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Há anos o governo de Vladimir Putin, e o próprio presidente em particular, têm realizado uma cruzada em defesa do que chamam de valores tradicionais russos. Eles estão relacionados principalmente com os costumes, mais notadamente com a família tradicional.
Alguns exemplos são a lei que proíbe a difusão pública de conteúdo em defesa da comunidade LGBT, a lei que insere o movimento LGBT na lista de grupos extremistas, o novo currículo escolar com educação moral voltada aos estudos sobre a família tradicional e o incentivo governamental à imigração de cidadãos ocidentais descontentes com a degradação de suas sociedades que encontram na Rússia um refúgio ideológico e moral.
Soma-se a isso a aliança do governo com a Igreja Ortodoxa Russa, notória defensora de ideias reacionárias. Os meios de comunicação ligados ao governo também têm publicado amplo material negativo sobre a eutanásia em países europeus e alguns movimentos, principalmente nos Estados Unidos, que desencorajam os casais a não terem filhos.
A política levada a cabo por Putin tem despertado paixões no mundo inteiro. A direita conservadora vê a cruzada moral do líder russo com bons olhos, embora, principalmente na América Latina, ela desconfie das posturas estatistas e anti-EUA do Kremlin. Por outro lado, a maior parte da esquerda, influenciada pela ideologia woke, acusa Putin de ser um fascista por causa disso.
Os motivos que levam os russos a realizar essa cruzada, contudo, são muito mais pragmáticos do que morais. É uma questão de sobrevivência do Estado Nacional.
A Rússia lida com um sério problema de subpopulação. É o maior país do mundo, cujo território é quase do mesmo tamanho dos territórios de Canadá e China (respectivamente o segundo e terceiro maiores) somados. A Rússia é 115 vezes maior do que Bangladesh, contudo sua população é menor do que a do pequeno país asiático. Entre os países europeus, apenas a Islândia tem uma densidade populacional menor que a Rússia. Entre os asiáticos, apenas Cazaquistão e Mongólia. Entre os membros do G20, apenas Canadá e Austrália – dois países com tradição de incentivo à imigração.
Ou seja, a Rússia é um dos países percentualmente mais desabitados do planeta. Esse foi um dos efeitos devastadores da desintegração da União Soviética. Foi um duro golpe que o regime imperialista liderado pelos Estados Unidos conseguiu causar ao povo russo. A população do país caiu em 10% nas duas décadas seguintes e hoje o número de russos que vivem dentro do país ainda é o mesmo de 40 anos atrás. O Brasil tinha a mesma população que a Rússia Soviética no final da década de 1980 e hoje tem cerca de 67 milhões de habitantes a mais do que à época, enquanto a Rússia literalmente estagnou. A população dos EUA aumentou em 85 milhões, a da China em 300 milhões e a da Índia em mais de 550 milhões.
As previsões para o futuro são ainda mais assombrosas. Em 2020, a revista científica Lancet publicou um estudo de pesquisadores da escola de medicina da Universidade de Washington que mostrou que a população da Rússia vai encolher para 106 milhões de pessoas até o final do século XXI. O país vai despencar da nona posição entre os mais populosos para o 19° lugar da lista.
Uma estagnação populacional como a que vigora há tantas décadas (para não dizer a prevista redução populacional, tão drástica, até o fim do século) em um país com uma densidade demográfica já muito baixa como a da Rússia é algo inaceitável para um governo que preze minimamente pelo desenvolvimento e defesa do país. Ter tão pouca gente em um território tão grande prejudica a economia, pois falta mão de obra para a indústria, o que leva a uma produção industrial escassa e a um consumo interno extremamente limitado. Não há como ter uma economia pujante e competitiva com apenas oito habitantes por km². A China tem 149 hab./km² e os EUA têm 35 hab./km².
Mesmo os chineses já perceberam que precisam povoar o país. A tão famosa política de filho único foi abandonada por Pequim em 2015 e hoje há cursos universitários voltados especificamente para a promoção do matrimônio. Há muitos anos a Rússia olha para a China e vê um exemplo a ser seguido em todos os sentidos, um país pobre que virou potência mundial em tudo precisamente devido ao tamanho da sua população. Moscou também tem incentivado seus cidadãos a se casarem e ter mais filhos, além de praticar atividades físicas e cuidar da saúde.
Mas não é apenas uma questão econômica. Mais do que isso, é uma questão de defesa militar. O maior país do mundo tem apenas o quarto maior exército, atrás de China, Índia e EUA, que são países muito menores. Desde o final da I Guerra Mundial, a Rússia já sofreu duas grandes invasões e sabe como é difícil lidar com isso. Logo após a Revolução de Outubro, ao iniciar a Guerra Civil nada menos do que 14 exércitos estrangeiros invadiram o país. E essa invasão se deu em grande medida a partir dos flancos mais desprotegidos – o norte e o extremo leste. Milhões de cidadãos russos tiveram de morrer no campo de batalha ou de fome para que a Rússia pudesse sair vitoriosa, à custa de uma devastação econômica e de um grande retrocesso político e social.
O mundo caminha para uma terceira Guerra Mundial e a Rússia estará diretamente envolvida. Na verdade, ela tende a ser um dos principais alvos de mais um possível avanço bélico letal do imperialismo, considerando todas as preparações que a OTAN e seus aliados têm realizado nos últimos anos, das quais a Ucrânia é o principal exemplo. A grande ameaça para a Rússia (e para todos os países do mundo) são os EUA, e eles simplesmente fazem fronteira com a Rússia. Os cerca de 80 mil soldados estadunidenses estacionados no Japão e na Coreia estão mais próximos da Sibéria Oriental e do Extremo Oriente russo do que Moscou. Em um momento no qual as forças russas estão obrigatoriamente concentradas na frente ocidental com a Ucrânia, a frente oriental fica ainda mais desprotegida.
Por isso Putin acaba de anunciar a ampliação dos efetivos do exército russo, de 1,3 milhão de soldados para 1,5 milhão. A guerra contra a Rússia é cada vez mais iminente e é preciso povoar o país, principalmente a Rússia central e oriental, para assegurar a proteção de sua integridade territorial. Um território vazio, ainda que tenha dono, é um território desprotegido. Como o quintal de uma casa, ele é a entrada das visitas – inclusive as indesejadas – para dentro do país
O Brasil sofre com o mesmo problema da Rússia: a vasta região amazônica, tão cobiçada pelas potências imperialistas, é a mais despovoada do país. E, segundo a ONU, no final deste século a população brasileira será ¼ menor do que atualmente, reduzida em quase 50 milhões. Diante de tantos ladrões no bairro, é melhor colocar os cães no quintal para afugentá-los.