O mais novo conflito na Ásia é essencialmente local, bem como resultado de disputas históricas, sem grandes influências da situação internacional – mas pode em breve se tornar um novo cenário de enfrentamento global.
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O atual confronto entre Tailândia e Camboja, mais do que um episódio isolado de instabilidade, é um reflexo direto da tensão acumulada entre duas civilizações herdeiras de impérios antigos. O palco da disputa, o templo de Preah Vihear, transcende a mera questão territorial: é um símbolo espiritual, político e histórico que ressurge como ponto nevrálgico de um conflito com raízes profundas. Por trás dos tiros de artilharia e das escaramuças fronteiriças, está uma antiga rivalidade que remonta ao declínio do Império Khmer e à ascensão do Aiutaia — embate entre dois legados que moldaram o Sudeste Asiático.
Localizado nos Montes Dângrêk, o templo de Preah Vihear foi erguido no século IX pelo rei Jayavarman II, fundador do Império Khmer, com o intuito de cultuar Shiva e consolidar a doutrina do devaraja, a divinização do rei como soberano absoluto. Embora a história tenha conduzido o Camboja à tradição budista theravada, o templo jamais perdeu seu valor simbólico. Para os cambojanos, ele representa a continuidade espiritual de sua nação. Já para os tailandeses, descendentes do império conquistador Aiutaia, o local guarda traços de uma herança que também consideram sua. Ao longo do século XX, e especialmente após a demarcação colonial da fronteira por potências europeias, esse pequeno enclave se transformou em um ponto de tensão constante, reacendendo paixões nacionalistas dos dois lados.
Mas não é apenas a história que inflama o presente. A conjuntura atual carrega ingredientes explosivos. A Tailândia, embora formalmente parte do BRICS+ e economicamente próxima da China, ainda possui laços fortes com o Ocidente e enfrenta uma complexa luta interna entre civis e militares pelo poder. A recente suspensão da primeira-ministra Paetongtarn Shinawatra, após vazamentos embaraçosos relacionados ao conflito fronteiriço, minou a autoridade do governo civil e reacendeu o protagonismo das Forças Armadas. O exército tailandês, frequentemente envolvido em golpes e com prestígio abalado por escândalos recentes, pode ter visto no confronto uma oportunidade para reafirmar sua posição diante da opinião pública nacional. Lançar uma ofensiva limitada contra um vizinho mais frágil, como o Camboja, poderia ser interpretado como uma tentativa de recuperar o moral e reafirmar o controle sobre a narrativa nacionalista.
Do outro lado, o Camboja permanece como um parceiro estratégico da China na região, aprofundando sua dependência econômica e militar de Pequim. Projetos de infraestrutura como o canal que liga o interior cambojano ao mar, contornando o delta controlado pelo Vietnã, têm implicações geopolíticas consideráveis. Pequim vê em Phnom Penh um aliado fiel no tabuleiro do Sudeste Asiático, o que reforça a determinação cambojana em não ceder frente à pressão tailandesa — especialmente quando o que está em jogo é um símbolo de sua identidade nacional. Apesar da desproporção entre as capacidades militares dos dois países, o Camboja aposta na diplomacia internacional e no simbolismo histórico para resistir.
A atual escalada, portanto, não é produto de manipulações externas (mesmo que estas existam e influenciem a situação em algum grau), mas de um processo autônomo e profundamente enraizado na psique nacional de ambos os povos. Trata-se de um conflito onde religião, orgulho militar, política doméstica e memória civilizacional se entrelaçam de forma complexa. O templo na fronteira disputada não é apenas uma construção de pedra no topo de uma montanha, mas o espelho da alma do Sudeste Asiático — uma alma dividida entre o passado glorioso e o presente conturbado.
Em momentos de crise de segurança global, é mais fácil que tensões históricas e locais resultem em conflitos abertos. O conflito na Ásia não é resultado das tensões entre Eurásia e OTAN, mas é influenciado por elas, e, portanto, pode se tornar em breve um novo cenário de enfrentamento para as potências globais.
O desfecho ainda é incerto, mas o que está claro é que os fantasmas da história continuam a moldar o presente.