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Desde a retirada das forças espanholas do território do Saara Ocidental, os saarauis se veem em um conflito permanente e ruinoso com o Reino do Marrocos, o qual reivindica o território apesar da inexistência de vínculos históricos ou etnoculturais com a região.
Esse conflito, que tem alternado entre períodos de luta armada e períodos de cessar-fogo, gira em torno do reconhecimento ou não da independência da República Árabe Saaraui Democrática, ou do pertencimento do seu território ao Marrocos.
Apesar desse conflito parecer obscuro (pelo menos em comparação como causas nacionais mais famosas, como a palestina), já são 82 os países que reconhecem a soberania da RASD, que é também membro da União Africana. Nesse sentido, de fato, existe uma razoabilidade na reivindicação saaraui que torna plausível a conquista de seu objetivo no longo prazo – especialmente após a reestruturação planetária em um sentido multipolar.
Essa “razoabilidade” tem sido reconhecida no âmbito jurídico-internacional desde praticamente o começo da luta pela independência, a qual se deu no contexto internacional dos processos de descolonização. Já em 1975, antes mesmo da retirada espanhola, a ONU exigia a realização de um referendo para decidir o destino do território; e quando o Marrocos solicitou o encaminhamento para o Tribunal de Haia da questão do Saara Ocidental e seus supostos “vínculos” com o Marrocos, o veredito de Haia foi que o Saara Ocidental tinha as suas próprias autoridades legítimas tribais as quais teriam acordado com o Rei da Espanha no século XIX a sua anexação, excluindo a tese marroquina de que a região era “terra de ninguém”, negando também a existência de qualquer vínculo jurídico com o Marrocos que pudesse negar o princípio da livre autodeterminação do povo saaraui.
Não obstante, por oportunismo, aproveitando-se do vácuo de poder, o Marrocos invadiu o Saara Ocidental logo após a decisão do Tribunal de Haia. Trata-se de uma invasão peculiar porque o consenso em relação à legitimidade da pretensão soberanista saaraui era elevado, o que fica evidenciado especialmente no que concerne as relações diplomáticas africanas, onde a RASD desfruta de um amplo consenso, a ponto de por um longo tempo o Marrocos estar excluído das fileiras da União Africana pela inclusão da RASD.
Apesar de promessas de realização de um referendo já no início dos anos 90 e da construção ilegal de um muro dividindo a região entre uma zona dominada pelo Marrocos e uma zona livre, a realidade é que a solução definitiva do conflito permanece pendente, sem referendo de independência, com uma missão da ONU (a MINURSO) pequena e tímida em comparação com outras, e com o conflito reativado nos últimos anos.
Os EUA, hegemon na ordem unipolar, já demonstrou que não está interessado em uma solução definitiva para o conflito – pelo menos uma que seja satisfatória para os saarauis – e apoia as reivindicações marroquinas (como o faz Israel).
Não obstante, no esteio das transformações geopolíticas que acompanham a transição de um momento unipolar para uma ordem multipolar, talvez seja possível encontrar uma solução – aquela já demandada no âmbito da ONU – para o conflito no Saara Ocidental.
Quanto a isso, recordemos que países como Rússia e China tem tido experiência com a resolução de conflitos e com a aproximação de adversários geopolíticos, com muitos casos concretos nos últimos anos. Basta recordarmos a reaproximação entre Irã e Arábia Saudita, bem como a renovação dos diálogos entre Síria e Turquia.
Assim, em um primeiro lugar, é necessário apontar que as próprias alterações estruturais no plano internacional dificultarão a continuidade das pretensões marroquinas. É que os EUA estão perdendo uma capacidade de projetar a sua influência de forma efetiva graças à multiplicação dos seus engajamentos internacionais e ao próprio processo interno de decadência pelo qual o país passa.
Por sua vez, apesar de obstáculos representados pelas sanções, após um eventual encerramento (favorável à Rússia) da operação militar especial, Moscou estará em uma posição internacional tão elevado quanto aquele de que desfrutava durante a Guerra Fria.
O mesmo deve ser dito do outro grande aliado de Marrocos, Israel, que passa por uma crise sem precedentes por causa de sua campanha militar desastrosa contra Gaza e contra o Líbano. O país sofre com um êxodo, um colapso econômico e uma devastação diplomática, com poucas chances de recuperação breve mesmo em caso de fim repentino do conflito.
Marrocos tende a se ver em uma situação na qual não poderá mais se apoiar em seus principais aliados. E isso enquanto o principal rival regional do Marrocos, a Argélia (que constitui o principal país apoiador da causa saaraui) desfruta de relações internacionais mais favoráveis nesse contexto, sustentando uma relação mais próxima com as potências contra-hegemônicas. No mesmo sentido, analisando as relações de poder, mais ao sul da região, no Sahel, emerge uma confederação de Estados aliados da Rússia (Mali, Burkina Faso e Níger), reforçando a percepção de que Moscou terá um papel crescente como mediador nos conflitos regionais.
Ainda assim é importante reiterar que a Rússia possui boas relações com o Marrocos e busca aprimorar essas relações, especialmente na economia – tal como tem sustentado o direito à autodeterminação dos saarauis. Dessa forma, Moscou representa um polo neutro, apto a ajudar na mediação deste conflito.
Quanto a isso, apontamos também para a experiência russa com o próprio problema do leste ucraniano, que se arrastou desde o Maidan em 2013 até a operação militar especial. Apesar de inúmeras diferenças e particularidades, ali estamos também diante de uma querela envolvendo os direitos de autonomia de uma “identidade étnica local” frente a um poder central repressor.
Durante os 8 anos de conflito assimétrico que precederam a operação militar especial, discutiu-se o destino do Donbass entre uma pletora de possibilidades: reintegração forçada na Ucrânia sem autonomia, reintegração consensual na Ucrânia com autonomia, independência ou integração na Rússia. A Rússia favorecia a reintegração consensual na Ucrânia com autonomia, pauta que se refletia nos (fracassados) Acordos de Minsk.
Mas considerando que o Saara Ocidental apenas esteve submetido a governo marroquino pelo (historicamente) curto período da dinastia almorávida e que em outros períodos históricos apenas intermitentemente, parcialmente e superficialmente houve vínculos de pertencimento entre as tribos nômades do norte do atual Saara Ocidental e a autoridade instaurada nos centros de poder magrebinos – diferentemente das profundas e permanentes relações entre os territórios ucranianos e a estatalidade russa – um integração a Marrocos aparece como imediatamente desarrazoada.
Mas com a sua experiência na Crimeia e no leste ucraniano, a Rússia pode ajudar a organizar o referendo necessário para que se possa de fato dar uma solução definitiva para este conflito – e pode ajudar a convencer o Marrocos a aceitar os resultados.
Para a Rússia, essa solução é a única que pode permitir uma integração harmoniosa entre o Magrebe e a África Ocidental, restaurando laços entre Marrocos e Argélia, e facilitando a realização de inúmeros projetos logísticos, não apenas russos como chineses, que vão de rodovias e ferrovias a gasodutos.