Por que influenciadores-mirins são importantes para a circulação de mercadorias? Como tornam-se peças animadas de marketing, a custo muito baixo? Uma análise do labor infantil nas redes e da nova força de trabalho que ele cria: os seguidores
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“Mãe, imagine se o mundo fosse todo pixelado!? Seria incrível”. Foi com essa frase que o filho de 6 anos de uma das autoras deste artigo a confrontou com o imaginário de uma geração. A indagação sobre o mundo “real” (se é que ainda podemos dizer isso) convertido em definição pixelada de videogame, revela um tipo de influência que o ambiente digital pode exercer na infância. Entre a imaginação de um mundo pixelado até a vontade de fazer vídeos e compartilhar nas redes foi um caminho rápido. “Mãe, quero colocar um vídeo na internet”. Daí uma inversão: se não é possível transformar o mundo em pixels, a criança deseja virtualizar-se.
Testemunhar crianças socializadas nas redes sociais nos conta sobre nosso tempo, nos serve como lente de análise sobre aquilo que normalizamos enquanto formas de ser em um tipo de mundo. Mas, principalmente, pode nos servir como ferramenta para identificar o papel social da criança em tempos de capitalismo digital.
Mas, influenciar modos de vida que legitimem a produção e o consumo de mercadorias não nasce com as redes sociais. Os dispositivos que influenciam consumidores atravessam a história do capitalismo e se redimensionam a cada crise do sistema. Identificar tais dispositivos, suas formas e dinâmicas renovadas, nos ajuda a compreender o capitalismo e seu processo histórico, que depende da produção de sujeitos para reproduzir-se e reorganizar relações sociais subordinadas às demandas econômicas de cada época.
Qual seria a localização do influenciador-mirim digital no circuito do capital? E, mais especificamente, como tal sujeito internaliza uma racionalidade econômica funcional a tal circuito? A partir destas perguntas, pretendemos localizar o influenciador-mirim digital e seus seguidores no ciclo de acumulação do capital. Discutiremos a relação codependente e de retroalimentação entre influenciadores e seguidores através de um conjunto de práticas que os caracterizam como sujeitos produzidos pelo capitalismo contemporâneo, sobretudo pela esfera digital da economia. Tal relação é contextualizada como peça-chave da acumulação capitalista, com foco para a etapa necessária da circulação do capital, ou seja, da compra e venda das mercadorias, da garantia do seu “salto mortal” (Marx, 2013, p. 243) como momento crucial do processo de reprodução do capital e do capitalismo.
Nossa hipótese é que o influenciador-mirim vem se tornando, junto com a emergência das redes sociais, peça-chave para a etapa de circulação do capital e o mascote encarregado de performar um conjunto de práticas sociais que tem como efeito (e, ao mesmo tempo, estímulo) a internalização de uma razão econômica prescrita pela necessidade de aceleração da circulação do capital. […]
Influenciador-mirim digital: o mascote na influência do consumo
O influenciador-mirim digital tem sido tema de debate de algumas pesquisas, em sua maioria no campo do direito e ciências sociais. O foco de tais abordagens variam entre a denúncia da exploração do trabalho infantil (Oliveira, 2022), a intensificação da publicidade com as novas tecnologias (Efing, 2021), as relações de gênero na identidade digital (Marôpo, Miranda, Sampaio, 2018), a infância e a produção de novas subjetividades (Tomaz, 2017), a expansão das telas através de um modelo econômico (Azen e Bezerra, 2022) e as relações entre o trabalho reprodutivo e o trabalho digital (Jarret, 2016), entre outras.
De forma geral, o debate em torno do trabalho exercido pelos influenciadores-mirins digitais toca pouco no seu papel específico dentro do ciclo do capital como um todo. Para nós tal especificidade é importante para que se possa analisar o trabalho infantil no contexto digital e identificar a continuidade de uma racionalidade econômica que dribla regulamentações para garantir a reprodução do capital.
Neste artigo não nos dedicamos a uma análise dos perfis, dos conteúdos dos canais e as variações de cada plataforma dentro de um mesmo modelo de negócios. Focamos no debate mais abrangente em torno daquilo que unifica os exemplos citados como parte de uma cultura digital, caracterizada pelo capitalismo contemporâneo, sua demanda em acelerar a dinâmica entre produtividade e consumo através da reorganização das relações de trabalho e do papel da infância em tal reorganização.
