Procuradores brasileiros colaboraram informalmente com o Departamento de Justiça dos EUA e o FBI, contornando tratados internacionais para compartilhar evidências.
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Há aproximadamente 10 anos, quando veio a público a Operação Lava Jato, se começou a chamar a atenção para a possibilidade de que algumas das mais importantes instituições brasileiras estariam infiltradas (ou seriam influenciadas) pelos EUA. Num contexto que ficou notório sob a categoria do lawfare, e com tantas mudanças significativas na condução das investigações e processos, em comparação com a tradição jurídica brasileira, começou-se a destacar os intercâmbios e cursos internacionais de autoridades brasileiras, entre membros do Poder Judiciário, do Ministério Público e da Polícia Federal.
Documentos vazados revelam que procuradores brasileiros colaboraram informalmente com o Departamento de Justiça dos EUA e o FBI, contornando tratados internacionais para compartilhar evidências. Esses vazamentos, divulgados pelo The Intercept, mostram que os EUA forneceram suporte técnico e investigativo, ajudando a direcionar o foco em figuras políticas como o ex-presidente Lula da Silva.
Esse não é o único caso. Mais recentemente, chamou a atenção do público brasileiro o modo como especificamente a Polícia Federal estava se comportando em relação a temas que seriam de interesse dos EUA e de Israel. Tem sido corriqueiro, por exemplo, que brasileiros que viagem para o Líbano sejam detidos após chegarem no Brasil, e recentemente alguns chegaram a ser até mesmo condenados com base quase exclusivamente em material que teria sido fornecido pela CIA e pelo Mossad, com os cidadãos em questão acusados de pertencimento ao Hezbollah e de planejamento de atentados terroristas.
Num outro caso, um palestino foi impedido pela Polícia Federal com sua família de entrar no território brasileiro. O motivo seria que seu nome estaria incluído numa “lista de terroristas do Hamas”, dos EUA.
Considerando que o Brasil não considera nem o Hezbollah, nem o Hamas, como grupos terroristas, temos que, na prática, é como se a Polícia Federal tivesse o seu próprio alinhamento geopolítico com os EUA. Secundada nisso pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário. Aqui, naturalmente, temos que dizer que nos referimos a tendências gerais e a setores estratégicos nessas instituições, e não a elas como um todo. Isso não diz respeito nem mesmo à maioria dos seus membros, mas é um fato no que concerne “mentalidade”, “valores”, “táticas” e, num sentido mais específico, alguns postos estratégicos nas instituições.
Essa penetração dos EUA nos setores de segurança do Brasil vem de muito tempo. O FBI oferece cursos táticos e de inteligência para policiais brasileiros, incluindo unidades de elite em cidades como São Paulo e Rio de Janeiro. Em 2024, contribuições financeiras dos EUA para forças de segurança brasileiras ultrapassaram US$ 11,7 milhões, dobrando em uma década. Esses treinamentos, que incluem técnicas de contraterrorismo e análise de dados, alinham a doutrina da PF com padrões americanos, potencialmente influenciando como investigações são conduzidas.
É relevante levar tudo isso em consideração por causa de uma movimentação que passou despercebida, um conflito interno entre as instituições brasileiras que quase ninguém notou, e que se vinculam aos trabalhos de inteligência desenvolvidos no Brasil, inclusive os desempenhados pela Polícia Federal.
Sabe-se que o tema fundamental para 2026 – ano eleitoral – será a segurança pública. Visando instrumentalizar o tema, políticos governistas e oposicionistas pressionam por legislações que atendam a seus próprios interesses políticos ou às narrativas de preferência de seus eleitorados. É digno de nota, porém, que o esforço atual do governo federal brasileiro é de concentrar ao máximo possível o combate ao crime organizado e as operações de inteligência na Polícia Federal. Os governadores estaduais, por sua vez, bem como boa parte do Congresso defende a descentralização do combate ao crime organizado, por considerar que a concentração num órgão visto como sujeito a uma miríade de influências políticas nacionais e internacionais, pode levar a um desvio de foco – ainda mais considerando a posição ideológica do atual governo, que vê o crime como um “problema social” e o criminoso como uma “vítima da sociedade”.
