A Guerra do Donbass continuará sendo uma expressão da tendência revolucionária da nossa era
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Na segunda metade do século IX d.C., o viking Rurik, vindo da Suécia, liderou a ocupação do que hoje conhecemos como Ucrânia. Seu sucessor, Oleg, conquistou Kiev no ano 880 e lá estabeleceu o Rus de Kiev. Daí o nome Rússia, terra dos rus ─ povo originado da mescla dos escandinavos com os eslavos orientais. No século seguinte, após algumas batalhas, o príncipe de Novgorod, Vladimir I, O Grande, efetuou o domínio sobre toda a região e unificou as terras dos eslavos orientais. Contudo, a partir do século XI a Rus de Kiev foi se desmembrando em diversos reinos e principados, como o de Kiev, da Bielorrússia e de Moscou.
No ano 1100 eram 12 os principados da Rússia, que formavam a região da Rus de Kiev, repartida no século XVII com a anexação de territórios pelos poloneses-lituanos, os austríacos e os russos. Coroado imperador (czar) de Toda a Rússia, Ivan IV transformou o Grande Principado de Moscou em um verdadeiro império no século XVI, expandindo seu território para o leste, em direção à Ásia Central e à Sibéria. O Império Russo ganhou um desenvolvimento verdadeiramente relevante no século seguinte, quando Pedro I, O Grande, da dinastia Romanov, conquistou o Mar de Azov, ao norte do Mar Negro, ao derrotar o Império Otomano, e criou as frotas imperiais do Mar Báltico e do Mar Negro, após vencer os suecos na guerra do Norte e em Poltava, na Ucrânia, invadida pelo rei Carl XII da Suécia.
O atamán (chefe militar cossaco) da Ucrânia, Ivan Mazeppa, que comandava os cossacos da margem esquerda do Rio Dnieper, buscava unir os territórios da região e, a princípio, aliou-se à Rússia contra os suecos. Mas, ao não conseguir unificar os territórios que estavam sob o domínio da Polônia e os semi-independentes sob a soberania formal da Rússia, e após Pedro I enviar militares para comandar os seus cossacos, Mazeppa passou para o lado da Suécia, que lhe havia prometido a independência da Ucrânia. Com a derrota em Poltava, em 1709, Mazeppa e o rei da Suécia fugiram para o que hoje é a Transnístria (Moldávia), então controlada pelos turcos, onde morreram pouco depois.
Após a morte de Pedro I, a czarina Catarina II, A Grande, seguiu os seus passos no que representou o auge do progresso e da modernização do Império Russo, conquistando o leste e o sudeste da antiga Rus de Kiev, expulsando os turcos e anexando a maior parte da chamada Novorrússia, ou Donbass (Carcóvia, Donetsk, Lugansk, Zaparojia, Dnipropetrovsk, Nikolayev, Kherson e Odessa). Ainda na segunda metade do século XVIII, o príncipe Potiomkin (Potemkin), conquistou para Catarina II a Península da Crimeia, até então vassala do Império Otomano.
Como lembra o cientista político e analista de geopolítica Luiz Alberto Moniz Bandeira (1935-2017), “até a Primeira Guerra Mundial a Ucrânia ainda nem sequer, propriamente, configurava um país”. Era simplesmente a “Pequena Rússia”, como o sul era a “Nova Rússia” e, ao norte, a Bielorrússia era a “Rússia Branca”. “A Ucrânia sempre foi um território heterogêneo, penetrado, através dos séculos, por diversas culturas, religiões e tendências políticas. Nunca teve unidade étnica, homogeneidade cultural nem fronteiras definidas, ao longo da história” (Moniz Bandeira, A Desordem Mundial, 2022, p. 210).
Após a revolução de fevereiro de 1917, a Rada Central, parlamento em Kiev, proclamou a República Nacional da Ucrânia, não reconhecida pelo Governo Provisório de Petrogrado mas legitimada por Lênin em dois artigos publicados em junho daquele ano no Pravda.
Eles declararam muito especificamente que o povo ucraniano não deseja separar-se da Rússia, no presente. Eles demandam autonomia sem negar a necessidade da suprema autoridade do Parlamento de Toda a Rússia. Nenhum democrata, sem mencionar um socialista, ousará negar a completa legitimidade das demandas da Ucrânia, nem mesmo negar à Ucrânia o direito de livremente desligar-se da Rússia. Somente o reconhecimento deste direito torna possível advogar a livre união dos ucranianos e grão-russos, uma voluntária associação de dois povos num só Estado.
Porém, depois da revolução de outubro e da deflagração da guerra civil, em abril de 1918, aristocratas ucranianos derrubaram o Conselho Central da República Nacional e instituíram um governo antissoviético com o apoio das tropas de ocupação alemãs e austro-húngaras. Mas com a derrota da Tríplice Aliança na Primeira Guerra, aquele governo também foi derrubado por uma outra ala dos reacionários ucranianos. Enquanto isso, em janeiro os bolcheviques formaram a República Popular Soviética de Donetsk Krivoy-Rog, no leste da Novorrússia. No oeste, foi estabelecido o governo do Conselho dos Comissários do Povo em Odessa, formado por bolcheviques, socialistas-revolucionários e anarquistas. Logo em seguida, foi proclamada, na Crimeia, a República Socialista Soviética da Taurida, restabelecendo o antigo nome da península ─ suprimida pelas tropas alemãs pouco tempo depois. Por sua vez, Nestor Makhno liderou uma sublevação anarquista em Zaparojia, que se estendeu a Melitopol, Mariupol e outras cidades, formando o Exército Negro, a fim de lutar tanto contra os contrarrevolucionários brancos quanto contra o Exército Vermelho. Foi esmagado, no entanto, pelos bolcheviques, que finalmente tomaram o controle de toda a região entre finais de 1920 e o início de 1921.