Compreender como a reprodução da força de trabalho acontece em função das transformações tecnológicas é fundamental para analisar o papel da infância dentro do ciclo de acumulação do capital. A teoria do trabalho reprodutivo contribui amplamente para a teoria do valor, ao reivindicar que a força de trabalho não poderia existir e ser explorada sem que o trabalho doméstico estivesse em ação. A esfera doméstica é, portanto, fundamental para a reprodução do capital, como em Federici, (2011), Ferber e Nelson (1993), Folbre (2001), Fortunati (1995), Jarret (2016), Mies (1988), Picchio (1992).
Jarret (2016) atualiza o debate sobre trabalho reprodutivo usando o conceito de “dona de casa digital”. Trata-se do “ator que emerge das estruturas e práticas do trabalho ostensivamente voluntário dos consumidores, à medida que eles se expressam, compartilham opiniões (…) em mídias digitais comerciais, ao mesmo tempo em que agregam valor econômico para esses sites” (Jarret, 2016, p. 06). A autora aborda as dimensões do trabalho imaterial presente desde o espaço doméstico, suas associações com a mercadoria-audiência (Smythe, 1981) e sua contribuição para o circuito do capital. Tal debate é fundamental para este artigo, já que posicionamos o papel da infância como estruturante do trabalho exercido pela audiência. A “preparação das crianças para seu papel nas audiências” (SMYTHE, 1981, p. 236) demonstra o contexto em que tal preparação acontece e a importância da atenção do público infantil para a mercadoria audiência. O espaço doméstico e as funções familiares implicadas nele são o contexto central do trabalho da audiência (Smythe, 1982).
A partir da compreensão da família como instituição que organiza a invenção da infância (Ariès, 1975), nos interessa, principalmente, a relação da infância com a inauguração do sujeito consumidor. A presença da infância no centro da família consumidora caracteriza o sucesso da produção e consumo em larga escala e o enraizamento do consumismo através da publicidade em massa. A partir do aumento do consumismo e da publicidade em massa criaram-se “novas e tentadoras oportunidades de gastos. Esperava-se que os pais, quer pudessem ou não, treinassem (itálico nosso) as crianças como consumidores experientes” (Zelizer, 1985, p. 13).
O sujeito consumidor inaugura, portanto, a possibilidade de um tipo de trabalho camuflado por uma narrativa de direitos. Com os aparatos de comunicação, a criança passa a ser sujeito de direitos, de desejos e de vontades (Schor, 2009). Mas, é no século XXI que as novas tecnologias incrementam o estatuto de consumidoras de bens materiais e simbólicos com o título de produtoras e emissoras desses bens (Buckingham, 2007). É essa unidade de práticas que caracteriza aquilo que Tapscott e Williams (2006) chamaram de prossumidor.
Observamos, portanto, como a demanda de acumulação encontra brechas para cooptar e, ao mesmo tempo, produzir atividades exercidas no espaço doméstico enquanto formas de trabalho. No caso dos influenciadores-mirins, tais atividades consistem em práticas capazes de gerar informações para a produção, consumo e circulação de mercadorias online. É a partir do espaço doméstico que tais práticas são capturadas e compartilhadas nas redes, como constante exploração daquilo que crianças fazem em casa.
Nesse sentido, é relevante notar que a expansão das telas no espaço doméstico transforma, através do entretenimento audiovisual, “o lazer moderno e o próprio sujeito do lazer” (Azem e Bezerra, 2022, p.88). A cultura de massa, criadora de uma “cultura do lazer” (Morin, 2018, p.61), extrapola os limites entre lazer e trabalho. Tal extrapolação nos conta sobre como a infância torna-se, ao longo da história, funcional ao circuito do capital. No contexto digital, a cultura do lazer não estaria mais limitada ao ato de assistir, mas também como estímulo de produção de conteúdo. O ato de brincar diante das câmeras, capturar e compartilhar o lazer nas redes torna-se justificativa do não-trabalho e, ao mesmo tempo, capital lúdico (Tomaz, 2017), através do qual “o brincar é transportado do âmbito privado para o público” (Marôpo, Sampaio e Miranda, 2018, p. 185). Ou ainda, como diz uma mãe, produtora de suas filhas: “para elas, sempre será uma brincadeira. Eu trabalho” (Sayuri, 2018).
