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O conceito de Narcoestado tem sido utilizado desde os anos 80 para designar países nos quais as organizações criminosas narcotraficantes tornaram-se tão poderosas, influentes e onipresentes, que seus agentes, interesses e dinheiro passam a perpassar a maioria das principais instituições do país. O termo foi usado para a Bolívia e o Panamá dos anos 80, mas tem sido mais comumente utilizado para descrever, também, o grau de poder dos cartéis colombianos e mexicanos em seus respectivos países.
Nesse sentido, quando se descobre que em um determinado país, por exemplo, organizações narcotraficantes financiam campanhas eleitorais (e conseguem eleger os seus favoritos) para cargos públicos, possuem o controle sobre atividades econômicas legais importantes, penetraram o Judiciário para garantir decisões judiciais favoráveis, e possuem outros níveis e expressões de influência (que podem se dar na religião, na cultura e ainda em outras áreas), então talvez estejamos diante de um Narcoestado.
Com base nisso é preocupante a situação brasileira.
Nascidas nos presídios, as principais e mais antigas organizações narcotraficantes brasileiras começaram basicamente como estruturas cooperativas de autodefesa e coordenação de criminosos condenados. Mas na medida em que seus membros voltaram às ruas e recrutavam ainda mais membros, elas foram gradualmente adquirindo um escopo surpreendentemente maior.
Aqui nós tomamos como exemplos paradigmáticos as organizações “Comando Vermelho” (CV) e “Primeiro Comando da Capital” (PCC), que são as maiores do Brasil e possuem ramificações internacionais. O PCC, particularmente, atua em 24 países e possui um faturamento anual de 1 bilhão de dólares.
De um modo geral, o CV e o PCC atuam como megacorporações dotadas de diversos departamentos e subdivisões, além de também terceirizarem funções para outras organizações criminosas. Ambas, também, tentam dominar o ciclo completo do narcotráfico, com envolvimento tanto na produção, no refino, no transporte, na exportação em atacado e na venda em varejo, além de dominarem territórios com bandos armados e controlarem, também, gangues que praticam outros crimes como roubos, sequestros, etc.
Se originalmente, essas facções apenas importavam drogas produzidas a partir de operações na Bolívia ou na Colômbia, atualmente elas próprias possuem grandes latifúndios dedicados à produção de drogas. Especialmente no Paraguai, mas também do lado brasileiro da fronteira. No Paraguai, particularmente, o PCC se impôs sobre traficantes locais e se tornou um dos principais proprietários de terras do país. Essas fazendas, especialmente as situadas no Brasil, aliás, não servem apenas para o plantio, mas também para operações de lavagem de dinheiro.
O PCC, ademais, penetrou o setor dos combustíveis no Brasil, de modo que hoje se estima que eles são proprietários de pouco mais de mil postos de gasolina e de 5 usinas de cana de açúcar (as quais produzem álcool). Em outras palavras, o PCC controla aproximadamente 3% dos postos de gasolina de um país como o Brasil.
Quanto ao âmbito político, em 2018 investigadores apontaram para a presença de pelo menos 20 candidatos no Rio de Janeiro e em São Paulo que eram financiados pelo narcotráfico, mas o problema parece ser bem mais amplo. Uma investigação de 2024 revelou que o PCC havia desembolsado quase 2 bilhões de dólares para financiar campanhas eleitorais, utilizando para isso uma fintech criada por eles mesmos. Nisso, um de seus principais objetivos era ganhar licitações de obras públicas para outras empresas sob seu controle.
Talvez ainda mais grave é o esforço das organizações criminosas, especialmente o PCC, para penetrar o Judiciário e outras instituições ligadas à aplicação ou garantia da lei. Não se trata de uma metodologia fundada no suborno de juízes já formados, e sim numa estratégia por meio da qual o PCC paga os estudos de jovens e financia a sua preparação para que eles sejam aprovados nos exames públicos para juiz, promotor ou policial. Considerando que essa estratégia está ativa há alguns anos, não há, ainda, como estimar se ela já teve sucesso e, portanto, quantos agentes do Estado teriam sido treinados desde a juventude para ocupar seus cargos em benefício do narcotráfico.
É por isso que a informação recente de que o PCC e o CV teriam organizado uma trégua preocupa bastante as autoridades brasileiras. Ambas organizações se enfrentam de forma sangrenta há mais de 10 anos, mas decidiram por fim ao conflito para coordenar melhor a sua atuação dentro dos presídios bem como para compartilhar rotas do narcotráfico (de modo geral, o PCC controla a rota meridional, enquanto disputa com o CV a rota amazônica). Se essa trégua se tornar uma aliança sólida, ter-se-á no Brasil basicamente uma estrutura monopolista controlando quase todo o submundo do crime de uma das maiores nações do mundo.
Para que se entenda a profundidade da situação, mesmo no âmbito musical o crime organizado foi capaz de penetrar abertamente. Cantores de funk ligados a facções criminosas estão se tornando cada vez mais famosos e populares no Brasil, com destaque para “Oruam”, filho de um dos principais chefes do Comando Vermelho. Apesar de cantar, em seus shows, “hinos” do CV, ele frequenta programas de TV e é convidado a tocar em grandes festivais de música (não raro, financiados com dinheiro público).
Em suma, é difícil confirmar se o Brasil já é um Narcoestado, mas parece indubitável que este risco existe, caso o país não assuma uma postura mais dura no combate ao crime organizado.