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Bruna Frascolla
September 8, 2024
© Photo: Public domain

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

Antes que a notícia da proibição do Twitter e do VPN pelo “ditador” Alexandre de Moraes caísse como uma bomba na política brasileira, o assunto mais quente era a reconciliação entre os bolsonaristas e Pablo Marçal. Esperemos o assunto do Twitter se desenrolar para comentá-lo, e não deixemos passar batida a reconfiguração da direita brasileira.

Como explicado em mais detalhes em artigo anterior, por anos o Brasil se polarizou inutilmente entre PT e PSDB, dois partidos que governaram como neoliberais, sendo que o primeiro representava a “esquerda” e o segundo a “direita”. Em 2018, esse cenário teve uma mudança radical com o fenômeno Bolsonaro. Ele era um líder carismático com uma retórica antissistema e sua campanha foi feita por meio de redes sociais. Embora estivesse há décadas na política, Bolsonaro não tinha influência em partidos e ficava pulando de galho em galho. Antes da campanha de 2018, ele era um político de relevância eleitoral apenas para o Rio de Janeiro. Às vezes o seu anticomunismo o levava a alguma ação espalhafatosa que o colocava nas manchetes. Era o que chamamos no Brasil de deputado folclórico. A habilidade com as redes sociais era do seu filho Carlos Bolsonaro.

Acuado pela Justiça e impedido de se candidatar, Bolsonaro negociava sua influência política com donos de partidos. O bolsonarista Ricardo Salles, ex ministro do seu governo, desistiu da candidatura à prefeitura de São Paulo – a maior metrópole da América Latina – para que Bolsonaro pudesse emprestar a sua força eleitoral aos seus aliados não-ideológicos. Assim, Bolsonaro e os bolsonaristas, em tese, deveriam apoiar a reeleição do atual prefeito, o anódino Ricardo Nunes, que chegou ao cargo porque o prefeito morreu de câncer e ele era o vice.

As coisas já começaram a não dar muito certo quando a militância investigou a gestão de Nunes e descobriu coisas frontalmente contrárias às suas pautas, como a imposição de vacinas de covid aos seus funcionários e uso de linguagem neutra em material voltado para LGBTs. Não sei como é em Portugal, mas no Brasil a esquerda woke tem dito “bom dia a todas, todos e todes” e se empenhado em colocar essa “gramática” em comunicados oficiais. Nos EUA, os descendentes de hispânicos inventaram que são “Latinx” em vez de “Latino” para não usar o masculino. Como isso é impronunciável em português e espanhol, alguém inventou de botar um E no lugar do X, para ser o neutro. E esse nem foi o único caso em que a linguagem neutra apareceu nesta campanha: num evento do principal candidato de esquerda, Guilherme Boulos, ao qual Lula compareceu, uma cantora “negra” de turbantão achou que era uma boa ideia cantar o hino nacional em linguagem neutra. A cena foi engraçada: ela, desafinadíssima, cantando “des filhes deste solo és mãe gentil”, e Lula tomando um susto. Virou meme na hora, foi um vexame e a campanha tirou o vídeo do ar.

Pois bem, voltemos à direita. Embaralhando os cálculos dos bolsonaristas e seus aliados, entrou em cena Pablo Marçal, um autodeclarado “ex-coach” que aos 18 anos já participava de uma quadrilha liderada por um pastor evangélico, criando malwares para roubar bancos. Evangélico, protagoniza cenas como esta, em que manda, sem sucesso, uma paralítica voltar a andar. No dia dois de setembro, entrevistado pelo prestigioso programa Roda Vida, foi-lhe perguntado se ele continuaria a ir a velórios para mandar o morto se levantar. Ele confirmou. No mesmo programa, diz que vai acabar com a pobreza mudando a mentalidade do brasileiro, pois ele mesmo saiu da pobreza por mudar a mentalidade. Hoje ele tem incontáveis milhões de reais.

Embora nada de concreto tenha sido descoberto, sua relação com pessoas ligadas ao tráfico de drogas levanta suspeitas, as quais são amplamente usadas na campanha da adversária Tabata Amaral. Na verdade, desde o caso Cariani (quando um médico-influencer ricaço foi pego desviando material para a elaboração de cocaína e crack), é prudente suspeitar que influencers ricaços lavem dinheiro de tráfico. Cariani, em particular, era amigo e sócio de Marçal.