Até aqui, ressaltamos a importância do espaço doméstico como território onde o papel da infância se transforma em função da reorganização da força de trabalho. O que caracterizaria a esfera doméstica na contemporaneidade digital é sua função na produção de dados sobre consumo e, ao mesmo tempo, na produção de propaganda. A seguir, observaremos a propaganda na tarefa de atualizar o influenciador-mirim como papel que estimula o consumo e dinamiza a organização e previsão do comportamento consumidor.
O papel social da propaganda
A tarefa da propaganda em acelerar a etapa de circulação do capital acompanha a história do capitalismo e foi responsável por garantir que a produção em massa, mobilizada a partir da revolução industrial, encontrasse seu destino nos consumidores. Mais especificamente, é no pós-Segunda Guerra Mundial que a propaganda expande o seu mercado para o público infanto-juvenil que passa a exercer influência no consumo da família (Schor, 2009).
No documentário The Century of the Self, Curtis (2002) mostra como a grande recessão iniciada em 1929 e a preocupação com crises de superprodução no pós-guerra influenciaram as estratégias desse setor. O documentário demonstra como a década de 50 foi marcada pela tradução subversiva dos fundamentos da psicanálise para a propaganda, a fim de garantir a continuidade e a celeridade do consumo. A propaganda descobriria que precisava estimular as pessoas a transitarem de uma cultura da necessidade para a cultura do desejo. Tal estímulo vinha com uma promessa, a ideia de que o consumo motivado pelo desejo garantiria que o sujeito se expressasse no mundo, que sua interioridade mais íntima pudesse ser vista e percebida pelo outro. Assim, objetos irrelevantes, desnecessários, passaram a se tornar símbolos emocionais sobre como os sujeitos gostariam de ser vistos uns pelos outros. Comprar um produto deixava de ser mero consumo e se tornava ato de engajamento pessoal, da intimidade do eu, com aquele serviço ou produto.
Curtis (2002) adentra na origem dos mecanismos de previsão do comportamento consumidor, o que nos ajuda a compreender a lógica por trás do acúmulo e coleta de dados digitais nos dias de hoje. O documentarista mostra o desenvolvimento do marketing como modo de organização do mercado consumidor a partir do levantamento de dados da população. Todo um arcabouço de pesquisa, como os chamados “grupos focais”, as pesquisas de opinião e outros mecanismos de coleta de informações, começava a ser organizado para fazer a população falar sobre seus desejos em relação aos produtos. Falar sobre produtos se tornava um elemento chave para garantir a aceleração da circulação de mercadorias.
A ascensão dos influenciadores digitais nas redes sociais pode ser interpretada como a intensificação dessa lógica que está na origem da propaganda enquanto força motriz da circulação de mercadorias. Se antes a propaganda dependia das empresas de marketing para produzir e coletar informação sobre o mercado consumidor, agora as redes sociais se apresentam como um espaço onde tal produção de dados acontece de forma voluntária, “espontânea” e ininterrupta através da navegação dos usuários.
Falar sobre produtos como quem fala de si, falar de si como quem fala de produtos. Essa importante intersecção entre a propaganda e as demandas do mercado é intensificada hoje nas redes sociais. O sujeito como veículo de uma marca, que potencialmente é ele mesmo, atinge uma eficiência própria na dinâmica entre influenciadores e seguidores.
No processo de desenvolvimento da cultura influencer (Fuchs, 2022), como carro-chefe do marketing contemporâneo, os influenciadores-mirins caracterizam um dinamismo próprio. Desde que a propaganda televisiva começou a utilizar crianças em seus comerciais é notável a eficiência de persuasão ao consumo através da performance infantil. Os anos 90 no Brasil foi marcado pela utilização de crianças em comerciais e sua eficácia publicitária já que tais imagens “facilitavam a conquista da simpatia, tanto de pais quanto das próprias crianças, pois tendem a favorecer uma identificação entre as imagens e o público” (Monteiro, 2014, p. 56).
Se nesta etapa da popularização da televisão como mídia massiva a utilização de crianças nos comerciais já demonstrava “o interesse mercadológico de investir no poder de persuasão perante o público infantil e os pais/responsáveis” (Monteiro, 2018, p. 97), é relevante notar as transformações de tal caráter persuasivo no contexto das redes sociais.
