que sacrificaram suas vidas pela liberdade do povo e da terra.

Poderíamos aqui dar até mesmo um salto para fazer também uma alusão ao bushido japonês, ou mais especificamente ao Hagakure, e a sua recomendação da meditação diária sobre a morte inevitável. Quisesse ou não, o Ocidente impôs ao Donbass essa meditação como uma obrigação.

O resultado é um povo que – ainda mais se compararmos com o espírito eminentemente de “classe média cosmopolita” de Moscou – é mais duro, mais puro, mais enraizado e, finalmente, mais “filosófico” nesse sentido fundamental da plenitude da experiência humana através da contemplação constante da Morte.

A guerra teve sucesso onde os déspotas e imperadores fracassaram: todo um povo de estoicos surgiu, não na Grécia ou na Roma, mas no Donbass.

Naturalmente, essa é a questão principal, mas aqui poderíamos também nos estender ao fato de que o povo vive com a água cortada pela Ucrânia há anos, desde 2022, e há dificuldades de todos os tipos, como com eletricidade e internet, por mais que a Rússia tenha conseguido majoritariamente estabilizar as condições de vida desde o início da operação militar especial.

Ainda assim, no coração do povo daquela pequena, mas importante, região, especialmente dos jovens que encontramos na Universidade de Donetsk, ainda há a esperança de um futuro mais livre e mais seguro, enfim, um futuro melhor.

The views of individual contributors do not necessarily represent those of the Strategic Culture Foundation.

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