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Entre o final do século XIX e o começo do XX, era lugar comum apontar a grande coincidência entre ser um judeu étnico e ser um comunista. Uso a expressão “judeu étnico” para evitar confusões, por exemplo: Karl Marx era ateu e foi criado como luterano desde os 6 anos; mas, do ponto de vista étnico, era judeu, porque sua mãe era judia. Um indivíduo escolhe converter-se, mas não escolhe a mãe. Judaísmo é Lei. Segundo a Lei, quem nasce de ventre judaico é judeu e, portanto, tem que seguir a Lei. Assim, o judaísmo é uma religião que se confunde com a matrilinearidade, e pode entrar em choque com a autodeterminação do judeu. E por causa desse caráter hereditário da religião, ela com muita facilidade se confunde com uma etnia. Outra coisa relevante é que, de fato, as mulheres são muito importantes para a transmissão de uma cultura – não à toa se diz “língua materna” para se referir à primeira língua de alguém.
Seja pela grande incidência dos casamentos internos, seja pela observância à Lei ou pelo mero fato de serem criados por uma mulher com uma cultura diferente da cristã, os judeus constituíram um grupo cultural diferente, mesmo que convivessem com cristãos fora dos guetos. Por isso, é possível fazer uma investigação social ou cultural perguntando-se por que havia tantos intelectuais judeus relevantes para o comunismo, sem que haja qualquer sentido em colocar algum elemento biológico em consideração. O racismo vigente na época, infelizmente, fez com que a associação entre judaísmo e comunismo tivesse explicações paupérrimas.
Nos dias de hoje, uma ideologia que se destaca como grandemente influenciada por intelectuais judeus é o anarcocapitalismo. Façamos as contas. Seu fundador é Murray Rothbard, nascido em 1920 nos EUA, filho de um judeu polonês e uma judia russa. Rothbard conhece como predecessor importante para o anarcocapitalismo Ludwig von Mises, um judeu nascido no Império Austro-Húngaro em 1881, cuja família havia sido nobilitada. Isso não era raro no Império Austro-Húngaro; famílias judaicas que conseguiam acumular muita renda se aproximavam da nobreza tradicional, seja ganhando títulos de nobreza ou se miscigenando em casamentos, como a família de Wittgenstein. Outra figura estrangeira ligada ao anarcocapitalismo é Ayn Rand, ou Alissa Rosenbaum, judia nascida no Império Russo em 1905. Tanto ela quanto Mises foram naturalizados nos EUA. Nos anos 1950, antes de inventar o anarcocapitalismo, Rothbard passou de fã a hater de Ayn Rand. Ela não se considerava uma anarcocapitalista, mas ainda assim é a figura mais pop dessa ideologia, tendo difundido por meio de romances e aparições televisivas a ideia de que o Estado é um mal a ser combatido por indivíduos economicamente fortes. O problema entre Rand e Rothbard era pesssoal.
Nas gerações mais novas, temos Robert Nozick, nascido em 1938 em Nova Iorque, filho de judeus, sendo o pai russo. Nozick não é anarcocapitalista, mas quase: é o defensor literal do Estado mínimo, e Rothbard julgou-o importante o suficiente para dedicar-lhe um capítulo da sua Ética da Liberdade. (Os outros autores que ganharam capítulos críticos foram Hayek e Berlin, um gentio e um judeu, mas não creio que valha a pena incluí-los na esfera do arnarcocapitalismo porque são, ao contrário de Nozick, razoavelmente descritos como liberais e não estão na periferia do debate acadêmico.) No mais, a Wikipédia lista um trio de discípulos notáveis de Rothbard, e um deles é Edward Block, nascido em 1941, um judeu de Nova Iorque. (Os outros dois discípulos, gentios, são o alemão de direita Hans-Hermann Hoppe, nascido em 1949, que é o mais famoso de todos, e Samuel Konkin, canadense de esquerda precocemente falecido em 2004 aos 56 anos.)
Levando em conta esses judeus citados, não é possível dizer que, como no caso do comunismo, trata-se de uma coisa de judeus irreligiosos. Destes, só Ayn Rand e Block são ateus. Rothbard se considerava metade agnóstico, metade adepto do judaísmo reformado (o que é estranho, mas condiz com o estado de dúvida do agnosticismo); quanto aos demais, não encontrei nenhuma menção explícita às suas crenças religiosas, e é difícil alguém ser ateu ou agnóstico e não constar informação a respeito. Destaco que Nozick lecionou em Israel e é muito cioso de sua identidade judaica. De cinco, temos 2 ateus e meio.
Levando em conta todas as pessoas-chave do anarcocapitalismo, temos quatro judeus e dois gentios. Computo as seguintes: Mises, Rothbard, Rand (divulgadora malgré soi), Block, Hoppe e Konkin. Excluo Nozick desta lista porque ele não era anarcocapitalista e ele não era um divulgador da ideologia, nem teria tal capacidade, porque não era pop como Ayn Rand. E é relevante que os dois gentios sejam discípulos, não pioneiros ou inspiradores do anarcocapitalismo. No mais, nenhum dos gentios é religioso: Hoppe é agnóstico como o mestre, e Konkin era ateu.
