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Eduardo Vasco
June 28, 2025
© Photo: Public domain

O Deep State e os falcões descobriram o Calcanhar de Aquiles de Trump.

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A agressão israelense ao Irã obrigou os Estados Unidos a tomarem alguma ação mais brusca. Alguma ruptura dentro do governo Trump deveria necessariamente ocorrer. E foi o que aconteceu.

Trump passou anos defendendo o isolamento americano dos conflitos internacionais, o que lhe rendeu o apoio de milhões de cidadãos e duas vitórias presidenciais. Já neste segundo mandato, garantiu que cumpriria a sua promessa e inseriu simpatizantes do America First em posições importantes do governo.

O presidente reaproximou os Estados Unidos da Rússia, dando um giro de 90º nas relações bilaterais (180º seria impossível, e nem Trump propunha fazê-lo) e ameaçando abandonar Zelensky à sua própria sorte. Mas as forças ocultas do Deep State demonstraram seu poderio. A postura autônoma de Trump alcançou o seu ápice com a humilhação do ucraniano na Casa Branca e isso acendeu o sinal vermelho para os executores da velha política imperialista. Desde aquele momento, eles redobraram os esforços para impedir qualquer possibilidade de ruptura da política imperialista e de ascensão do America First.

A posição do governo sobre a guerra por procuração na Ucrânia voltou a apresentar uma maior ambiguidade, cedendo aos poucos à pressão dos falcões. Porém, o retorno à mesa de negociações sobre o programa nuclear iraniano parecia acender uma luz no fim do túnel para os adeptos do America First. Trump sinalizava uma indisposição com as ações beligerantes de Israel, tendo selado acordos táticos com o Hamas e os Houthis – passando por cima de Netanyahu.

Os elementos do Deep State e do expansionismo que haviam percebido a fragilidade da abordagem ambígua do trumpismo sobre a Ucrânia entenderam que estava chegando a hora de um golpe mais duro. A divisão nas fileiras do governo se tornava mais evidente, explicitada sobretudo com a crise envolvendo a saída de Elon Musk e seu debate público com Steve Bannon e depois com o próprio Trump.

A agressão de Israel ao Irã era a grande oportunidade para aplicar um xeque em Trump e sua base isolacionista. O republicano sempre se apresentou como um feroz aliado de Israel e de seu governo de extrema-direita. No primeiro mandato, transferiu a embaixada americana de Tel Aviv para Jerusalém, apoiou abertamente a expansão dos assentamentos, reconheceu as Colinas de Golã como território israelense, cortou parte do financiamento à UNRWA e promoveu os Acordos de Abraão. Ele prometeu dar continuidade a essa política privilegiada em seu segundo mandato. Não atender às súplicas de Netanyahu por uma entrada na guerra contra o Irã seria negar veementemente toda a sua política anterior e os seus discursos públicos inflamados, bem como o apoio de grande parte do lobby sionista.

O Deep State e os falcões descobriram o Calcanhar de Aquiles de Trump.

Israel é o 51º estado norte-americano. Foi criado para servir como uma espécie de base militar e administrativa pelos banqueiros e grandes capitalistas norte-americanos e britânicos a fim de garantir a plena execução dos interesses imperialistas no Oriente Médio. O estabelecimento e a manutenção dessa base são necessários, dada a importância daquela região para a extração de riquezas e a circulação da produção, ou seja, o comércio internacional. O funcionamento do sistema capitalista mundial é profundamente dependente do domínio sobre aquela região. Se os Estados Unidos – o líder desse sistema – perderem o controle do Oriente Médio, o sistema capitalista mundial poderá entrar em um rápido colapso.

Não era possível ficar indiferente a uma situação que poderia levar à maior onda de instabilidade jamais vista naquela região do mundo, colocando em risco todo o sistema capitalista mundial. Todos deveriam tomar partido. No frigir dos ovos, Trump escolheu o seu lado. E não poderia ser diferente: America First, apesar da tática isolacionista, é uma política de manutenção da dominação dos Estados Unidos sobre o sistema capitalista mundial e, portanto, do caráter imperialista do regime americano.