Ainda em 1919, no mês de março o III Congresso dos Sovietes da Ucrânia havia tornado o país um Estado relativamente independente, mudando seu nome de República Soviética do Povo Ucraniano (que vigorou de 1917 a 1918) e cuja capital era a Carcóvia, para República Socialista Soviética da Ucrânia. A Ucrânia ainda estava dividida, pois a região ocidental era controlada pelos contrarrevolucionários, que fundiram a República Popular da Ucrânia Ocidental, na Galícia, com a República Nacional da Ucrânia, criando a República Popular da Ucrânia, que guerreou contra o Exército Vermelho com o apoio da Polônia. No final daquele ano, quando enviou as tropas para combater os contrarrevolucionários, Leon Trótski exortou os soldados do Exército Vermelho:
Camaradas soldados, comandantes, comissários! Vocês estão entrando na Ucrânia. Ao derrotar os bandos de Denikin [comandante do Exército Branco], vocês estão libertando um país fraterno de seus opressores. A Ucrânia é a terra dos operários e dos trabalhadores do campo ucranianos. Eles são os únicos que têm o direito de mandar na Ucrânia, de governá-la e de ali construir uma nova vida. Enquanto golpeiam impiedosamente os denikinistas, vocês devem ao mesmo tempo demonstrar um cuidado e um amor fraternos pelas massas trabalhadoras da Ucrânia. Ai de quem usar a força coercitiva contra as cidades e vilarejos do povo trabalhador da Ucrânia! Os operários e camponeses da Ucrânia devem se sentir seguros sob a defesa de nossas baionetas! Mantenham isto firme em suas mentes: sua tarefa não é conquistar a Ucrânia, mas libertá-la. Quando os bandos de Denikin tiverem sido finalmente esmagados, o povo trabalhador da Ucrânia livre vai decidir por conta própria sobre quais termos ele quer viver com a Rússia Soviética. Estamos todos seguros, e nós sabemos, que o povo trabalhador da Ucrânia vai optar pela mais estreita união fraterna conosco. Cumpram com seu dever, soldados vermelhos, comandantes, comissários. Morte aos agressores e opressores ─ os denikinistas, os senhores de terras, os capitalistas e os culaques! “Vida longa ao Exército Vermelho! Vida longa à Ucrânia Soviética livre e independente!”
Entre junho de 1920 e março de 1921, o Exército Vermelho entrou em Kiev e a Polônia teve de reconhecer a derrota para a Rússia Soviética e a sua soberania sobre toda a região da Ucrânia até o Donbass e a Bielorrússia. Finalmente, em 30 de dezembro de 1922, foi criada a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, integrada pela Rússia, Ucrânia, Bielorrússia e a Transcaucásia. A Novorrússia (predominantemente operária) passou para a jurisdição da República Socialista Soviética da Ucrânia, que era dominada por uma população rural, pequeno-burguesa e nacionalista no oeste.
O coração industrial da Rússia e a luta contra o nazismo na II Guerra Mundial
A Novorrússia, ou Donbass (Bacia do Rio Donets), se tornou o centro de desenvolvimento econômico do Império Russo após a Guerra da Crimeia (1853-1856), quando se fortaleceu a produção das indústrias de carvão e aço ─ principais riquezas da região, junto com ferro e metal ─ através de uma parceria com o capitalista britânico John James Hughes, que levou 300 mil operários galeses, centenas de especialistas em mineração e todo o equipamento necessário para o Donbass. Mais tarde, a região também recebeu investimentos franceses, belgas e alemães, bem como uma força de trabalho proveniente de toda a Rússia e de outros países da Europa. Há na região importantes reservas de carvão, ferro, gás natural, petróleo, bauxita, mercúrio, níquel, titânio e zinco.
Lênin considerava o Donbass como “um dos principais centros industriais” da Rússia e que ele seria a locomotiva para puxar a grande indústria no país dos sovietes, pois ali existiam empresas que inclusive rivalizavam em termos de qualidade com as europeias. Seria “completamente impossível restaurar na Rússia a grande indústria para construir realmente o socialismo” sem o Donbass, que “era o centro, a real base da nossa inteira economia”, a “nossa fortaleza”. A região era tão vital para a revolução que Lênin não a considerava um “simples distrito, mas um distrito sem o qual a construção do socialismo permaneceria como um pio desejo”.
Várias línguas ali eram faladas, embora o russo predominasse nas cidades, e a população de Donbass tornou-se majoritariamente operária e multiétnica, extremamente heterogênea, ao contrário dos camponeses do ocidente, zona mais agrícola, na órbita de Kiev, e com os quais nunca estiveram em bons termos de entendimento. Os ucranianos étnicos de Iuzovka/Donetsk muito pouco contribuíram para seu crescente desenvolvimento industrial e de toda a área de Donbass, que abrangia Luhansk, Dnipropetrovsk, Zaporizhia, Mykolaiv, Yekaterinoslav, Kherson, Odessa, e em outras oblasts do Império Russo. (Bandeira, 2022, p. 217).
“Mas o Donbass era essencialmente russo”, segundo o historiador Theodore H. Friedegut, citado por Moniz Bandeira, porque os “russos povoaram e deram à região seus músculos trabalhadores”. Quando estive no Donbass, em meados de 2022, visitei uma mina de carvão em Krasnodon, na República Popular de Lugansk. Os diretores da mina e do sindicato local contaram que na era soviética o governo concedia bons salários aos mineiros, o que atraiu muitos trabalhadores para a cidade e aumentou a sua população. Foi também de Krasnodon, que já era um centro industrial da região nos anos finais do Império Russo, de onde saiu a maioria dos mineiros de carvão que participaram da revolução de outubro e logo em seguida ingressaram no Partido Comunista e no Exército Vermelho.
Krasnodon foi invadida em 20 de julho de 1941, pouco depois que a Alemanha de Adolf Hitler decretou a Operação Barbarossa para conquistar a União Soviética em meio à II Guerra Mundial, dando início ao que os russos chamam de Grande Guerra Patriótica. Os nazistas esmagaram a resistência operária e estudantil na cidade, com brutalidades que foram narradas por Elena Stechenko, guia do Museu da Molodaya Gvardiya, a guarda juvenil que foi formada para combater os invasores e que, após feitos heróicos e um martírio histórico, libertou a cidade em 14 de fevereiro de 1943.
