É impossível uma liderança republicana nacional ser supremacista branca e é impossível metade de um país europeu ou iberoamericano ser povoado por pessoas de cabelo azul com pronome de gênero neutro.
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Estou terminando de ler a coletânea de ensaios sobre história da ciência intitulada Terra plana, Galileu na prisão e outros mitos sobre ciência e religião, organizada por Ronald L. Numbers. Um dos ensaios, “Mito 20: Que o julgamento de Scopes terminou em derrota para o anti-evolucionismo”, de Eward J. Larson, dá um insight para a mentalidade histérica e sectária que os Estados Unidos desgraçadamente exportaram para o Ocidente, e que se fez tão visível com as reações ao assassinato de Charlie Kirk.
O Julgamento de Scopes, também conhecido como Julgamento do Macaco, ocorreu nos Estados Unidos em 1925, quando o estado do Tennessee proibiu o ensino da teoria da evolução nas escolas. A ACLU, midiática ONG defensora da liberdade de expressão, combinou de fazer um julgamento para atrair a atenção do país para a pequena cidade de Dayton, no Tennessee: um professor de ciências chamado John Scopes concordou em se incriminar perante a lei, alegando que ensinava evolução, para que a ACLU cuidasse da sua defesa. Seu advogado foi o agnóstico Clarence Darrow. Na acusação estava o célebre político democrata William Jennings Bryan, Secretário de Estado de Woodrow Wilson. Ele já era idoso e pertencia a uma corrente do protestantismo que saiu de moda na segunda metade do século XX: o progressista entusiasmado pela ciência que acredita no desing inteligente.
Segundo relata Larson, o julgamento deu certo para os envolvidos: a cidadezinha ganhou notoriedade nacional; a ACLU pautou o noticiário; os jornais venderam muito (inclusive o colunista H. L. Mencken, ateu, ficou famoso cobrindo o evento); Scopes, embora condenado a pagar cem dólares, recebeu uma bolsa de estudos da Universidade de Chicago; Bryan (que se ofereceu para pagar os cem dólares) foi ovacionado por seus muitos apoiadores pelo seu desempenho argumentativo. Tal como na atual febre de debates no Youtube, ambos os partidos garantiam que o seu lado obteve uma vitória acachapante sobre o outro. O detalhe é que em momento nenhum Darrow fez perguntas a Bryan sobre evolução. No entanto, ele fez muitas perguntas, foi rude, e o juiz interrompeu a arguição. Favorecendo ainda mais a venda de jornais e a imaginação, Bryan morreu na cidadezinha durante o sono, pouco depois do julgamento.
A facção pró evolução teve maior competência em criar uma verdadeira mitologia em torno do julgamento. Para isso, foi muito importante crucial o espetáculo da Broadway O vento será tua herança (1955), que ganhou nada menos que quatro adaptações para cinema e TV entre 1960 e 1999. Nessa versão algo inspirada por Mencken, Scopes enfrenta uma horda de fiéis obscurantistas ameaçadores, que o jogam na cadeia por ter aberto um livro de ciências na sala de aula. Um personagem inventado lidera a gente da cidadezinha que quer mandar Scopes direto para o inferno em virtude de sua herética crença na evolução. O julgamento ganha ares de tenebrosa inquisição, e sobra até para a namorada de Scopes – inventada na trama como a bela filha de um pastor intolerante. Bryan é representado como um ignorante tosco que acredita que a terra foi criada no dia 23 de outubro de 4004 a.C. às 9h30 da manhã. No julgamento, todos riem dele e ele fica aturdido. Bryan a pena baixa demais e clama por punição exemplar para Scopes. Dias depois, ainda abalado, ele faz um discurso inflamado contra a evolução, tem um treco e morre. Darrow, o agnóstico rude, é pintado como um homem sábio que cita a Bíblia contra Bryan. No final, diz a Scopes que, embora tenha sido condenado, milhões de pessoas lerão nos jornais que ele esmagou uma lei ruim. A filha do pastor abandona o pai e sai da cidade intolerante com Scopes. Ambos levam na mala um exemplar da Bíblia e outro da Origem das espécies.