Há, no caso dos influenciadores-mirins, um elemento novo: eles inauguram um tipo de socialização nas redes onde os indivíduos não são somente estimulados a serem ávidos consumidores, mobilizados pela irracionalidade “libertária” do desejo, mas também ávidos vendedores, mobilizados por uma racionalidade econômica onde cada respiro vira palco de vendas nas redes sociais. Os influenciadores-mirins seriam, portanto, performers de anunciantes (Fuchs, 2022), outdoors animados de marcas, que engajam seguidores que, por sua vez, produzem atenção e aceleram a venda de mercadorias já produzidas. Mais ainda, tal aceleração é intensificada já que agora a “naturalidade” e “espontaneidade” dos conteúdos gravados desde o espaço doméstico, escamoteiam a narrativa comercial, facilitam a “simpatia” entre público e imagens de crianças e impulsionam o desejo de consumo.
Há, neste sentido, uma mudança na percepção do consumidor sobre a relação entre a performance do sujeito do comercial e o produto sendo vendido. Na contemporaneidade digital, a figura da celebridade é atravessada pelas chamadas “microcelebridades” (Senft, 2008), caracterizando uma alteração importante na produção de comerciais. “As novas tecnologias, o barateamento e facilitação dos processos de produção, a abertura dos canais de circulação e divulgação de produtos possibilitam quase a qualquer um se lançar em rede” (França, 2014, p. 29).
Se antes as empresas de marketing e as agências de publicidade precisavam mobilizar todo um capital para a produção de dados, de comerciais para os meios de comunicação (rádio, televisão, jornais, revistas etc.) e para pagar suas equipes e equipamentos, agora o influenciador digital torna-se responsável por essa tarefa a um custo muito baixo. É ele agora o próprio produtor da cena e quem garante a captura de atenção de potenciais consumidores dos produtos que divulga. Dessa forma, o influenciador reduz os chamados “falsos custos” (Marx, 2014, p.235), contribui para a economia de capital como um todo e torna-se peça fundamental para a etapa da circulação.
A tendência à concentração e centralização da produção e da distribuição de conteúdos culturais como forma de reduzir riscos ao capital (Bolaño, 2000) não seria algo novo, mas muda de forma. Agora, como resultado dessa prática, as megacorporações (e seus donos) proprietárias das plataformas de comunicação e informação digital passam a acumular capital através do número de anunciantes que usam os influenciadores como veículos de circulação de seus produtos. As agências de publicidade vão se tornando obsoletas enquanto centralizadoras de um mercado de produção de conteúdo para propaganda dando espaço às agências de marketing digital, as quais passam a organizar a relação entre anunciantes e influenciadores-mirins digitais.
Neoliberalismo como utopia liberal
A fim de colaborar com o debate sobre trabalho infantil focamos na identificação do influenciador como comportamento emblemático, como ideologia que subsidia o capitalismo contemporâneo (Fuchs, 2022). É ele o sujeito “escolhido” de nossa época e que precisa trazer consigo seguidores como parte de suas “capacidades acumuladas” (Foucault, 2008). Há, neste sentido, uma relação de codependência e retroalimentação entre influenciadores e seguidores, capaz de alinhar demandas de circulação e acumulação a uma subjetividade produzida como modelo. Isso quer dizer que, nas redes, há uma subjetividade-modelo que atua duplamente, tanto através das práticas de influenciadores quanto de seguidores.
No capitalismo contemporâneo o influenciador se apresenta, portanto, não como um status, mas como um processo e uma série de práticas (Marwick, 2016) onde se prepara uma subjetividade capaz de performar a generalização de uma forma econômica, subdividida ou terceirizada para seus seguidores.
Os conceitos de “biopolítica” e “governamentalidade” elaborados por Michel Foucault (2008) são importantes para se compreender como o influenciador-mirim atualiza, através de suas práticas, um processo de internalização da racionalidade neoliberal, primordialmente subsidiada pelo discurso do “empreendedorismo do eu”. Em sua investigação, o filósofo se debruçou sobre Hayek (1960) e sua utopia do “liberalismo como estilo geral de pensamento, de análise e de imaginação” (Foucault, 2008, p. 302) a qual, se adotada, seria capaz de superar a mera técnica econômica de governo para se tornar um “pensamento vivo” de controle e reprodução social do capitalismo, que anima e é animado por seus sujeitos. À luz dessa interpretação, o neoliberalismo buscou, e ao mesmo tempo predeterminou, um “princípio de racionalidade estratégica” (Foucault, 2008, p. 308) na atividade do trabalho.