As atrocidades que se seguiram à invasão da Ucrânia, contudo, não foram obra somente dos alemães. Contaram com a colaboração dos próprios ucranianos, a maioria deles da região ocidental da então república soviética. Uma parte saudou as tropas da Wehrmacht na esperança de que os libertaria da opressão stalinista, responsável pelo Grande Terror e a coletivização forçada de terras na década de 1930 que causaram a morte de milhões de pessoas. Outra parte, no entanto, colaborou ativa e ideologicamente com os alemães para exterminar os judeus, os russos, os comunistas e criar um Estado ucraniano independente aliado do III Reich. Seu líder era Stepan Bandera, que estava à frente da Organização dos Nacionalistas Ucranianos (OUN) e do Exército Ucraniano Insurgente (UPA). Outro chefe da OUN era Andriy Melnyk. Ambos trabalhavam como agentes da Alemanha. Segundo o documento “Guerra Civil na Ucrânia: 2014-2022”, da Russotrudnichestvo e da Fundação para o Estudo da Democracia, que tive acesso na Rússia, Melnyk enviou uma carta ao próprio Hitler, em 7 de julho de 1940 ─ portanto, antes da guerra contra a URSS ─, chamando a Wehrmacht de “nosso libertador” e expressando a vontade de “criar uma unidade militar ucraniana” para combater junto aos alemães. Com efeito, após a invasão foram criadas dentro da Wehrmacht e das Waffen-SS a Divisão SS-Galichina, a 14ª Divisão de Voluntários SS e os batalhões Nachtigall e Roland. Os colaboradores ucranianos foram responsáveis pelo extermínio de 100 mil pessoas em 1941 e outras 100 mil em 1943, dentre outros massacres. Até o final da guerra, 1,3 milhão de prisioneiros de guerra russos capturados na Ucrânia foram executados pelos nazistas.
Nos anos mais recentes, os responsáveis por esses crimes vêm sendo homenageados pelo Estado ucraniano, que batiza praças, ruas e avenidas com seus nomes. Grupos com forte influência sobre a política ucraniana são inspirados ideologicamente pelos colaboradores nazistas, como o Svoboda, que até 2004 chamava-se Partido Nacional-Socialista da Ucrânia, o Praviy Sektor e o Batalhão Azov.
Quando a guerra de 1941 a 1945 terminou, a Ucrânia estava devastada. O Donbass, parque industrial da Ucrânia e da URSS, voltou a crescer industrialmente ao longo dos anos, mas a partir do final da década de 1960 esse crescimento começou a desacelerar e a estagnar. Era a única região da Ucrânia que vencera o atraso, mas até o Donbass, com a separação da Ucrânia da Rússia ao se desmantelar a União Soviética, em 1991, amargou um forte empobrecimento. A economia da Novorrússia era dependente das exportações de carvão, aço, metais e máquinas pesadas para o mercado russo, cuja indústria bélica era fartamente alimentada pela produção do Donbass. Na década de 1990, dois terços da indústria de defesa russa instalada na região foram deslocados para dentro do território russo, reduzindo em 60% a importação de maquinaria e armamentos provenientes do Donbass.
A Ucrânia como grande prejudicada pela tentativa de devastação da Rússia
“O período de Iéltsin era uma vergonha nacional. Na realidade, o que nós, russos, pensamos? Muita gente pensa que duas pessoas na história da Rússia moderna merecem ir para o inferno, inferno permanente: Gorbatchov e Iéltsin. Uma vez uma senhora brasileira me perguntou: ‘por que na Rússia não há monumentos para Gorbatchov, se ele lhes deu liberdade?’. Quando nos fazem perguntas assim, a gente ri. Que tipo de liberdade? Liberdade de hipoteca com juros altíssimos? Liberdade de ganhar uma miséria? Liberdade de quê? Liberdade de expressão? Tudo bem, a gente pode falar qualquer coisa. Mas quem escuta? Então, podemos dizer que venderam um grande e forte país pelos jeans e Coca-Cola. As pessoas que queriam o capitalismo experimentaram uma grande desilusão.”
Foi com essa indignação que Varvara Kuznetsova, cientista política e pesquisadora da Academia de Ciências da Rússia, respondeu à minha pergunta a respeito do significado da queda da URSS e da implantação do capitalismo na Rússia.
Dois anos antes da dissolução da URSS, em 1989, segundo o New York Times de 4 a 5 milhões de pessoas estavam abaixo da linha da pobreza ─ aumentada com as políticas de incentivo capitalista de Gorbatchov. Cinco anos depois, um terço dos russos estava nessa situação. Iéltsin, imposto pelos grandes bancos internacionais para liderar a entrega das riquezas da Rússia, privatizou mais de 225 mil empresas e, em 1998, oito em cada dez fazendas haviam falido e 70 mil fábricas estatais haviam fechado. “As ‘reformas econômicas’ da Rússia podem reivindicar o mérito pelo empobrecimento de 72 milhões de pessoas em apenas oito anos”, escreveu Naomi Klein em seu livro A doutrina do choque. Mas Iéltsin era um alto burocrata do Partido Comunista da União Soviética e do Estado Soviético, assim como alguns dos principais membros de sua equipe econômica que, sob a supervisão do FMI e do Banco Mundial, implementaram a terapia de choque neoliberal. Conforme Lenina Pomeranz, os responsáveis econômicos pela política de Iéltsin tinham “posição na nomenklatura soviética”. “Todos os membros do grupo eram graduados em nível universitário e leais acólitos do partido, pelo qual eram periodicamente designados para viagens ao exterior. Isto permitiu-lhes familiarizar-se com academias ocidentais, nas quais se apresentavam como liberais ocidentalizados, com domínio das teorias econômicas predominantes” (Pomeranz, Do socialismo soviético ao capitalismo russo, 2018, p. 176).
A selvageria capitalista matou 10% da população russa nos anos mais difíceis, sob a presidência de Bóris Iéltsin. Por outro lado, aumentaram os índices de suicídio e assassinato, de alcoolismo, de pessoas drogadas e da disseminação em massa do HIV. “Provavelmente por isso o que o Putin propôs, que não era nada ideal, mas era algo diferente daquilo que vivemos nos anos 90, teve sucesso”, disse ainda a pesquisadora Varvara.
Em meio a uma crise sem precedentes, motivada pela catástrofe econômica e social, Iéltsin teve de renunciar, em 1999, e em seu lugar assumiu Vladimir Putin, ex-agente da KGB. A Rússia vivia uma instabilidade política enorme e, apesar dos duríssimos ataques às suas condições de vida, os trabalhadores realizavam mobilizações multitudinárias pelo restabelecimento do estado operário e de seus direitos. Putin foi escolhido para tentar estabilizar a situação e isso só poderia ser feito contendo os trabalhadores e também a orgia neoliberal. Reestatizou empresas-chave dos setores de gás, petróleo e aviação, como a Rosneft, a Yukos (incorporada àquela), a Gazprom e a Aeroflot e criou a RZD para controlar o sistema de transporte. Sua política, desde então, começou a se chocar com os interesses dos grandes monopólios capitalistas internacionais, que haviam ordenado a espoliação da Rússia.