Ou seja, pintaram o Julgamento de Scopes segundo a lenda de Galileu vitimado pela Inquisição: uma luta de luz contra trevas, na qual os obscurantistas são derrotados no final. O problema é que essa versão está em conflito não só com os fatos particulares, como também com a realidade política e social. Os adversários da evolução não foram vencidos no Julgamento de Scopes. Pelo contrário, a morte de Bryan foi seguida pela criação, na cidadezinha de Dayton, do Bryan College, uma instituição superior antievolucionista que cresceu muito e existe até hoje. Além disso, no início do século XXI as pesquisas públicas indicavam que metade dos estadunidenses não acreditava na teoria da evolução, e que a maior parte desse grupo apoiava o ensino do criacionismo nas escolas. Os progressistas dos EUA não conseguem enxergar a realidade dos fatos – sobretudo no que concerne aos seus opositores. O progressista é cego para a alteridade.
Foi uma façanha da imaginação pintar o Secretário de Estado do Presidente Woodrow Wilson como uma espécie de Torquemada burro. Podemos dizer que um progressista típico é, antes de tudo, um maniqueísta que raciocina segundo estereótipos. Se Bryan estava do “lado errado” no Julgamento de Scopes, só poderia ser um religioso burro, intolerante e mau. O outro ingrediente necessário para essa façanha é a produção de narrativas visando o sucesso comercial: para vender bem, uma história não precisa ser verdadeira; precisa manipular os sentimentos e os instintos da audiência.
O caso Scopes seguiu a “lógica das redes sociais” ainda no tempo da imprensa escrita. Talvez os males atribuídos às redes sociais não seja, de fato, das redes sociais, mas sim dessa mentalidade histérica (que nega a realidade) e maniqueísta dos EUA, aliada à orientação mercadológica do discurso. Vale ver se na Rússia e na China as redes sociais seguem a “lógica das redes sociais”.
Muito bem, agora vamos a Charlie Kirk. As redes sociais foram à loucura. Até no Brasil, a esquerda, já com vídeos legendados, queria provar que Kirk mereceu porque era a pior pessoa do mundo. Cortes sem contexto “provavam” que Kirk queria a volta da escravidão e que apoiava matar pessoas na vista dos outros. Até no Brasil, a direita reagiu com uma vitimização histérica: o caso “provava” que todo esquerdista é um assassino em potencial. O remédio? Colecionar postagens de esquerdistas e reivindicar o seu cancelamento. Note-se que houve, de fato, personalidades de mídia que disseram coisas escabrosas e, portanto, mereciam o ostracismo. No entanto, a campanha de cancelamento atingiu tal nível que pessoas comuns que expressavam desapreço pelo finado (não comemoravam o assassinato, não diziam que mereceu) entravam na mira do cancelamento do mesmo jeito. E mais: direitistas mundo afora atenderam ao pedido de Christopher Landau, do Departamento de Estado, para denunciarem perfis estrangeiros que fizessem pouco caso do assassinato e deixá-los sem visto.
Em vida, uma das coisas que deixou Charlie Kirk famoso foi o número “Prove me wrong”, ou “Prove que estou errado”. Funcionava mais ou menos como um programa de TV focado em debates: o protagonista – o próprio Kirk – ia aos campi universitários e convidava o alunado, tipicamente woke, a provar que ele estava errado. A performance era filmada e ia para as redes sociais, onde fazia sucesso de público na direita. Como os debates na era da internet são sujeitos a mil cortes e edições, só podemos imaginar que Kirk encontrasse tantos debatedores porque os esquerdistas também viam vantagem em fazer cortes e edições de suas próprias performances. Lembra muito, portanto, a proposta do Julgamento de Scopes: fazer uma coisa midiática para ambos os lados debaterem e ficarem bem com seus respectivos públicos. Antes vendia-se jornal, hoje ganha-se com monetização.
A diferença é que o tempo de hoje é muito mais rápido. Se o assassinato da reputação de Bryan precisou esperar 30 anos, o de Kirk foi instantâneo. A esquerda woke tinha certeza absoluta de que ele estava do lado errado, então só podia ser um monstro. É uma esquerda que não se empenha nem um pouco em conhecer o outro, pois seu profundo maniqueísmo lhe dá a certeza de que é o Mal encarnado.
Do lado da direita, vimos uma semelhante cegueira para a alteridade. Se nem nos EUA é razoável crer que todo esquerdista é um potencial assassino woke, nos países da Europa continental e da América Ibérica a crença é menos razoável ainda, já que neles há esquerdas antiliberais disputando espaço com a esquerda woke.
Ambos os lados estão, por fim, cegos para a realidade política e social: é impossível uma liderança republicana nacional ser supremacista branca (pois Trump precisa dos votos de negros e latinos), e é impossível metade de um país europeu ou iberoamericano ser povoado por pessoas de cabelo azul com pronome de gênero neutro.