Sua vida de influencer causou-lhe um problema concreto até agora: soube-se que ele tem uma comunidade no Discord na qual paga para quem produzir os melhores cortes (i. e., os que tiverem mais audiência), e isso foi considerado crime eleitoral. Por isso o TSE suspendeu os seus perfis em redes sociais. Deu-lhe assim ampla oportunidade para se vitimizar e se exibir como um perseguido pelo sistema. Bolsonaro, por outro lado, seria um membro do sistema, já que ele apoia Nunes. Mais ainda: Bolsonaro seria um interessado na suspensão de suas redes e o verdadeiro culpado por elas. Os bolsonaristas correram para o Twitter a fim de dizer que são contra a censura de quem quer que seja. No entanto, o estrago já estava feito. Aqui no interior da Bahia, num município rural a 1.900 quilômetros de São Paulo, um habitante me disse que era contra o que Bolsonaro estava fazendo com Marçal. Não houve alternativa senão uma reconciliação pública, coisa que até o filho Carlos Bolsonaro, que vinha sendo xingado por Marçal, teve de fazer.

Assim, se ainda não ressuscitou nenhum morto, nem fez paralítico voltar a andar, Marçal já fez algo que todos os políticos brasileiros considerariam um milagre: destronou Bolsonaro.

O milagre de Pablo Marçal

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Antes que a notícia da proibição do Twitter e do VPN pelo “ditador” Alexandre de Moraes caísse como uma bomba na política brasileira, o assunto mais quente era a reconciliação entre os bolsonaristas e Pablo Marçal. Esperemos o assunto do Twitter se desenrolar para comentá-lo, e não deixemos passar batida a reconfiguração da direita brasileira.

Como explicado em mais detalhes em artigo anterior, por anos o Brasil se polarizou inutilmente entre PT e PSDB, dois partidos que governaram como neoliberais, sendo que o primeiro representava a “esquerda” e o segundo a “direita”. Em 2018, esse cenário teve uma mudança radical com o fenômeno Bolsonaro. Ele era um líder carismático com uma retórica antissistema e sua campanha foi feita por meio de redes sociais. Embora estivesse há décadas na política, Bolsonaro não tinha influência em partidos e ficava pulando de galho em galho. Antes da campanha de 2018, ele era um político de relevância eleitoral apenas para o Rio de Janeiro. Às vezes o seu anticomunismo o levava a alguma ação espalhafatosa que o colocava nas manchetes. Era o que chamamos no Brasil de deputado folclórico. A habilidade com as redes sociais era do seu filho Carlos Bolsonaro.

Acuado pela Justiça e impedido de se candidatar, Bolsonaro negociava sua influência política com donos de partidos. O bolsonarista Ricardo Salles, ex ministro do seu governo, desistiu da candidatura à prefeitura de São Paulo – a maior metrópole da América Latina – para que Bolsonaro pudesse emprestar a sua força eleitoral aos seus aliados não-ideológicos. Assim, Bolsonaro e os bolsonaristas, em tese, deveriam apoiar a reeleição do atual prefeito, o anódino Ricardo Nunes, que chegou ao cargo porque o prefeito morreu de câncer e ele era o vice.

As coisas já começaram a não dar muito certo quando a militância investigou a gestão de Nunes e descobriu coisas frontalmente contrárias às suas pautas, como a imposição de vacinas de covid aos seus funcionários e uso de linguagem neutra em material voltado para LGBTs. Não sei como é em Portugal, mas no Brasil a esquerda woke tem dito “bom dia a todas, todos e todes” e se empenhado em colocar essa “gramática” em comunicados oficiais. Nos EUA, os descendentes de hispânicos inventaram que são “Latinx” em vez de “Latino” para não usar o masculino. Como isso é impronunciável em português e espanhol, alguém inventou de botar um E no lugar do X, para ser o neutro. E esse nem foi o único caso em que a linguagem neutra apareceu nesta campanha: num evento do principal candidato de esquerda, Guilherme Boulos, ao qual Lula compareceu, uma cantora “negra” de turbantão achou que era uma boa ideia cantar o hino nacional em linguagem neutra. A cena foi engraçada: ela, desafinadíssima, cantando “des filhes deste solo és mãe gentil”, e Lula tomando um susto. Virou meme na hora, foi um vexame e a campanha tirou o vídeo do ar.