A força de trabalho apareceu, então, como “capital” composto por características físicas e psicológicas de uma pessoa. São essas características observadas por Foucault (2008) como aptidões e competências, que, do ponto de vista do trabalhador, vão sendo agregadas como capital da força de trabalho. Cada indivíduo seria, portanto, uma máquina, um agregado de competências, de capital organizado em força de trabalho.
É essa “motivação” o gancho que os neoliberais encontram para alinhavar um princípio de racionalidade e desejo no e pelo trabalho como comportamento humano. O que o neoliberalismo busca em sua análise econômica é decifrar – e, ao mesmo tempo, programar – indivíduos enquanto empresas de suas próprias capacidades, “unidades-empresas”, sujeitos capazes de reproduzir uma racionalidade econômica que seja a pulsão da sociedade.
Foucault (2008) evidencia como o capitalismo reorganiza as relações de trabalho, ampliando a subordinação da subjetividade às demandas econômicas. Indivíduos precisam ser continuamente motivados a exercerem condutas funcionais às demandas de acumulação e ao escamoteamento das relações de poder. A esfera do trabalho (e do não trabalho) acompanharia, portanto, a necessidade ideológica de ofuscar as relações por onde se dá a produção de valor no capitalismo contemporâneo.
Entre liberdade e obediência
Com sua roupagem neoliberal, o capitalismo passaria a produzir sujeitos que desejem e dependam subjetivamente de uma certa performance. O sujeito modelo de sucesso nas redes já não somente performa as relações sociais que o subordinam, num corpo dócil como se passivo e domesticado por uma força externa, mas passa a reproduzir o desejo de subordinação cotidianamente.
No caso das redes sociais digitais, como contexto em que novas formas de trabalho atualizam mecanismos de subordinação, a relação recíproca entre liberdade e obediência característica do neoliberalismo (Gago, 2019) é atualizada. Através das práticas exercidas por influenciadores e seus seguidores, o imbricamento entre liberdade e obediência se intensifica. Mais ainda, há um “desejo de performance” sendo estimulado nas redes a partir da dinâmica entre liberdade e obediência.
Chamamos de “desejo de performance” a mobilização de uma disponibilidade constante nas redes, capaz de atender as demandas de digitalização da vida como um todo. Tal performance ininterrupta compõe o que Deleuze e Guattari (1980) chamam de “servidão maquínica”, responsável por colocar o desejo em ação, “por o desejo para trabalhar” (Lazzarato, 2010, p. 178). Na “servidão maquínica” o desejo é “combustível” da engrenagem que o produz. Isso quer dizer que, nas redes, desejamos performar comportamentos monetizáveis, organizados pela lógica do ranqueamento, pela coleta de dados traduzíveis em informação que alimenta a previsibilidade de consumo. Ou ainda, “(…) constituímos simples entradas e saídas, inputs e outputs do funcionamento de processos econômicos, sociais, comunicacionais (…)” (Lazzarato, 2010, p. 170). Do café da manhã até a hora de dormir, tudo é palco para uma performance a ser capturada, compartilhada e dataficada (Sibilia, 2016). O que torna tal performance específica é que ela não só entretém um público, mas, ao entreter, alicia outra força de trabalho: seguidores. Ao performar, o influenciador anima cotidianamente o engajamento de seus seguidores que, por sua vez, produzem atenção traduzida em dados digitais.
Aqui o termo performance é usado duplamente. Se refere ao influenciador em sua eficiência no entretenimento e captura da atenção de seus seguidores, assim como ao seguidor que, engajado, produz atenção, convertida em dados acumulados e distribuídos. Ambos, influenciador e seguidor, mobilizam sua força de trabalho a partir de competências e funções diferentes dentro da economia das plataformas digitais.
Consideramos que tal “desejo de performance”, de disponibilidade constante nas redes, é parte importante no processo de internalização de uma racionalidade funcional a esta etapa de circulação do capital. O influenciador-mirim digital é, portanto, socializado desde a mais tenra idade, através do desejo de performar para a câmera, motivado pela liberdade comunicacional que os dispositivos móveis oferecem e, ao mesmo tempo, pela obediência em compartilhar tal performance e gerenciar seu engajamento. Ele já não é mais somente um usuário, consumidor ou produtor, mas peça intrínseca para o funcionamento de um sistema produtor de dados e engajamento responsáveis por acelerar a circulação do capital.