Trump cedeu e mostrou fraqueza. Teve de recorrer aos próprios iranianos e aos russos para contornar a situação de escalada militar, ao mesmo tempo em que saciava parcialmente a fome dos falcões. O imperialismo americano, como um todo, mostrou mais uma vez sinais de fraqueza. O Irã poderá continuar enriquecendo urânio e se aliará de forma ainda mais próxima à Rússia – e, claro, à China. Moscou, por sua vez, percebe as necessidades bélicas do Deep State e poderá fazer um jogo ainda mais duro na Ucrânia. Pequim vê o mesmo com relação a Taiwan, por enquanto fora do radar imediato da máquina de guerra norte-americana.

Ainda que a guerra Israel/EUA-Irã dê uma trégua e Donald Trump consiga conter as manobras mais ousadas dos falcões, a política de isolamento, apoiada pela maioria do povo americano nas eleições de 2016 e 2024, já sofreu um golpe dificilmente reparável. E Donald Trump poderá sair sensivelmente desgastado, com uma imagem abalada frente aos seus seguidores.

Segundo uma pesquisa The Economist/YouGov, 60% dos americanos se opõem ao envolvimento na guerra contra o Irã e apenas 19% dos eleitores de Trump dão o seu apoio à ideia. Já uma pesquisa Washington Post/SSRS apresentou 25% de apoio e 45% de oposição a um ataque contra o programa nuclear iraniano. G. Elliott Morris fez uma comparação com o apoio a intervenções militares anteriores e revelou que o apoio a elas tem reduzido drasticamente neste século.

Como é possível que o apoio a uma intervenção contra o Irã seja tão baixo se, já durante as campanhas de guerra no Afeganistão, no Iraque, na Síria e na Líbia o grande vilão apresentado como a causa de todo o mal no Oriente Médio era o próprio Irã? Não deveriam os americanos estar ansiosos pela destruição desse regime pária e membro fundamental do Eixo do Mal?

Os fortes protestos que se mantêm desde o final do governo Biden contra o genocídio patrocinado pelos EUA em Gaza são uma expressão concreta do sentimento crescente entre o povo americano. Mesmo os falcões mais lunáticos precisam levar em conta essa realidade antes de executar os seus planos de caos mundial. Os riscos de uma colossal desestabilização interna são enormes.

A economia dos Estados Unidos, chave para o entendimento das razões das políticas internas e externas adotadas pelos seus sucessivos governos, apresenta um declínio do ponto de vista histórico, sobretudo a partir da crise de 2008. Trump é a representação de uma tendência da classe capitalista americana, que sente a necessidade de retomar a industrialização e o rearmamento a partir de uma política voltada para dentro, para depois retornar de maneira triunfante ao grande jogo internacional. Porém, dada a situação de superpotência hegemônica na arena mundial, os Estados Unidos não podem se dar ao luxo de se retirar do resto do mundo – como demonstrado pelo desastre das tarifas “industrializantes” de Trump, os EUA são dependentes da riqueza produzida mundialmente.

Além do mais, quanto maior o isolamento dos EUA, maiores as possibilidades de independência dos países que hoje estão submetidos ao seu domínio – especialmente no Oriente Médio, como explicado anteriormente. O isolamento, ainda que relativo, dos Estados Unidos, como russos e chineses sabem há tempos, enfraquece o poderio imperialista norte-americano e, com ele, o conjunto do sistema imperialista mundial.

Mas a manutenção da velha política de intervenções imperialistas também apresenta claros sinais de desgaste – a própria ascensão, nos últimos anos, do movimento America First é um deles. No fundo, a condição de superpotência imperialista hegemônica e onipresente dos Estados Unidos mostra-se claramente insustentável. Parte dos capitalistas americanos sabe disso, por isso o desespero.

De fato, o governo Trump é um governo de desespero do regime americano. Daí ele ser tão caótico e imprevisível.

O grande problema é que esse caos e imprevisibilidade da potência dominante no mundo, com bases militares espalhadas por todo o globo e quase 2.000 ogivas nucleares prontas para serem usadas a qualquer momento, é um perigo para o mundo. Mas não resta alternativa senão minar esse poderio e esse sistema decadente, dar-lhe um empurrãozinho em direção ao abismo e lutar para que ele seja destruído o mais rápido possível, antes que adote uma espécie de Opção Sansão israelense.

É o que está fazendo o Eixo da Resistência, e o que deveria ser feito nas outras partes do globo, incluindo dentro dos Estados Unidos.