Dessa lista, podemos observar que todos os judeus anarcocapitalistas relevantes são asquenazitas dos Estados Unidos, talvez com origem russa (não encontrei informações sobre as origens dos pais de Block). Logo, qualquer que seja o traço cultural que atrele judaísmo a anarcocapitalismo, esse é um traço que se manifestou ou surgiu nos EUA, entre asquenazitas de origem europeia oriental. Mesmo havendo tantos judeus asquenazitas na Europa, de lá não saiu nenhum judeu anarcocapitalista proeminente; saiu só Hoppe, um alemão cioso de suas origens nobres tradicionais, revoltado com a ocupação estadunidense da Alemanha Ocidental e simpático à causa palestina.
O traço judaico que me parece de evidente importância no anarcocapitalismo é a Lei. Qualquer um que se inteire do anarcocapitalismo fica pasmo com o fato de que eles, em última instância, prescindem de força para aplicar a lei. Tudo se faz por contrato, estando previstas empresas de justiça (tribunais privados) e milícias. Assim sendo, o sistema só funciona se os donos da força decidirem obedecer ao contrato e prestar os serviços. No anarcocapitalismo, a Lei se basta.
Ora, na tradição cristã, aprendemos a lidar com a ideia de que Deus manda no Reino dos Céus e César manda neste, cabendo-nos dar-lhe o que é devido. Há a justiça divina, que é escatológica, mas a lei, quando referida sem adjetivos, é a lei de César. No judaísmo, não. A Lei, sem adjetivos, é a de Moisés, recebida diretamente de Deus e interpretada pelos rabinos após sucessivas gerações.
Na diáspora, os judeus, bem ou mal, mantiveram comunidades regidas pela Lei sem que houvesse um Estado para fazê-la valer. Daí não parecer um completo absurdo, para um indivíduo de cultura judaica, que a Lei prescinda de Estado para ser aplicada.
Mas o anarcocapitalismo vai além dos contratos quando o assunto é moralidade: ele crê que a sanção da sociedade a indivíduos repreensíveis que não tenham quebrado nenhum contrato se dá por meio de boicote. Trata-se, na verdade, da cancel cuture como forma de justiça (como já tive ocasião de mostrar em maior detalhe). Ora, segundo aprendemos com Finkelstein, a cancel culture surgiu nos EUA primeiro durante o anticomunismo, e incluía o blacklisting. que as elites judaicas praticavam contra os judeus esquerdistas com o fito de controlar a imagem da comunidade e se integrar com as elites dirigentes do país. (Cf. Holocaust Industry, cap. 1, e I will burn that bridge, cap. 1.) Não que elas só tivessem essa prática com os judeus, mas só com os judeus estava em xeque a reputação da comunidade.
É bem sabido que a prática do blacklisting, citada aliás por Rothbard na Ética da Liberdade como um exemplo de boicote, levou artistas ao suicídio, devido à impossibilidade que eles tinham de obter o seu próprio sustento. É bem sabida, também, a proeminência que os empresários judeus têm no setor cultural nos EUA.
Essa punição com boicote tem um precedente teológico na excomunhão. Eis o que diz Maimônides do judeu excomungado: “Não pode ensinar aos outros, nem os outros lhes podem ensinar. Não obstante, ele pode estudar sozinho, para não esquecer o que aprendeu. Não pode ser contratado, nem lhe é permitido contratar os outros. Não devemos fazer comércio com ele. De fato, não devemos ter quaisquer negócios com ele, exceto com mínimo necessário para a sua sobrevivência.” Podemos dizer, portanto, que a cancel culture proposta pelos anarcocapitalistas é uma versão laica e mais radical da excomunhão descrita pela Lei. A radicalidade pode ter sido adicionada pela cultura de caça às bruxas do mundo protestante, no qual não havia Inquisição e a dinâmica se assemelhava um pouco a linchamento, com muito clamor público pelas execuções. Afinal, na cancel culture proposta por Rothbard, não há um veredito de juiz; tem de ser uma iniciativa de vários indivíduos. No judaísmo, a excomunhão é decretada por uma autoridade religiosa, não por uma turba furiosa.
Outra coisa relevante da cultura dos EUA é a importância da vida comunitária, possibilitada em parte pelo caráter neutro e laico do Estado. Nos EUA, os imigrantes e seus descendentes constituem bairros e comunidades separados, com um perfil bem diferente da mistura ocorrida no Brasil. Um ítalo-americano é uma identidade definida; no Brasil, a ascendência italiana é uma curiosidade acerca de uma pessoa, e tende a ser uma ascendência entre muitas. Eu, por exemplo, não sou uma “ítalo-brasileira”, sou uma brasileira com ascendência italiana, e portuguesa, e ameríndia, e africana… É mais relevante para a identidade de um brasileiro o seu local de nascimento do que as suas origens étnico-raciais. Assim, a cultura dos EUA reforça a característica judaica de manter uma identidade étnica, fazendo com que ninguém, exceto os brancos protestantes, possa ser simplesmente American.
Nesse cenário, faz sentido vislumbrar a possibilidade de acabar com o Estado e criar múltiplas comunidades autossuficientes. E assim temos uma explicação não-exaustiva do porquê de o anarcocapitalismo contar com tantos judeus étnicos.