Performar nas redes sociais é, portanto, tarefa que subordina nosso tempo, já que consegue sintetizar demandas econômicas em uma cultura que se generaliza. Com o influenciador-mirim tal generalização se torna eficiente através de práticas que unificam “brincadeira” e “trabalho”. Ao observar a “servidão maquínica” nas crianças que “trabalham diante da televisão; trabalham na creche com brinquedos concebidos para melhorar suas performances produtivas” (Guattari, 1980, p. 80), Guattari antecipa aquilo que hoje representa nas redes a metamorfose entre brincadeira em trabalho.
Considerações finais
Neste artigo, tentamos demonstrar que o influenciador-mirim e seus seguidores exercem um papel central na reprodução da sociedade capitalista contemporânea. Como vimos, são trabalhadores infantis e, ainda que não-produtivos de novos valores, são necessários à reprodução do capital, pois são funcionais para a aceleração da circulação do capital através das redes e plataformas.
Nesse sentido estritamente econômico, são atores fundamentais para elevar o lucro das big techs. Em um mundo onde, desde o pós-guerra, a superprodução de mercadorias preocupa, a garantia da venda das mercadorias de forma constante e acelerada é central.
Como legitimador da esfera econômica, vemos no influenciador-mirim o mascote de uma cultura digital. É ele o sujeito capaz de internalizar uma racionalidade econômica a ser praticada, performada em uma espécie de “parceria” com seus seguidores. Para que essa racionalidade se conforme em ideologia, a motivação do influenciador é central, ele carrega e “compartilha” o status do empresário e empreendedor de si mesmo, justamente para escamotear, fetichizar a estrutura econômica que prescreve sua dança, supostamente espontânea desde a mais tenra idade.
Mais ainda, o empresário de si mesmo agora tem um estímulo maior, ele não somente é encarregado de produzir a si mesmo como tal, mas também de acumular seguidores. O influenciador-mirim é, portanto, um sujeito produzido para exercer as práticas necessárias ao funcionamento da economia digital e, ao mesmo tempo, um produtor de um tipo de atenção central para tal eficiência: seus seguidores.
É nessa duplicidade entre ser produzido como subjetividade-modelo e, ao mesmo tempo, ser produtor de uma subjetividade que educa e reproduz, que o influenciador-mirim se torna representante de uma nova profissão continuamente aliciada na geração digital e celebrada entre selfies e unboxing. Estamos falando de uma subjetividade-modelo duplicada, produzida para afunilar, enquadrar a subjetivação do mundo entre o influenciar e o seguir.
Essa dupla codependente, que motiva afetos, expectativas, frustrações e até patologias, caracteriza a ideologia contemporânea que nos convida (ou obriga) à participação nas redes, seja como capacidade de influenciar ou de seguir.
Influenciar e seguir já não é mais a mesma relação entre celebridade e seus fãs, produtores e receptores. Agora influenciamos e/ou seguimos, como modos que caracterizam uma subjetivação das relações sociais subordinadas à acumulação de capital nas redes. Tal subjetividade-modelo é estimulada por um “desejo de performance” que nos acompanha nos momentos cruciais de nossa formação e desenvolvimento enquanto seres sociais. Seja por sua produção ou consumo, performar é imperativo e garante a “dança” entre liberdade e obediência nas redes. Mas, mais importante, tal estímulo é força ideológica que responde à demanda econômica de aceleração da circulação do capital, momento crucial da reprodução de um sistema onde as mercadorias produzidas (planejadamente obsoletas) abundam e necessitam ser escoadas em tempo real, just in time.
Veridiana Zurita é artista visual, documentarista e pesquisadora. O presente texto íntegra sua pesquisa de mestrado pela UFABC sob orientação de José Paulo Guedes Pinto. As imagens fazem parte de um estudo para a realização do curta-metragem INFLUÊNCIA.
[Veridiana Zurita é artista visual, documentarista e pesquisadora. O presente texto íntegra sua pesquisa de mestrado pela UFABC sob orientação de José Paulo Guedes Pinto. As imagens fazem parte de um estudo para a realização do curta-metragem INFLUÊNCIA.]
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