Publicado originalmente por Fundação Cultura Estratégica

 

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Trump e a fragilidade estrategica do imperialismo

O Deep State e os falcões descobriram o Calcanhar de Aquiles de Trump.

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A agressão israelense ao Irã obrigou os Estados Unidos a tomarem alguma ação mais brusca. Alguma ruptura dentro do governo Trump deveria necessariamente ocorrer. E foi o que aconteceu.

Trump passou anos defendendo o isolamento americano dos conflitos internacionais, o que lhe rendeu o apoio de milhões de cidadãos e duas vitórias presidenciais. Já neste segundo mandato, garantiu que cumpriria a sua promessa e inseriu simpatizantes do America First em posições importantes do governo.

O presidente reaproximou os Estados Unidos da Rússia, dando um giro de 90º nas relações bilaterais (180º seria impossível, e nem Trump propunha fazê-lo) e ameaçando abandonar Zelensky à sua própria sorte. Mas as forças ocultas do Deep State demonstraram seu poderio. A postura autônoma de Trump alcançou o seu ápice com a humilhação do ucraniano na Casa Branca e isso acendeu o sinal vermelho para os executores da velha política imperialista. Desde aquele momento, eles redobraram os esforços para impedir qualquer possibilidade de ruptura da política imperialista e de ascensão do America First.

A posição do governo sobre a guerra por procuração na Ucrânia voltou a apresentar uma maior ambiguidade, cedendo aos poucos à pressão dos falcões. Porém, o retorno à mesa de negociações sobre o programa nuclear iraniano parecia acender uma luz no fim do túnel para os adeptos do America First. Trump sinalizava uma indisposição com as ações beligerantes de Israel, tendo selado acordos táticos com o Hamas e os Houthis – passando por cima de Netanyahu.

Os elementos do Deep State e do expansionismo que haviam percebido a fragilidade da abordagem ambígua do trumpismo sobre a Ucrânia entenderam que estava chegando a hora de um golpe mais duro. A divisão nas fileiras do governo se tornava mais evidente, explicitada sobretudo com a crise envolvendo a saída de Elon Musk e seu debate público com Steve Bannon e depois com o próprio Trump.

A agressão de Israel ao Irã era a grande oportunidade para aplicar um xeque em Trump e sua base isolacionista. O republicano sempre se apresentou como um feroz aliado de Israel e de seu governo de extrema-direita. No primeiro mandato, transferiu a embaixada americana de Tel Aviv para Jerusalém, apoiou abertamente a expansão dos assentamentos, reconheceu as Colinas de Golã como território israelense, cortou parte do financiamento à UNRWA e promoveu os Acordos de Abraão. Ele prometeu dar continuidade a essa política privilegiada em seu segundo mandato. Não atender às súplicas de Netanyahu por uma entrada na guerra contra o Irã seria negar veementemente toda a sua política anterior e os seus discursos públicos inflamados, bem como o apoio de grande parte do lobby sionista.

O Deep State e os falcões descobriram o Calcanhar de Aquiles de Trump.

Israel é o 51º estado norte-americano. Foi criado para servir como uma espécie de base militar e administrativa pelos banqueiros e grandes capitalistas norte-americanos e britânicos a fim de garantir a plena execução dos interesses imperialistas no Oriente Médio. O estabelecimento e a manutenção dessa base são necessários, dada a importância daquela região para a extração de riquezas e a circulação da produção, ou seja, o comércio internacional. O funcionamento do sistema capitalista mundial é profundamente dependente do domínio sobre aquela região. Se os Estados Unidos – o líder desse sistema – perderem o controle do Oriente Médio, o sistema capitalista mundial poderá entrar em um rápido colapso.

Não era possível ficar indiferente a uma situação que poderia levar à maior onda de instabilidade jamais vista naquela região do mundo, colocando em risco todo o sistema capitalista mundial. Todos deveriam tomar partido. No frigir dos ovos, Trump escolheu o seu lado. E não poderia ser diferente: America First, apesar da tática isolacionista, é uma política de manutenção da dominação dos Estados Unidos sobre o sistema capitalista mundial e, portanto, do caráter imperialista do regime americano.

