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Na última semana, a Ministra da Segurança da Argentina, Patricia Bullrich, encaminhou um pedido de prisão internacional contra um homem chamado Hussein Ahmad Karaki, que seria o chefe do Hezbollah na América Ibérica. Segundo o governo argentino, ele teria coordenado uma ação de ataques contra sinagogas no Brasil, o que teria sido impedido em novembro de 2023, com “colaboração” dos governos dos EUA, de Israel e da Argentina.
Para aqueles que já se esqueceram dos eventos mencionados, em novembro de 2023, após uma “investigação” que teria sido iniciada com informações fornecidas por Israel e pelos EUA, a Polícia Federal brasileira teria prendido 4 cidadãos brasileiros, sob a acusação de estarem envolvidos no recrutamento de pessoas pelo Hezbollah para a prática de atentados terroristas em território brasileiro.
Segundo as informações disponibilizadas publicamente, não está realmente claro quais seriam os vínculos concretos com o Hezbollah, nem quais são as provas de que estariam planejando atentados no Brasil. Segundo declarações oficiais do governo israelense, foi Tel-Aviv que forneceu as informações e os indícios, e a PF agiu confiando nas informações israelenses.
De fato, não se pode excluir algum grau de envolvimento entre os presos e o Hezbollah, que possui vínculos com alguns empresários libaneses-brasileiros e que contribuem economicamente para financiar o partido. Mas considerando que o Brasil não considera o Hezbollah um grupo terrorista e que o país nunca hostilizou o partido libanês, quais seriam, objetivamente, os ganhos do Hezbollah (engajado em uma batalha de vida ou morte neste instante) realizando atentados a bomba em sinagogas brasileiras? De que forma isso avançaria com os objetivos do Hezbollah?
A própria divulgação do vínculo com o Hezbollah passou, de forma direta, do Estado de Israel para a mídia brasileira, enquanto a PF inicialmente não havia mencionado com quem os presos estariam vinculados.
O modus operandi, ademais, não se assemelha a qualquer padrão reconhecível nas ações passadas do Hezbollah. A tese com a qual a PF trabalha é a de que pessoas com passado criminoso no Brasil teriam sido contatadas, recebido uma viagem com tudo pago para o Líbano e, lá, teriam passado por uma triagem para efetivamente se unir ao Hezbollah e retornar ao Brasil para atacar sinagogas.
Um dos suspeitos, porém, afirma que foi ao Líbano para negociar ouro e outras mercadorias. Nesse sentido, se é que existe algum vínculo real com o Hezbollah, o mais provável é que se trate de elementos do setor empresarial e financeiro do grupo. A alegação israelense de “planejamento de atentados terroristas” pode muito bem ser uma invenção para impulsionar as autoridades brasileiras a agirem rapidamente.
Esse tipo de relação, no qual a inteligência israelense (ou a estadunidense) aparece com “informações” e a Polícia Federal segue com poucos questionamentos, parece ter se tornado razoavelmente normal recentemente. Há 1 mês a PF vetou, de forma autônoma, o retorno de alguns libaneses-brasileiros ao Brasil porque eles constavam em uma lista de “suspeitos de pertencimento ao Hezbollah” da Interpol e de outros bancos de dados ocidentais.
Quando apontamos que a tesa com a qual se trabalha nessa investigação é problemática por não corresponder ao histórico conhecido do Hezbollah, é comum que todos se apressem rapidamente para apontar para o atentado à Embaixada de Israel na Argentina, em 1992, e para o atentado à AMIA (Associação Mutual Israelita Argentina) em 1994.
Segundo a versão “popular” desses atentados, defendida pelas mídias de massa, pelo governo de Israel, pelo governo dos EUA e por seus simpatizantes ideológicos ao redor do mundo, esses atentados a bomba teriam sido realizados pelo Hezbollah com suporte financeiro e logístico do Irã.
O problema é que as investigações sobre estes casos nunca foram realmente concluídas, e o FBI, a CIA, a NSA e o Mossad interferiram em cada uma das etapas da investigação argentina, além de executarem as suas próprias investigações paralelas, não raro resultando, todas elas, em alegações contraditórias.
A Wikileaks aponta que os oficiais do FBI que atuavam na Embaixada dos EUA em Buenos Aires pressionaram a promotoria argentina a não investigar autoridades argentinas que podem ter estado envolvidas no desvio da investigação durante as primeiras etapas. Aparentemente, os EUA estavam já com uma narrativa pronta (essa, que foi tornada “oficial” pela mídia de massa) e estavam incomodados com quaisquer linhas investigativas que não servissem para confirma-la.
É interessante que as relações irano-argentinas vinham se desenvolvendo positivamente antes dos atentados, com a assinatura, inclusive, de um acordo de colaboração nuclear – o único acordo do tipo que o Irã tinha com uma nação estrangeira. É importante apontar isso porque o acordo nuclear Brasil-Iraque dos anos 70-80 foi motivo suficiente para o assassinato do Tenente-Coronel Albano do Amarante pelo Mossad.
Apesar de ser necessário apontar que a Argentina, sob Carlos Menem, já assumia uma postura ambígua – inclusive com uma participação na Guerra do Golfo – permanece um fato que os atentados conduziram inevitavelmente a um resfriamento das relações Argentina-Irã. De fato, o único motivo pelo qual a categorização do Hezbollah como grupo terrorista levou 25 anos foram as inconstâncias da investigação e o fato de que no período Kirchner a disposição argentina de colaborar com os EUA e Israel nessa questão diminuiu.
Foi diferente no caso do atentado a bomba em Burgas, Bulgária, em 2012. Em menos de 1 anos a União Europeia estaria categorizando o Hezbollah como grupo terrorista. Mas neste caso específico o Mossad e o Shin Bet praticamente assumiram unilateralmente o controle das investigações, apresentado o resultado praticamente concluído para as autoridades búlgaras.
É curioso como esporadicamente o Hezbollah supostamente realiza atentados terroristas em países outrora neutros ou razoavelmente amistosos, com Israel e os EUA sempre se envolvendo na investigação, e o resultado final acabando sempre sendo aquilo que é mais conveniente para esses países.
Dessa forma, conhecendo esse histórico, as acusações feitas pelo novo governo argentino, o mais sionista e atlantista de sua história, acabam assumindo uma tonalidade bastante distinta.
Afinal, o Brasil tem mantido relações cada vez mais positivas com o Irã nos últimos 2 anos, e se recusa a categorizar o Hezbollah como grupo terrorista.