Pois bem, voltemos à direita. Embaralhando os cálculos dos bolsonaristas e seus aliados, entrou em cena Pablo Marçal, um autodeclarado “ex-coach” que aos 18 anos já participava de uma quadrilha liderada por um pastor evangélico, criando malwares para roubar bancos. Evangélico, protagoniza cenas como esta, em que manda, sem sucesso, uma paralítica voltar a andar. No dia dois de setembro, entrevistado pelo prestigioso programa Roda Vida, foi-lhe perguntado se ele continuaria a ir a velórios para mandar o morto se levantar. Ele confirmou. No mesmo programa, diz que vai acabar com a pobreza mudando a mentalidade do brasileiro, pois ele mesmo saiu da pobreza por mudar a mentalidade. Hoje ele tem incontáveis milhões de reais.

Embora nada de concreto tenha sido descoberto, sua relação com pessoas ligadas ao tráfico de drogas levanta suspeitas, as quais são amplamente usadas na campanha da adversária Tabata Amaral. Na verdade, desde o caso Cariani (quando um médico-influencer ricaço foi pego desviando material para a elaboração de cocaína e crack), é prudente suspeitar que influencers ricaços lavem dinheiro de tráfico. Cariani, em particular, era amigo e sócio de Marçal.

Sua vida de influencer causou-lhe um problema concreto até agora: soube-se que ele tem uma comunidade no Discord na qual paga para quem produzir os melhores cortes (i. e., os que tiverem mais audiência), e isso foi considerado crime eleitoral. Por isso o TSE suspendeu os seus perfis em redes sociais. Deu-lhe assim ampla oportunidade para se vitimizar e se exibir como um perseguido pelo sistema. Bolsonaro, por outro lado, seria um membro do sistema, já que ele apoia Nunes. Mais ainda: Bolsonaro seria um interessado na suspensão de suas redes e o verdadeiro culpado por elas. Os bolsonaristas correram para o Twitter a fim de dizer que são contra a censura de quem quer que seja. No entanto, o estrago já estava feito. Aqui no interior da Bahia, num município rural a 1.900 quilômetros de São Paulo, um habitante me disse que era contra o que Bolsonaro estava fazendo com Marçal. Não houve alternativa senão uma reconciliação pública, coisa que até o filho Carlos Bolsonaro, que vinha sendo xingado por Marçal, teve de fazer.

Assim, se ainda não ressuscitou nenhum morto, nem fez paralítico voltar a andar, Marçal já fez algo que todos os políticos brasileiros considerariam um milagre: destronou Bolsonaro.

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

Antes que a notícia da proibição do Twitter e do VPN pelo “ditador” Alexandre de Moraes caísse como uma bomba na política brasileira, o assunto mais quente era a reconciliação entre os bolsonaristas e Pablo Marçal. Esperemos o assunto do Twitter se desenrolar para comentá-lo, e não deixemos passar batida a reconfiguração da direita brasileira.

Como explicado em mais detalhes em artigo anterior, por anos o Brasil se polarizou inutilmente entre PT e PSDB, dois partidos que governaram como neoliberais, sendo que o primeiro representava a “esquerda” e o segundo a “direita”. Em 2018, esse cenário teve uma mudança radical com o fenômeno Bolsonaro. Ele era um líder carismático com uma retórica antissistema e sua campanha foi feita por meio de redes sociais. Embora estivesse há décadas na política, Bolsonaro não tinha influência em partidos e ficava pulando de galho em galho. Antes da campanha de 2018, ele era um político de relevância eleitoral apenas para o Rio de Janeiro. Às vezes o seu anticomunismo o levava a alguma ação espalhafatosa que o colocava nas manchetes. Era o que chamamos no Brasil de deputado folclórico. A habilidade com as redes sociais era do seu filho Carlos Bolsonaro.