Se a Rússia foi devastada pelo choque neoliberal, da economia ucraniana não restou quase nada. Um país que vivia da produção industrial do Donbass e que dependia das exportações para a Rússia (agora com poucas condições de importação), a Ucrânia chegou a ter uma contração de até 22,7% de sua economia entre 1991 e 1996, com hiperinflação e declínio do PIB per capita. Ainda em 1990, no início do processo de privatização, o governo ucraniano fechou 12 mil fazendas coletivas e estatais, jogando para o olho da rua mais de 40% da população rural ─ que foi reduzida em 2,7 milhões de pessoas entre 1991 e 2013. Conforme Moniz Bandeira (pp. 253-254),
A dívida pública da Ucrânia havia saltado então de U.S.$ 550,8 milhões, em 1992, para U.S.$ 13,9 bilhões, em 1999, e mais de U.S.$ 30 bilhões, em 2007. A dívida per capita escalara de U.S.$ 10,6, em 1992, para U.S.$ 282,1, em 1999; U.S.$ 498, em 2005; e U.S.$ 827, em 2010.
Após a crise de 2008, a dívida externa aumentou de ano para ano, a grívnia (moeda nacional) desvalorizou, as reservas de ouro caíram pela metade e o país correu o risco de não conseguir pagar mais as suas obrigações com os grandes bancos internacionais, responsáveis pela espoliação de sua economia. O PIB era menor do que quando era parte da URSS, o PIB per capita estava no nível do da Namíbia, com o mais baixo nível de renda de toda a Europa, e 25% da população caiu abaixo da linha da pobreza.
Tudo isso foi feito com apoio do governo dos EUA e de suas entidades de inteligência como a CIA, de “ajuda humanitária” como a USAID e de ONGs vinculadas ao “Estado profundo” norte-americano, bem como dos grandes capitalistas. No final de 2013, a então sub-secretária de Estado dos EUA para a Europa e Eurásia, Victoria Nuland, revelou que seu governo gastou, desde 1991, mais de 5 bilhões de dólares no “desenvolvimento das instituições democráticas” e na “promoção da sociedade civil”. Os dois primeiros presidentes da Ucrânia, por exemplo, Leonid Kravchuk (1992-1993) e Leonid Kutchma (1994-2005), eram ligados diretamente ao especulador financeiro George Soros, que despejou 100 milhões de dólares em ONGs ucranianas entre 1990 e 2010. Assim como na Rússia, apossaram-se da economia antes estatal os antigos membros da burocracia stalinista, que passaram a ser chamados de oligarcas (embora a imprensa internacional somente se refira a eles quando fala sobre a Rússia). Essas organizações foram responsáveis pela “Revolução Laranja” de 2004, uma espécie de golpe de Estado com o objetivo de impedir a vitória nas eleições presidenciais de Viktor Yanukovych, ex-governador do oblast de Donetsk e membro do Partido das Regiões, um partido nacionalista muito forte no Donbass e que buscava melhores relações com a Rússia. O golpe deu certo e Viktor Yushchenko saiu vitorioso, assumindo em janeiro de 2005 a presidência do país. Ele tinha a pretensão pública de se integrar à União Europeia e à OTAN. Reportagem da agência de notícias Associated Press revelou que a “Revolução Laranja” havia sido financiada desde 2003, com mais de 65 milhões de dólares despejados pelo governo Bush em organizações da “sociedade civil” ucraniana e a própria viagem de Yushchenko aos EUA na época das eleições havia sido paga com parte daquele dinheiro.
Concomitantemente, o imperialismo norte-americano procurou, desde o final da década de 1980, colocar a Ucrânia contra a Rússia. Em 1994, o presidente norte-americano Bill Clinton (1993-2001) ofereceu lugar na OTAN à Ucrânia, assim como já estava fazendo com os demais antigos membros do Pacto de Varsóvia. Os EUA haviam prometido à Rússia que não expandiriam a OTAN para perto de suas fronteiras, mas, como tudo o que diz o imperialismo, aquilo não passava de uma mentira. Apesar das vacilações dos governos ucranianos, que sabiam da dependência econômica com relação à Rússia, em 1997 iniciou-se o processo para a entrada na OTAN, quando a Ucrânia se tornou um “parceiro diferenciado” da aliança. Em 2009 essa “parceria” (ou melhor, submissão) chegou a um novo nível, quando foi criada a Comissão OTAN-Ucrânia. Era previsível a entrada da Ucrânia na OTAN, mais cedo ou mais tarde. Em 1999, ingressaram na aliança Polônia, Hungria e República Tcheca. Em 2004, foi a vez de Bulgária, Romênia, Eslováquia, Eslovênia e as três repúblicas do Báltico ─ Estônia, Letônia e Lituânia ─ que antes eram parte da URSS. Albânia e Croácia aderiram em 2009, seguidas de Montenegro (2017) e Macedônia do Norte (2020). Ao contrário do que os EUA haviam prometido à Rússia, simplesmente todos os novos membros da OTAN após a chamada “Guerra Fria” são países a leste da Alemanha.
O golpe de 2014 e o início da guerra no Donbass
No entanto, Yanukovych conseguiu se eleger presidente em 2010, ao derrotar Yulia Tymoshenko, uma empresária corrupta que havia liderado a revolução colorida de 2004. Aquela foi uma eleição muito polarizada, quando Yanukovych obteve 48,95% dos votos, contra 45,47% de votos para sua adversária. Todo o norte e o oeste da Ucrânia (mais atrasados) votaram majoritariamente na candidata ligada aos capitalistas estrangeiros, enquanto toda a região da Novorrússia (Donbass), desde Odessa até a Carcóvia, votou em Yanukovych ─ que obteve mais de 75% do eleitorado de Donetsk, Lugansk e da Crimeia. Esse mapa eleitoral coincide perfeitamente com o mapa linguístico da Ucrânia, onde a maior parte da população de todas as regiões da Novorrússia fala o russo como língua nativa, o que não ocorre no norte e oeste do país.
