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Muito poucos sabem realmente o que aconteceu – e ainda está acontecendo – na Síria. Talvez não saibamos nunca o que de fato ocorreu. Só o que a maioria de nós pode fazer é especular e analisar com base nas informações públicas e na lógica. Às vezes a lógica é mais certeira que as informações.
O que é preciso ter em mente é que a eleição de Donald Trump mudou tudo. O Deep State americano não aceita que ele possa colocar em prática o que tem ventilado há muito tempo: retirar (ou ao menos reduzir a participação dos) os Estados Unidos do grande jogo geopolítico mundial. Isso seria um golpe quase fatal não apenas na dominação imperialista dos EUA, que já dura quase 80 anos, mas em todo o sistema imperialista internacional vigente desde o início do século passado.
Por isso o Deep State fez uma jogada perigosíssima – embora possa se tornar uma jogada de mestre: desencadeou uma série de ofensivas para deixar os Estados Unidos em uma situação tal que Trump não poderá voltar atrás. O que poderia, até mesmo, causar uma nova guerra mundial, inclusive nuclear.
Episódios interligados de grande magnitude ocorreram, então, em pontos nevrálgicos da guerra fria (cada vez menos fria) com russos e chineses:
- A autorização para que a Ucrânia utilize os ATACMS contra território russo;
- As primeiras utilizações dos ATACMS pelos ucranianos dentro da Rússia;
- A tentativa de golpe militar na Coreia do Sul;
- A ofensiva fulminante dos “rebeldes” na Síria.
O avanço no front do Donbass e a revelação do Oreshnik certamente são cartas importantes dos russos para uma dissuasão. Contudo, há um sentimento no governo de que a guerra precisa terminar o quanto antes e o risco de duas novas guerras totais nas adjacências de seu território (Síria e Coreia) elevaram o sinal de alerta no Kremlin. Ao mesmo tempo, os anúncios frenéticos de envio US$ 725 milhões e US$ 988 milhões, respectivamente, de ajuda militar à Ucrânia nas próximas semanas, bem como dos gastos de US$ 841 bilhões em defesa para 2025, mostraram aos russos que o Deep State é mesmo capaz de partir para as vias de fato e iniciar a Terceira Guerra Mundial.
Sabendo que Vladimir Putin já demonstrou que está disposto a lutar pela Ucrânia, custe o que custar, e percebendo a vantagem dos russos sobre o terreno, a escalada no final do governo Joe Biden teria servido como um forte poder de barganha para que o imperialismo garantisse o domínio em outras frentes. Pela primeira vez, Vladimir Zelensky falou em aceitar um diálogo com a Rússia e mesmo em buscar uma paz acordada. Em Paris, Trump se reuniu com o líder ucraniano e reafirmou a surpreendente disposição de Kiev por uma possível solução pacífica a curto prazo.
É possível que o Deep State tenha realizado toda essa pressão para obrigar Putin a abrir mão da Síria caso queira paz na Ucrânia. Os imperialistas mostraram para Moscou que estão dispostos a atear fogo no mundo para proteger os seus interesses e os russos tiveram de ceder posições no Oriente Médio em troca de garantias no leste europeu.
Afinal de contas, seria extremamente custoso manter o regime de Bashar al-Assad. Após 13 anos resistindo a uma agressão imperialista, a Síria já estava cansada. Assad não tinha muita popularidade entre a população nem entre a burocracia estatal e a burguesia nacional. A crise econômica era angustiante e as forças armadas estavam devastadas. Os russos só teriam a perder intervindo, caso os americanos quisessem mesmo derrubar Assad de uma vez por todas. Não teriam condições de travar duas guerras ao mesmo tempo.
Tudo indica que o regime de Assad estava mesmo desmoronando. Bastava apenas um assopro. E ele veio de forma avassaladora, com uma aliança entre EUA, Turquia, Israel e Catar. Russos e iranianos tiveram de aceitar. Mas os russos ao menos conseguiram tomar parte no acordo. Repeliram as forças “rebeldes” nas proximidades de Latakia e Tartus, para proteger suas bases naval e aérea, mas certamente a inteligência sabia que Assad cairia sem intervenção russa e o ajudou a fugir. Enquanto a embaixada iraniana foi invadida e destruída pelos terroristas, a embaixada russa saiu ilesa.
O novo regime já anunciou que irá tratar a Rússia como um parceiro como os outros. As informações indicam que as bases militares serão mantidas. A mídia russa já não chama mais os terroristas de terroristas, como havia feito até o final da semana. Chama agora de “oposição armada”. A bandeira do novo regime já foi hasteada na embaixada síria em Moscou, sem nenhum inconveniente. Ao contrário da tendência em vários países cujos regimes o imperialismo quer derrubar, a oposição síria não demonstrou em nenhum momento ser antirrussa durante essa ofensiva fatal. Comparem o que se vê na Geórgia, onde um governo muito menos influenciado por Moscou é rotulado de fantoche do Kremlin e os manifestantes tentam bater em qualquer um que fala russo.
A maior parte da burocracia estatal do antigo regime (inclusive os diplomatas na Rússia) será preservada. O primeiro-ministro, Mohammed Ghazi al-Jalali, permanecerá no cargo. Ele foi nomeado por Assad no dia 24 de setembro e não descarto a possibilidade de que ali já houvesse uma manobra no sentido de mudar o regime “pacificamente”. Sua manutenção no posto pode ter sido uma condição dos russos para permitir a saída de Assad.
A situação dos russos não é a mesma de 2015. A necessária intervenção na Ucrânia consumiu muito das forças armadas e de sua economia. Não era possível salvar Assad mais uma vez. Entre a Síria e a Ucrânia, obviamente os russos escolheriam a Ucrânia. Os russos sempre dialogaram com muitos partidos em todos os lugares onde estão, e na Síria não é diferente. Assad era a primeira opção, mas não a única. Agora tentarão preservar minimamente os seus interesses, principalmente na costa do Mediterrâneo, e neutralizar os Estados Unidos na medida do possível. Veremos o que ocorrerá na Geórgia, próxima dali.
A herança soviética, desde Stálin, também é bem valorizada pela burocracia russa atual. Quando era necessário rifar um país aliado para preservar outro mais importante, Moscou nunca hesitou. O exemplo mais famoso foi a entrega da Itália, principalmente, e de alguns outros países da Europa Ocidental, aos Estados Unidos e à burguesia imperialista europeia, salvando-os da revolução proletária, para obter deles a garantia de que não interfeririam na Europa Oriental. De fato, a divisão do mundo após a Segunda Guerra Mundial em zonas de influência foi uma marca da diplomacia soviética para preservar os interesses da casta burocrática de Moscou.
Aquilo foi uma traição de Stálin aos povos do mundo todo. Mas garantiriam a sobrevivência da burocracia soviética por mais 45 anos. O atual governo de Putin não está alicerçado sobre as bases de um Estado proletário, fruto de uma revolução socialista. Logo, não tem nenhuma obrigação de salvar ninguém. Luta pelos interesses do novo Estado russo, que é mais fraco que o soviético de Stálin. É compreensível – mesmo que não se concorde – que tenha aberto mão da Síria para defender suas posições na Ucrânia contra a agressão da OTAN.
Isso não significa que não tenha sido um equívoco. Muito menos que não tenha sido uma derrota importantíssima. Nem, tampouco, que contenha os impulsos guerreiros e caóticos do imperialismo americano.