Acuado pela Justiça e impedido de se candidatar, Bolsonaro negociava sua influência política com donos de partidos. O bolsonarista Ricardo Salles, ex ministro do seu governo, desistiu da candidatura à prefeitura de São Paulo – a maior metrópole da América Latina – para que Bolsonaro pudesse emprestar a sua força eleitoral aos seus aliados não-ideológicos. Assim, Bolsonaro e os bolsonaristas, em tese, deveriam apoiar a reeleição do atual prefeito, o anódino Ricardo Nunes, que chegou ao cargo porque o prefeito morreu de câncer e ele era o vice.

As coisas já começaram a não dar muito certo quando a militância investigou a gestão de Nunes e descobriu coisas frontalmente contrárias às suas pautas, como a imposição de vacinas de covid aos seus funcionários e uso de linguagem neutra em material voltado para LGBTs. Não sei como é em Portugal, mas no Brasil a esquerda woke tem dito “bom dia a todas, todos e todes” e se empenhado em colocar essa “gramática” em comunicados oficiais. Nos EUA, os descendentes de hispânicos inventaram que são “Latinx” em vez de “Latino” para não usar o masculino. Como isso é impronunciável em português e espanhol, alguém inventou de botar um E no lugar do X, para ser o neutro. E esse nem foi o único caso em que a linguagem neutra apareceu nesta campanha: num evento do principal candidato de esquerda, Guilherme Boulos, ao qual Lula compareceu, uma cantora “negra” de turbantão achou que era uma boa ideia cantar o hino nacional em linguagem neutra. A cena foi engraçada: ela, desafinadíssima, cantando “des filhes deste solo és mãe gentil”, e Lula tomando um susto. Virou meme na hora, foi um vexame e a campanha tirou o vídeo do ar.

Pois bem, voltemos à direita. Embaralhando os cálculos dos bolsonaristas e seus aliados, entrou em cena Pablo Marçal, um autodeclarado “ex-coach” que aos 18 anos já participava de uma quadrilha liderada por um pastor evangélico, criando malwares para roubar bancos. Evangélico, protagoniza cenas como esta, em que manda, sem sucesso, uma paralítica voltar a andar. No dia dois de setembro, entrevistado pelo prestigioso programa Roda Vida, foi-lhe perguntado se ele continuaria a ir a velórios para mandar o morto se levantar. Ele confirmou. No mesmo programa, diz que vai acabar com a pobreza mudando a mentalidade do brasileiro, pois ele mesmo saiu da pobreza por mudar a mentalidade. Hoje ele tem incontáveis milhões de reais.

Embora nada de concreto tenha sido descoberto, sua relação com pessoas ligadas ao tráfico de drogas levanta suspeitas, as quais são amplamente usadas na campanha da adversária Tabata Amaral. Na verdade, desde o caso Cariani (quando um médico-influencer ricaço foi pego desviando material para a elaboração de cocaína e crack), é prudente suspeitar que influencers ricaços lavem dinheiro de tráfico. Cariani, em particular, era amigo e sócio de Marçal.

Sua vida de influencer causou-lhe um problema concreto até agora: soube-se que ele tem uma comunidade no Discord na qual paga para quem produzir os melhores cortes (i. e., os que tiverem mais audiência), e isso foi considerado crime eleitoral. Por isso o TSE suspendeu os seus perfis em redes sociais. Deu-lhe assim ampla oportunidade para se vitimizar e se exibir como um perseguido pelo sistema. Bolsonaro, por outro lado, seria um membro do sistema, já que ele apoia Nunes. Mais ainda: Bolsonaro seria um interessado na suspensão de suas redes e o verdadeiro culpado por elas. Os bolsonaristas correram para o Twitter a fim de dizer que são contra a censura de quem quer que seja. No entanto, o estrago já estava feito. Aqui no interior da Bahia, num município rural a 1.900 quilômetros de São Paulo, um habitante me disse que era contra o que Bolsonaro estava fazendo com Marçal. Não houve alternativa senão uma reconciliação pública, coisa que até o filho Carlos Bolsonaro, que vinha sendo xingado por Marçal, teve de fazer.

Assim, se ainda não ressuscitou nenhum morto, nem fez paralítico voltar a andar, Marçal já fez algo que todos os políticos brasileiros considerariam um milagre: destronou Bolsonaro.

The views of individual contributors do not necessarily represent those of the Strategic Culture Foundation.

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