O governo de Yanukovych caracterizou-se por uma reaproximação com a Rússia, fazendo acordos com Moscou que objetivavam retomar a industrialização da Ucrânia e sua modernização tecnológica e bélica e alcançando uma redução de 30% no preço do gás, se comparado ao mercado internacional, em troca da renovação do controle russo da base naval de Sevastopol, na Crimeia, até 2042. Ele tentava se equilibrar entre a Rússia e as potências imperialistas, tendo adquirido, logo em seu primeiro ano de mandato, um empréstimo de 15 bilhões de dólares do FMI, que teve de devolver por não conseguir cumprir com as exigências decorrentes deste, que implicavam nos cortes drásticos do investimento público com programas sociais e pensões, enxugamento do funcionalismo e privatizações.
A Rússia era o principal parceiro comercial da Ucrânia, para onde iam 27% de suas exportações e de onde vinham 32% de suas importações em 2013. Por isso Yanukovych, após muitas negociações e pressões, recusou a entrada da Ucrânia na União Europeia, que tinha pouco a oferecer ao seu país a não ser obrigações de cortes de gastos para se adaptar ao padrão europeu, que custariam 160 bilhões de dólares aos cofres públicos, e faria o país romper importantes acordos com a Rússia, vitais para qualquer tentativa de sustentabilidade econômica. Isso ocorreu em novembro de 2013. No mesmo mês, começaram as manifestações pedindo a renúncia de Yanukovych, organizadas pela embaixada dos EUA em Kiev, capitaneada pelo embaixador Geoffrey R. Pyatt, e por ONGs financiadas pela USAID, NED, Freedom House e Open Society, dentre outras entidades vinculadas diretamente ao governo norte-americano e a grandes capitalistas internacionais. George Soros orgulhou-se de financiar aquelas manifestações.
Participaram daqueles protestos de rua na Praça Maidan, centro de Kiev, a sub-secretária de Estado dos EUA, Victoria Nuland, e dois senadores, John McCain (Partido Republicano) e Christopher Murphy (Partido Democrata), além do embaixador Pyatt. Como se não bastassem as ONGs imperialistas e os políticos norte-americanos, os protestos contavam com um componente a mais: grupos paramilitares de extrema-direita neonazistas, seguidores dos colaboracionistas da ocupação da Ucrânia durante a Grande Guerra Patriótica, como o Svoboda, o Batalhão Azov e o Praviy Sektor. Esses grupos foram responsáveis por radicalizar os protestos, assaltando sedes do governo e destruindo monumentos soviéticos. Elementos dispararam contra os próprios manifestantes e a culpa recaiu sobre a polícia ─ ao contrário do que certamente ocorreria em qualquer país que não estivesse ameaçado de um golpe por praticar a política “correta” na visão do imperialismo. Manifestantes e policiais foram mortos pelos franco-atiradores, que agiram para responsabilizar Yanukovych, assim como a direita golpista fizera em 2002 em Caracas, durante os protestos que davam suporte ao golpe de Estado contra Hugo Chávez.
Os protestos golpistas surtiram o efeito desejado. Yanukovych fugiu de Kiev na madrugada de 21 para 22 de fevereiro. O golpe estava consumado. No dia seguinte, a Rada, tomada pelos golpistas, derrubou o caráter especial do russo como a segunda língua oficial da Ucrânia. Estava iniciada, oficialmente, a longa temporada de caça aos russófonos.
A Rússia agiu rápido contra o rompimento inevitável por parte do novo governo do acordo sobre a base naval de Sevastopol e, sabendo que 80% da população da Crimeia (que era formada por 60% de russos étnicos e 25% de ucranianos russófonos, sendo o restante composto por tártaros) apoiava a incorporação ao seu território, ocupou a península militarmente após um referendo organizado de forma independente (embora possa ter havido apoio russo) onde 96,77% dos 83,1% dos votantes decidiu retornar à Federação Russa. De fato, a Crimeia sempre havia sido da Rússia, desde a conquista por Catarina II. Em 1954, Nikita Khrushchev havia transferido a sua jurisdição para a Ucrânia em um ato burocrático e, logo após a dissolução da URSS, em 1992, a Crimeia declarou independência com relação à Ucrânia, revogada por Kiev em 1995. Já haviam sido realizadas manifestações populares e, inclusive, milícias populares haviam sido formadas, antes da reincorporação à Rússia, exigindo a volta para a Federação Russa e repudiando os golpistas de Kiev.
Também se insurgiram contra o golpe em Kiev os habitantes de toda a Novorrússia, o Donbass. Mais de 30 cidades exigiram referendos autonomistas, principalmente em Donetsk, Lugansk, Carcóvia e Odessa. Em março e abril, manifestações de massas foram realizadas e, finalmente, os trabalhadores tomaram de assalto as sedes dos órgãos de repressão ─ controlados pelos golpistas de Kiev ─, chamaram uma sessão do Conselho Regional (Soviete do Oblast) em Donetsk, e depois em Lugansk, e votaram pela declaração de independência e da formação da República Popular de Donetsk e da República Popular de Lugansk. Em 11 de maio, foram realizados dois referendos, um em Donetsk e outro em Lugansk, e os dois resultaram no apoio à criação das duas repúblicas (89,07% em Lugansk e 96,2% em Donetsk). Embora a população das duas repúblicas que acabavam de surgir exigisse a unificação com a Rússia, Vladimir Putin não as reconheceu e não forneceu apoio público, tentando conciliar com a ditadura que se estabelecia em Kiev, com a União Europeia e com os EUA/OTAN. Mas estes não queriam conciliação. Logo, o exército ucraniano foi enviado para suprimir as rebeliões no Donbass, reforçado pelos paramilitares e milicianos nazistas e mercenários estrangeiros, com financiamento da OTAN. Em Odessa, os paramilitares nazistas executaram um massacre no dia 2 de maio, encurralando dezenas de manifestantes que estavam nas ruas contra o golpe dentro da Casa dos Sindicatos, na qual atearam fogo, matando ao menos 48 pessoas. As forças de Kiev realizaram bombardeios indiscriminados contra a população civil de Donetsk e Lugansk e quase conseguiram recuperar totalmente as duas regiões, protegidas apenas pelos voluntários das milícias populares e entre 3.500 a 6.500 voluntários provenientes da Rússia.
Após os primeiros meses de conflito, muito sangrentos, a guerra foi se estabilizando, sem grandes mudanças no terreno, com as assinaturas dos Acordos de Minsk ─ entretanto, pouco efetivos. Porém, os combates nunca cessaram e, conforme levantamento da própria Organização das Nações Unidas, 13 mil pessoas haviam perdido a vida na guerra até o começo de 2019.
