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Uma afirmação pouco controvertida é a de que, no nosso período histórico, presenciamos uma avalanche de acontecimentos importantes na política mundial. Seu corolário é a necessidade de se ter à mão uma história recente que dê conta do cenário mundial. Felizmente, o canadense Quinn Slobodian cumpre esse papel de historiador dedicado a explicar acontecimentos recentes. Sua especialidade é “História Internacional”, um campo que soa vago, mas é tanto mais necessário quanto mais os mecanismos internacionais crescem. Li duas interessantes obras do mesmo autor: Globalistas, de 2018, do qual há uma tradução lusitana, e Capitalismo Destrutivo, de 2023, do qual há uma tradução brasileira.
Pode-se dizer que um é a continuação do outro, e que em ambos tratam das metamorfoses que o Estado sofreu por pressão dos apologistas das sociedades de mercado. Em Globalistas, Slobodian trata do surgimento do neoliberalismo e coloca-o na Áustria do Entre-Guerras. Com o fim do Império Austríaco, os liberais teriam tido a intenção de criar um sistema global de normas para a proteção do livre mercado. Assim, o neoliberalismo não é uma doutrina econômica de laissez faire; em vez disso, o neoliberalismo é um ideal jurídico. Esse ideal jurídico visa à constituição de uma ordem global composta por Estados nacionais de soberania limitada, sujeitos à proteção da propriedade promovida por entidades supranacionais tais como a OMC. O neoliberalismo seria uma tentativa de reviver o Império Austríaco em nível global, no qual várias etnias conviviam sob um único regime liberal. Se Schmitt apontara e criticara a separação entre imperium (poder político sobre os súditos ou cidadãos) e dominium (poder sobre a propriedade) no capitalismo moderno, os neoliberais a enxergavam como um meio de manter o dominium protegido do imperium. Os Estados nacionais teriam imperium sobre os seus cidadãos, mas não teriam dominium sobre as propriedades. Nomes importantes desse movimento são Mises, Hayek, Heilperin e Röpke.
Essa teoria respondia à onda de nacionalizações de propriedades por Estados fortes durante as guerras, e que só fizeram crescer com o processo de descolonização da África e da Ásia. Naturalmente, uma refinada defesa da propriedade privada em âmbito global despertou interesse de capitalistas mundo afora – sobretudo nos EUA, onde parte da classe empresarial sempre ofereceu resistência ao New Deal. Um símbolo do desembarque do neoliberalismo nos EUA foi a chegada de um punhado de teóricos germanófonos para auxiliar na campanha de Barry Goldwater à Casa Branca em 1964.
O arco temporal do livro vai desde o Entre-Guerras, com a Escola Austríaca, até a criação da OMC, em 1995, que substituiu o discreto GATT criado no pós-guerra. Quanto à ONU, os neoliberais buscaram expandir o conceito de direitos humanos para incluir nele o direito à fuga de capitais. O propositor disso se chamava Philip Cortney, nascido na Romênia, e o movimento ocorreu já na década de 1940. Era um pupilo do polonês Michael Heilperin.
Por incrível que pareça, os neoliberais em geral se enxergavam como favoráveis à democracia. Hayek a considerava um meio de aliviar tensões sociais. Deixando-se o povo escolher um representante, ganhava-se legitimidade e paz. No entanto, a invasão do imperium sobre o dominium era um risco das democracias de voto universal: seja por demagogia ou bom-senso, os políticos que querem agradar o eleitorado promovem redistribuição de renda e se intrometem nas empresas grandes, sobretudo quando estrangeiras.
Qual a solução? Os Estados Unidos oferecem uma inspiração, pois lá, há muito, o poder do sufrágio universal foi superado pela Suprema Corte. A solução de Hayek é uma democracia hiper-regulada, com constituição forte, e, por conseguinte, com uma Suprema Corte forte. É como se a Common Law fosse o produto de uma evolução natural e a Suprema Corte somente avalizasse o resultado de tal processo. É uma cosmovisão que combina com o conservadorismo de matriz anglo-saxã, mas que cai como uma luva também no darwinismo social. Essa corrente neoliberal que considera que a ordem (legal, comercial, política etc) emerge da seleção natural ao resistir à prova do tempo tem o nome de ordoliberalismo.
Mas o grande xis da questão é que os neoliberais, em vez de simplesmente atacar o Estado, trataram de desvirtuá-lo. Por mais problemas que houvesse, historicamente, o Estado era pensado como uma entidade a serviço do bem comum. De repente – e com muito patrocínio dos interessados – o Estado passou a ser pensado como uma entidade que deve estar a serviço do mercado.
As decorrências éticas são tremendas; afinal, não há mais espaço para a dignidade humana quando o homem é enxergado como um mero consumidor. Com seu avançado programa de eutanásia estatal, Canadá aponta a saída para aqueles que não têm valor para o mercado.
Olhando o mundo à nossa volta, temos de dizer que o neoliberalismo foi vitorioso: a sociedade gasta muita energia debatendo fulano versus sicrano sem que haja qualquer possibilidade de mudanças reais e profundas. No Brasil, nenhum presidente pode combater o ambientalismo malthusiano ou a política monetária sem ser acusado de “ataque às instituições”. O país ocidental mais importante do mundo mostra que o cargo de presidente é tão irrelevante que pode ser ocupado por um demente.
Nesse contexto, a representação política foi substituída pela representatividade estética. Vamos votar numa mulher negra, ou então num influencer cristão, para nos sentirmos empoderados e representados.
Como não poderia deixar de ser, o neoliberalismo causa crises políticas no mundo inteiro, porque não consegue esconder a sua falta de legitimidade. Pipocam mundo afora políticos e governos ditos “populistas” ou “extremistas”. No entanto, o que o neoliberalismo consegue fazer é se esconder. Como o papel do Estado foi aviltado diante da população, fazendo crer que o único modelo de Estado legítimo é o neoliberal, muita gente, inclusive neoliberais, concluirá que todo o mal-estar é gerado pelo Estado enquanto tal. O problema passa a ser formulado em termos de “mais Estado” ou “menos Estado”, quando deveria ser formulado nos termos da natureza do Estado.
Por isso, a marcha neoliberal tende a se desmanchar no anarcocapitalismo, a revolta contra o Estado enquanto tal. Como veremos no próximo texto, acompanhando por meio de Slobodian a família Friedman, essa revolta foi sentida não só pelo povo, como também pelos próprios liberais.