Hoje, tal como na Idade Média, a teologia importa muito para a produção de conhecimento.
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A relação dos muçulmanos com a ciência vai do céu ao inferno. Houve um grande florescimento na Idade Média, que entrou em declínio no século XI e depois desapareceu. Nos dias de hoje, há um forte contraste entre as monarquias sunitas, que nadam em dinheiro mas são totalmente dependentes do Ocidente em matéria de ciência e tecnologia, e a república xiita do Irã, que não é rica, está sob inúmeras sanções, mas conseguiu criar tecnologia militar capaz de enfrentar com sucesso o Estado de Israel (que dispõe de tecnologia de ponta e dinheiro infinito).
O islã surge no século VII, ou seja, na Alta Idade Média, entre tribos seminômades da árida Península Arábica. Era uma região conhecida pelo Império Romano na Antiguidade, mas não conquistada. Como os muçulmanos aceitam que Jesus cumpriu uma profecia ao nascer de uma virgem, mas negam que seja Deus, por muito tempo a cristandade ocidental nem entendia que se tratava de uma religião diferente; achava-se que eram somente hereges arianistas. A ideia tem plausibilidade histórica, já que nos tempos do Império Romano cristão os hereges procuravam regiões afastadas para se esconder.
A expansão do islamismo foi muito rápida. Em décadas, abarcou muito do Império Romano Oriental. Em seguida estendeu-se pelo Império Romano Ocidental através do norte da África e alcançou até a a Península Ibérica. Diferentemente do cristianismo, porém, essa conquista ocorreu por meio das armas: os povos submetidos teriam de se converter ao islã, ou então pagar a jizya, o imposto para judeus e cristãos. Apesar disso, a posse de áreas previamente cristãs fez com que os árabes começaram a se tornar cultos e letrados como os seus conquistados. O conhecimento dos antigos tinha um valor que não podia ser desprezado: tratados agrícolas de Varrão e Columela foram traduzidos para o árabe e muito bem aproveitados. Ainda assim, todo tipo de texto foi traduzido do grego e do latim para o árabe, de modo a converter os islâmicos à filosofia e à ciência. Os resultados foram muito profícuos para toda a humanidade:
“Aristóteles, Platão, Ptolomeu, Hipócrates, Galeno, Euclides e Arquimedes são as bases da ciência ‘árabe’. Essas obras despertam e estimulam a curiosidade dos intelectuais muçulmanos, num espírito sempre mais prático do que especulativo. […] Nas matemáticas, com Alcuarismi (m. 830), que introduz o sistema decimal e o zero, e seu livro, al-djabr, está na origem de nossa álgebra; na medicina, com Hunaine ibne Ixaque e Rasis, clínicos e médicos da segunda metade do século IX; na astronomia, com Albumasar (m. 886), que estuda o movimento dos planetas; em física, com Alquindi (século IX); em geografia, com Ibne Cordabebe (século IX), e tantos outros.” (Minois, História da Idade Média, p. 124-5.)
A relação da filosofia com o islã não poderia alcançar a mesma harmonia lograda com o cristianismo por causa do vício de origem: como a expansão islâmica se deu pelas armas, então a razão não tinha nenhuma força ou legitimidade própria. O embate religioso entre aqueles que querem buscar o conhecimento somente na Escritura e aqueles que querem estudar filosofia não é prerrogativa do islã. No catolicismo, há o embate entre Pedro Abelardo (1079 – 1142) e São Bernardo de Claraval (1090 – 1153). Não obstante, pode-se dizer tranquilamente que Abelardo, o primeiro intelectual de Sorbonne, ganhou a batalha e pavimentou o caminho para S. Tomás de Aquino (1225 – 1274) antes mesmo que a cristandade ocidental tivesse acesso a obras completas de Aristóteles. Não é de admirar que apareçam religiosos contrários à ciência; de admirar é que a ciência moderna tenha aparecido e florescido na cristandade ocidental.
Assim, não tardaram a aparecer no islã os religiosos irracionalistas que se levantaram contra a filosofia. O mais famoso de todos eles é o místico sunita iraniano Algazali (1058 – 1111), autor de Tahafut al-Falasifa, ou A destruição dos filósofos. Essa obra funda o ocasionalismo, a teoria de que não existem causas naturais no mundo, pois a causa de tudo é Deus. Era uma crítica aos filósofos que investigavam causas. Por incrível que pareça, o ocasionalismo teve fortuna na Europa do Iluminismo – mas não no mundo sunita, já que até mesmo uma teoria que visa a destruir a filosofia precisa de uma cultura filosófica para sobreviver.
Algazali costuma ser apontado como o culpado pelo declínio das ciências e da filosofia no mundo islâmico, tanto que esse “mito” é mencionado no compêndio Terra plana, Galileu na prisão e outros mitos sobre ciência e religião, de Ronald Numbers, com uma refutação pouco convincente.
Sem se comprometer com um culpado específico, o historiador Georges Minois uma grande tendência histórica:
“A questão dramática é que, no século XI, essa ascensão parou. Os responsáveis por esse bloqueio são forças religiosas. A partir do momento em que o desenvolvimento das ciências e da filosofia começa a fornecer explicações confiáveis do universo, que reduzem o lugar do divino ou até parecem contradizer o conteúdo das ‘revelações’ míticas, o conflito entre a razão e a fé é inevitável. […] Na primeira metade do século IX, o movimento hambalista […] admite apenas uma única ciência, a saber, a do Alcorão e da Suna. […] De forma esquemática, temos desde então a presença de uma corrente xiita aberta à ciência, embora nem sempre à razão (pois suas teorias sobre o imã oculto não têm nada de racional), e de outro lado, uma corrente sunita hostil à ciência. A primeira opta pelo ‘Alcorão criado’, tradução humana e, portanto, imperfeita da palavra divina, e a segunda opta pelo ‘Alcorão incriado’, palavra literal de Deus, e, portanto, intocável. É no século XI que a segunda vai se impor, sufocando a ciência e a filosofia no mundo muçulmano, fazendo-o mergulhar durante séculos no obscurantismo religioso” (p. 125-6).
Hoje, tal como na Idade Média, a teologia importa muito para a produção de conhecimento. E assim entendemos que as diferenças atuais entre os ricos porém incultos sauditas e os sancionados porém cultos iranianos têm as raízes muito visíveis e expostas, como as de uma antiga paineira (Ceiba pentandra).