A Rússia entra na guerra
A OTAN estava muito perto. Constituía uma ameaça sem precedentes à soberania nacional da Rússia, a maior desde a invasão da Alemanha nazista. O país se encontrava ─ e ainda se encontra ─ cercado por bases militares da aliança desde o Báltico, descendo o leste europeu inteiro, passando pela Turquia e Oriente Médio, atravessando a Ásia Central e chegando até a Península Coreana. O maior território nacional do mundo estava completamente rodeado por milhares de soldados (mais de 30 mil atualmente) e armas de longo alcance apontadas para si. A OTAN realizava exercícios militares constantes nesses países, uma clara preparação para uma eventual incursão em território russo.
Victor Ternovsky, jornalista da agência de notícias Sputnik News, me explicou em Moscou qual era a situação da Rússia no início de 2022:
Em dezembro de 2021 a Rússia apresentou o rascunho de um novo acordo sobre a nova arquitetura de segurança na Europa. Enviou esse esboço à OTAN e aos EUA dizendo que era preciso assinar esse documento porque, do contrário, não ficaria de braços cruzados diante da expansão da OTAN. E o que disseram à Rússia? Praticamente a ridicularizaram. Porque o secretário-geral da OTAN, o senhor [Jens] Stoltenberg, disse em fevereiro deste ano na Conferência de Segurança de Munique que, se a Rússia quer menos OTAN nas suas fronteiras, ela vai ter mais OTAN nas suas fronteiras. E havia um perigo real da entrada da Ucrânia na OTAN. Em 2019, o presidente [Vladimir] Zelensky adotou uma nova estratégia militar para a Ucrânia, em que ela se compromete a ingressar na OTAN. O que isso significa para a Rússia? Se a OTAN instalasse mísseis na Ucrânia, e se eles fossem mísseis hipersônicos, em cinco minutos atingiriam Moscou. Além disso, a Ucrânia tinha planos não somente de recuperar o Donbass, mas também de recuperar a Crimeia. Se a Ucrânia fizesse isso já como membro da OTAN, e se a Rússia revidasse, a Rússia entraria em conflito oficial contra toda a OTAN. Por isso Putin disse que a Rússia não poderia esperar, não se poderia repetir o erro que levou à invasão da Alemanha nazista à União Soviética, porque a URSS não levou o risco de invasão suficientemente a sério, e Putin disse publicamente que isso representou um duro golpe à União Soviética principalmente nos primeiros meses da guerra. Aprendemos com o erro.
Para justificar a sua intervenção na Ucrânia a fim de evitar a evidente aliança com a OTAN, realizando o objetivo de estabelecer uma fronteira direta de mais de 2 mil quilômetros com a Rússia, o presidente Putin anunciou no final de fevereiro o reconhecimento das repúblicas populares de Donetsk e de Lugansk. Com isso, avalizou-se o direito dessas duas repúblicas pedirem ajuda militar da Rússia no conflito com a Ucrânia e os novos parceiros assinaram um acordo de cooperação militar que permitiu à Rússia adentrar os territórios da República Popular de Donetsk e da República Popular de Lugansk, em 24 de fevereiro. Iniciou-se a Operação Militar Especial de Desmilitarização e Desnazificação, com o objetivo público de libertar 100% do território das duas repúblicas (equivalente ao seu território quando ainda eram oblasts da Ucrânia) da ocupação ucraniana, suprimir as organizações paramilitares nazistas e desmantelar o armamento pesado direcionado a um ataque contra a Rússia.
A operação foi saudada com muita animação pelos povos de Donetsk e de Lugansk, que finalmente saíram do isolamento internacional e viram mais do que nunca a proximidade da integração à Federação Russa. Em um mês, os russos ocuparam boa parcela do Donbass ─ partes da Carcóvia, Lugansk, Donetsk, Zaparojia e Kherson ─, bem como territórios do norte e nordeste da Ucrânia (parte dos oblasts de Sumy, Chernigov e Kiev) e chegaram às portas da capital no final de março. Mas tiveram de recuar dessas regiões para concentrar as forças no Donbass.
O imperialismo foi pego de surpresa. Embora houvesse a informação de que os russos iniciariam a investida no leste, ficou claro que não havia muito o que fazer. Putin peitou a OTAN, que, após a humilhação sofrida seis meses antes diante do Talibã no Afeganistão, demonstrou clara fraqueza se comparada às expectativas que se tinha. Seria um risco muito grande, principalmente para o imperialismo europeu, iniciar uma guerra convencional aberta contra a Rússia, o que certamente geraria um caos igual ao da II Guerra Mundial no continente europeu, levando o conflito para a Europa Ocidental, com risco de bombardeios contra as principais capitais pelos mísseis hipersônicos de Moscou. Embora houvesse um financiamento bilionário de material para o presidente Vladimir Zelensky (2019-), sucessor de Petro Poroshenko (2014-2019), que, por sua vez, sucedeu o interino Alexander Turtchynov (fevereiro a junho de 2014), o imperialismo nada pôde fazer para evitar a contundente ação russa. A resposta dos EUA e da Europa veio em forma de uma massiva propaganda de guerra a fim de apontar os russos como vilões do calibre de Adolf Hitler e de sanções econômicas e boicotes (“cancelamento”) a tudo o que fosse russo nos âmbitos da política, diplomacia, esporte, tecnologia, cultura, culinária e tudo o que fosse possível relacionar com os “russos malvados”.
Nada disso funcionou efetivamente. O fechamento de empresas multinacionais como Nike, Calvin Klein, Victoria’s Secret, McDonald’s, Renault, Toyota, entre outras, foi um baque na economia russa e na força de trabalho do país, mas foi pequeno e temporário, bem como a expulsão da Rússia do sistema SWIFT. O governo russo já vinha ganhando experiência na condução da economia sob sanções desde a reincorporação da Crimeia, em 2014. Naquele momento, também ocorreram pesadas sanções dos países imperialistas contra a nação eurasiática, que teve de formular uma política econômica mais protecionista e autóctone a fim de evitar ao máximo a dependência anterior do mercado internacional, controlado pelos monopólios ocidentais, para que não caísse refém das chantagens imperialistas ao ter de abandonar qualquer aspiração à independência e, portanto, sobrevivência em um mundo de cada vez mais ferozes investidas dos grandes monopólios para escravizar os países atrasados.