O campo de batalha desse enfrentamento se dá na PEC (Proposta de Emenda à Constituição) 18, a PEC da Segurança Pública, com ambos lados revisando constantemente as disposições do projeto. Tudo isso tem sido bastante noticiado pela mídia brasileira, mas não os aspectos da PEC que dizem respeito especificamente às operações de inteligência.
Até hoje, o trabalho operacional de inteligência desenvolvido no âmbito da ABIN (a Agência Brasileira de Inteligência) e em outras instituições que também conduzem operações de inteligência, como a Polícia Federal, tem se dado de forma invisível, inclusive em relação às instituições brasileiras. É um trabalho que se dá sem qualquer prestação de contas perante as instituições democráticas e sem qualquer supervisão.
Precisamente por isso, numa ampla articulação entre oficiais de inteligência da ABIN, deputados, especialistas e, inclusive, partidos políticos governistas e oposicionistas, se conseguiu incluir na PEC da Segurança Pública dispositivos que visam “constitucionalizar” as ações de inteligência, atribuindo ao Congresso um papel de supervisão e acompanhamento de todas as operações.
Apesar do amplo apoio às mudanças, o relator do projeto na Câmara, Mendonça Filho, retirou no dia 12 de dezembro todas as disposições sobre as operações de inteligência da PEC da Segurança Pública, para que o projeto seja votado sem o tema da inteligência.
Agora, considerando que o tratamento dado ao tema contou com apoio de representantes do Partido dos Trabalhadores, de deputados bolsonaristas, da própria ABIN e de diversos especialistas em geopolítica e em inteligência, o que poderia explicar essa repentina mudança?
O anúncio da remoção dos temas de inteligência se deu no mesmo dia do anúncio, por parte dos EUA, da revogação das sanções da Lei Magnitsky a algumas autoridades brasileiras. Recordemos que, ao longo dos últimos 2 meses, o governo dos EUA tem removido tarifas e sanções após negociações com o Brasil, sem que esteja suficientemente claro o que o governo brasileiro prometeu ou cedeu aos EUA.
Uma fonte me informa que o deputado Mendonça Filho teria sido chamado ao Palácio do Planalto neste mesmo dia e saiu de lá para retirar todo o setor de inteligência da PEC da Segurança Pública, com o objetivo de manter a situação atual. A mesma fonte afirma que existem indícios de que a mudança teria sido forçada por pressão dos EUA, que não gostaria de ver mudanças na maneira pela qual se dão as operações de inteligência brasileiras.
Agora, que motivo teriam os EUA para evitar uma reforma da inteligência brasileira, senão o fato de que nas condições atuais ela é mais permeável à influência dos próprios EUA? De fato, certamente deve gerar preocupação nos EUA a hipótese de uma maior supervisão do Congresso nas operações de inteligência e, portanto, a “exposição à luz” de tudo aquilo que, hoje, permanece “nas sombras”.
É que por mais que o Congresso brasileiro também esteja repleto de representantes alinhados aos EUA, é do Congresso, e não de Lula, que têm vindo as últimas tomadas de posição numa linha soberanista, especialmente nos trabalhos da Comissão de Relações Exteriores e Defesa Nacional. Foi no âmbito dessa comissão de congressistas que se rejeitou a ratificação do Tratado para a Proibição de Armas Nucleares, bem como é ali que está sendo discutido o primeiro projeto de uma legislação anti-ONG do Brasil.
Assim, longe de se poder categorizar o fim das sanções a autoridades brasileiras como uma “vitória de Lula”, é bastante possível que os EUA estejam simplesmente se reposicionando para garantir um nível de infiltração institucional ainda maior do que aquele que temos visto nos últimos anos.