Trump cedeu e mostrou fraqueza. Teve de recorrer aos próprios iranianos e aos russos para contornar a situação de escalada militar, ao mesmo tempo em que saciava parcialmente a fome dos falcões. O imperialismo americano, como um todo, mostrou mais uma vez sinais de fraqueza. O Irã poderá continuar enriquecendo urânio e se aliará de forma ainda mais próxima à Rússia – e, claro, à China. Moscou, por sua vez, percebe as necessidades bélicas do Deep State e poderá fazer um jogo ainda mais duro na Ucrânia. Pequim vê o mesmo com relação a Taiwan, por enquanto fora do radar imediato da máquina de guerra norte-americana.

Ainda que a guerra Israel/EUA-Irã dê uma trégua e Donald Trump consiga conter as manobras mais ousadas dos falcões, a política de isolamento, apoiada pela maioria do povo americano nas eleições de 2016 e 2024, já sofreu um golpe dificilmente reparável. E Donald Trump poderá sair sensivelmente desgastado, com uma imagem abalada frente aos seus seguidores.

Segundo uma pesquisa The Economist/YouGov, 60% dos americanos se opõem ao envolvimento na guerra contra o Irã e apenas 19% dos eleitores de Trump dão o seu apoio à ideia. Já uma pesquisa Washington Post/SSRS apresentou 25% de apoio e 45% de oposição a um ataque contra o programa nuclear iraniano. G. Elliott Morris fez uma comparação com o apoio a intervenções militares anteriores e revelou que o apoio a elas tem reduzido drasticamente neste século.

Como é possível que o apoio a uma intervenção contra o Irã seja tão baixo se, já durante as campanhas de guerra no Afeganistão, no Iraque, na Síria e na Líbia o grande vilão apresentado como a causa de todo o mal no Oriente Médio era o próprio Irã? Não deveriam os americanos estar ansiosos pela destruição desse regime pária e membro fundamental do Eixo do Mal?

Os fortes protestos que se mantêm desde o final do governo Biden contra o genocídio patrocinado pelos EUA em Gaza são uma expressão concreta do sentimento crescente entre o povo americano. Mesmo os falcões mais lunáticos precisam levar em conta essa realidade antes de executar os seus planos de caos mundial. Os riscos de uma colossal desestabilização interna são enormes.

A economia dos Estados Unidos, chave para o entendimento das razões das políticas internas e externas adotadas pelos seus sucessivos governos, apresenta um declínio do ponto de vista histórico, sobretudo a partir da crise de 2008. Trump é a representação de uma tendência da classe capitalista americana, que sente a necessidade de retomar a industrialização e o rearmamento a partir de uma política voltada para dentro, para depois retornar de maneira triunfante ao grande jogo internacional. Porém, dada a situação de superpotência hegemônica na arena mundial, os Estados Unidos não podem se dar ao luxo de se retirar do resto do mundo – como demonstrado pelo desastre das tarifas “industrializantes” de Trump, os EUA são dependentes da riqueza produzida mundialmente.

Além do mais, quanto maior o isolamento dos EUA, maiores as possibilidades de independência dos países que hoje estão submetidos ao seu domínio – especialmente no Oriente Médio, como explicado anteriormente. O isolamento, ainda que relativo, dos Estados Unidos, como russos e chineses sabem há tempos, enfraquece o poderio imperialista norte-americano e, com ele, o conjunto do sistema imperialista mundial.

Mas a manutenção da velha política de intervenções imperialistas também apresenta claros sinais de desgaste – a própria ascensão, nos últimos anos, do movimento America First é um deles. No fundo, a condição de superpotência imperialista hegemônica e onipresente dos Estados Unidos mostra-se claramente insustentável. Parte dos capitalistas americanos sabe disso, por isso o desespero.

De fato, o governo Trump é um governo de desespero do regime americano. Daí ele ser tão caótico e imprevisível.

O grande problema é que esse caos e imprevisibilidade da potência dominante no mundo, com bases militares espalhadas por todo o globo e quase 2.000 ogivas nucleares prontas para serem usadas a qualquer momento, é um perigo para o mundo. Mas não resta alternativa senão minar esse poderio e esse sistema decadente, dar-lhe um empurrãozinho em direção ao abismo e lutar para que ele seja destruído o mais rápido possível, antes que adote uma espécie de Opção Sansão israelense.

É o que está fazendo o Eixo da Resistência, e o que deveria ser feito nas outras partes do globo, incluindo dentro dos Estados Unidos.

Publicado originalmente por Fundação Cultura Estratégica