Conforme o FMI em outubro daquele ano, a economia russa seria a mais afetada de 2022, com contração de 3,4 pontos. Algo absolutamente natural, uma vez que o país sofre um conjunto de mais de 16 mil sanções de todas as espécies (principalmente sobre suas exportações de petróleo, gás e carvão), o que constitui quase um bloqueio econômico. Contudo, dado o volume das sanções, uma contração como essa representa uma resistência da economia russa às pressões do mercado internacional ─ e até mesmo uma recuperação, uma vez que o Banco Central da Rússia, em abril, previa uma redução de 8-10% do PIB. Na verdade, todos os países europeus experimentaram tendência redução do crescimento e Alemanha e Itália, que não são vítimas de sanções e cuja economia é mais diversificada que a russa, também tiveram contração.
Em abril de 2022, a Fox Business trazia um artigo alarmante: “Economia russa está prestes a entrar em colapso com sanções cobrando o seu preço”. Não foi o que vi quando passei três meses na Rússia, entre abril e junho. Os cidadãos de diversas cidades com quem conversei (Moscou, São Petersburgo, Níjni Novgorod, Rostov do Don) disseram que os preços haviam subido e a vida havia se tornado mais difícil. Mas para quem passou por inflações de até 85%, como em 1999, no auge do neoliberalismo no país, a crise econômica aprofundada com as sanções está longe de ser desesperadora. Embora a Rússia seja um país cuja economia gira em torno da exportação de commodities como petróleo e gás natural, a industrialização ocorrida no final da era czarista e, principalmente, após a revolução proletária de 1917, transformou o país em um dos mais desenvolvidos entre as nações de capitalismo atrasado. Por isso não há uma escassez de produtos básicos nos supermercados como ocorreu na Venezuela, vitimada por sanções igualmente criminosas. O poder de compra é semelhante ao do Brasil, com a diferença de que a qualidade de vida ainda é bem melhor. O ano de 2022 foi certamente o mais difícil para a Rússia, mas, como visto, ela não foi tão afetada como seus inimigos gostariam que fosse. Em 2023, sua economia se recuperou e cresceu 3,6% – acima da Europa e dos EUA –, enquanto para 2024 o FMI já prevê uma elevação de cerca de 2,6%.
Além disso, a operação especial russa tem forte apoio popular. Pesquisa do Centro de Toda a Rússia para o Estudo da Opinião Pública, que foi realizada entre março e abril de 2022, ou seja, um mês depois da conflagração da operação, apontou que 74% dos russos apoiavam a decisão de Putin. O Instituto Levada, por sua vez, informava que as ações do presidente eram apoiadas por 83% da população. De fato, é notório que um dos motivos pelos quais Putin interveio no conflito no Donbass foi a pressão popular, porque os russos veem como irmãos os habitantes do sudeste da Ucrânia e estavam cansados de ver as notícias sobre a carnificina levada a cabo pelo exército e pelos nazistas ucranianos contra seus compatriotas ─ a maioria dos russos têm família na Ucrânia, particularmente no Donbass. Ademais, o sentimento antifascista no seio do povo russo é muito forte e mesmo as crianças da mais tenra idade já são ensinadas sobre a luta contra a invasão nazista entre 1941 e 1945, que deixou um saldo de 27 milhões de mortos. Os russos, portanto ─ incluindo os soldados ─, sempre estiveram motivados para o combate e para resistir às sanções econômicas.
A Europa entra em crise
O mesmo não pode ser dito sobre a população europeia. Ao longo dos meses que se seguiram ao início da operação russa na Ucrânia e às sanções europeias contra Moscou, a economia dos países da União Europeia foi se deteriorando rapidamente devido à retaliação da Rússia, que elevou o preço dos combustíveis. Assim, a União Europeia, que é dependente da importação dos combustíveis russos, não pôde deixar de pagar 54,5 bilhões de euros por seu petróleo, 46,4 bilhões por seu gás e 3 bilhões por seu carvão entre o início da operação na Ucrânia e o mês de outubro de 2022. As importações de gás natural liquefeito (GNL) aumentaram quase 20% no mesmo período em relação ao período equivalente em 2021, ao mesmo tempo em que o bloco europeu tenta ser independente do GNL russo caindo no colo dos exportadores norte-americanos. Entre o final de setembro e o começo de outubro de 2022, a Rússia combinou com a Arábia Saudita, e a Opec+ corroborou, a redução da produção de petróleo, o que elevou ainda mais o seu preço no mercado internacional, gerando indignação das grandes potências capitalistas. De fato, a partir da intervenção na Ucrânia, ao invés de ficar isolada, a Rússia tem ampliado o seu leque de parcerias, estreitando as relações com os países atrasados, principalmente na Ásia e Oriente Médio ─ enquanto as lideranças desses mesmos países estão muito descontentes com as pressões sofridas a partir dos EUA para que acatem as sanções contra Moscou. As próprias autoridades da União Europeia já demonstram há um ano e meio contrariedade com a política dos EUA para manter e ampliar as sanções, uma vez que veem-se manipuladas por Washington, que não depende das matérias-primas russas, ao contrário da Europa. Apesar disso, a União Europeia continua seguindo todas as ordens dos EUA para apoiar o regime de Zelensky.
Em outubro de 2022, a inflação na zona do euro chegou a 10,7%, embora atualmente ela tenha voltado a baixar. A energia teve uma inflação anual de 41,9%, seguida pelos alimentos, bebidas alcoólicas e tabaco. A Estônia foi o país da União Europeia que apresentou inflação mais elevada (24%) no ano da intervenção russa e no Reino Unido e Turquia os índices são os piores do século. Em entrevista concedida em novembro de 2022 ao jornal The Times, o ministro das Finanças britânico, James Hunt, previu que seu país enfrentará uma “recessão inevitável” por causa da Rússia. Na Alemanha, o instituto Ifo de pesquisa econômica baseado em Munique apontou uma perda de 64 bilhões de euros devido à crise energética em 2022, o equivalente a 1,8% do PIB alemão. Essa é a pior crise energética no país desde a década de 1970, de acordo com o instituto. Por sua vez, os trabalhadores suíços tiveram a maior perda do seu poder de compra dos últimos 80 anos.
Protestos multitudinários espalharam-se por todos os países do continente, contra a inflação, a alta galopante dos preços dos alimentos e das tarifas de luz, água e gás. Vários governos europeus estabeleceram limites de consumo de energia elétrica e gás. Os manifestantes na França, Alemanha, Áustria, Itália, Bélgica, República Tcheca e Grécia, dentre outros, culpam a agressão por parte de seus governos à Rússia como causa da deterioração do custo de vida, por causa de seu apoio financeiro e militar à Ucrânia e suas sanções à Rússia, que geraram a retaliação. Os protestos se iniciaram nos primeiros meses após o começo da operação russa e das sanções contra Moscou, depois começaram a se transformar em greves de massa de categorias importantes de trabalhadores, como os ferroviários e operários das docas no Reino Unido. No início de 2024, uma onda de protestos de agricultores tem abalado a maioria dos países europeus e seus motivos estão diretamente relacionados com as razões dos protestos de 2022 e de 2023, isto é, com a crise gerada pela agressão contra a Rússia e a retaliação de Moscou.
A Rússia expressa a revolta das nações oprimidas contra o imperialismo
Em 28 de maio de 2014, o então presidente dos EUA, Barack Obama (2009-2017), proferiu um discurso na Academia Militar de West Point, em Nova Iorque, no qual resumiu sucintamente a política do imperialismo: “a agressão russa contra os antigos estados soviéticos debilita capitais na Europa, enquanto o crescimento econômico e o alcance militar da China preocupam seus vizinhos. Do Brasil à Índia, as classes médias em ascensão competem conosco, e os governos buscam um espaço maior nos fóruns globais.”
O imperialismo, particularmente o norte-americano, dominante desde o final da II Guerra Mundial, não aceita competição. Essa é a sua natureza, o monopólio. Monopólio de grandes conglomerados provenientes dos países capitalistas desenvolvidos, que controlam a economia mundial. Esse foi o motivo da chamada “Guerra Fria” contra a União Soviética e de todos os golpes de Estado promovidos nos países pobres. Foi por isso que o neoliberalismo foi imposto à Rússia nos anos 1990, bem como à China e ao Brasil. Foi por isso que o governo brasileiro sofreu a derrocada de 2016 e Pequim é vítima de uma guerra comercial com possíveis consequências militares. É por isso, também, que Joe Biden teve de vencer Donald Trump nas eleições de 2020 nos EUA.
O think tank mais influente do establishment norte-americano, a Rand Corporation, publicou, em 2019, um relatório no qual afirmava que a Rússia, apesar de todos os ataques sofridos por parte do imperialismo, continuava a ser um concorrente poderoso dos EUA em setores fundamentais, como revelou o analista italiano Manlio Dinucci. Ela considerava, corretamente, que a maior vulnerabilidade da Rússia estava em sua economia dependente das exportações de gás e petróleo. Por isso seria necessário impor severas sanções, que levariam os países compradores, particularmente os europeus, a consumirem a energia proveniente dos EUA.
Além de reduzir o poder de competitividade da Rússia, a lógica dos grandes monopólios capitalistas diz que os abundantes recursos naturais da maior nação do planeta não podem estar nas mãos de empresas russas. E a terapia de choque de Bóris Iéltin não foi suficiente para entregar essas riquezas nas mãos dos conglomerados internacionais, que deram com a cara na porta após Vladimir Putin ascender ao poder e retomar o maior controle do Estado sobre a economia.
O que a Rússia está sofrendo joga por terra a teoria reciclada da lata do lixo que aponta a Rússia como um país imperialista ─ os maoístas e hoxhaístas chamavam a URSS de “social-imperialista”. Ao seu lado estão os governos progresistas e os povos do mundo inteiro. Também não se sustentam as acusações de que Vladimir Putin e seus seguidores são de extrema-direita, apesar de crenças conservadoras do presidente russo e de a maioria dos russos também ser conservadora nos costumes. O próprio povo russo, contrariando os preconceitos espalhados pela imprensa imperialista, tem um forte sentimento progressista, de nostalgia do período soviético, mesmo com os inúmeros defeitos da burocracia stalinista. Esse sentimento vi também no Donbass, onde a experiência soviética serviu para os trabalhadores de Donetsk e de Lugansk estabelecerem estados livres do controle dos capitalistas, nos quais a propriedade estatal é predominante e as instituições do Estado são dominadas pelos cidadãos comuns e pelas organizações sindicais e populares.
Mesmo que eles agora tenham se integrado à Rússia, após sua população votar em massa pela unificação, a Guerra do Donbass continuará sendo uma expressão da tendência revolucionária da nossa era, agora impulsionada pela operação russa que abalou as estruturas do imperialismo europeu e mundial e incentiva os países oprimidos a seguirem o mesmo caminho e confrontarem a opressão que lhes é imposta – foi um dos fatores determinantes para o início da Operação Tempestade de al-Aqsa na Palestina. Não é possível prever quando a guerra vai terminar, e o envio de mais de 300 mil reservistas russos para o Donbass há um ano, junto com a integração de parte da região à Federação Russa, indica que Putin poderia avançar ainda mais sobre o território ucraniano, estendendo a crise econômica na Europa e os riscos de um conflito militar aberto com o imperialismo. Mas o próprio presidente russo demonstra que sabe muito bem onde está se metendo (a Rússia tem o melhor sistema de inteligência e informação do mundo) e as consequências que sua ação está gerando.
Em um discurso proferido na plenária final da 19ª Reunião do Clube Valdai, que reúne a nata da intelectualidade do establishment russo, Putin avaliou a profundidade da crise dos nossos tempos:
O colapso da União Soviética desconcertou o equilíbrio das forças geopolíticas. O Ocidente se sentiu o vencedor e declarou o estabelecimento de um mundo unipolar, no qual somente a sua vontade, cultura e interesses tinham o direito de existir.
Agora esse período histórico de dominação ilimitada do Ocidente sobre os assuntos mundiais está chegando ao fim. O mundo unipolar está sendo relegado ao passado. Nós estamos em uma encruzilhada histórica. Estamos provavelmente na década mais perigosa, imprevisível e ao mesmo tempo mais importante desde o final da II Guerra Mundial. O Ocidente é incapaz de governar a humanidade sozinho e a maioria das nações não quer mais tolerar isso. Essa é a principal contradição da nova era. Para citar um clássico, essa é uma situação revolucionária até certo ponto ─ as elites não podem e o povo não quer mais viver assim.
Estão preparados para a diversão?