Escreva para nós: info@strategic-culture.su
A retomada do massacre infanticida em Gaza leva a crer que Netanyahu conseguirá efetivar o projeto histórico do sionismo de tornar residuais as presenças islâmica e cristã na antiga Palestina Britânica. É oportuno então divulgarmos a história da população que está sendo varrida daquela terra. Para isso, serão usadas informações disponíveis em A invenção do povo judeu, do historiador Shlomo Sand. Ele é israelense, serviu ao exército e reside na França. O livro é de 2008, quando a temperatura não estava tão alta.
Levantinos falam árabe, mas não são da Arábia
Em primeiro lugar, o árabe e o levantino são povos com histórias diferentes. O árabe tem origem na Península Arábica e fala árabe desde tempos imemoriais. O levantino está na região do Levante desde a pré-história e mudou de idioma ao longo da História. Jesus, que habitou o Levante, não falava hebraico nem árabe, mas aramaico, uma das línguas mortas da região.
Tendo acompanhado a arqueologia do seu país natal, Sand relata a descoberta de um grão de verdade histórica da Bíblia: a população de Canaã, em certa altura, recebeu pastores nômades que se distinguiam da população local por não ter restos de porco em seus assentamentos. No entanto, em vez da conquista seguida de massacre, a arqueologia aponta para uma mistura da população canaanita prévia com a nova população de pastores, mistura essa que comporia os reinos de Israel e de Judá entre os séculos XII e X a. C.
A crermos na historiografia oficial do sionismo, porém, esses nômades que ficaram sedentários em Canaã (atual Israel) são os ancestrais dos judeus de hoje, ao passo que os atuais palestinos são árabes e descendem de populações que oriundas da Península Arábica. Na verdade, porém, as conversões embaralham tudo. As religiões migraram mais do que as populações.
As substituições da população camponesa eram muito raras no Império Romano e também no histórico do Levante. Quando caía um reino e entrava outro, o que acontecia era a expulsão das elites rebeldes. O êxodo não foi para o conjunto da população da Judeia, que era camponesa, mas sim da sua classe letrada. Assim, o campesinato da Judeia não emigrou e, em vez disso, converteu-se ao cristianismo. Em seguida, quando os árabes dominaram o local e impuseram o islamismo, o grosso da população da antiga Judeia – já chamada de Palestina – converteu-se ao islã. Os muçulmanos cobravam uma taxa das minorias religiosas (no caso, judeus e cristãos). No linguajar liberal, dir-se-ia que o islã dava um “incentivo econômico” para a conversão. Não se tratou, portanto, de uma migração das arábias, mas de mais uma mudança linguística e religiosa da região. Podia-se dizer que os levantinos eram árabes no mesmo sentido que se dizia que um ibérico era latino: seu governo e sua língua tinham origem nos latinos, uma tribo da península itálica.
O proselitismo judaico
Enquanto isso, os judeus que de fato foram expulsos converteram grupos ou tribos. Durante três séculos (II a.C., I a.C e I d.C, dos asmoneus a Flávio Josefo), o judaísmo via a conversão como boa coisa. Nesse período, parte do judaísmo se helenizou e começou a fazer um ferrenho proselitismo, buscando converter sobretudo povos do Norte da África. Não por uma predileção especial pelos norte-africanos, mas porque Alexandria, no Egito, era o centro da cultura helenística. É possível que a Septuaginta tenha sido feita para o proselitismo. Os sionistas, porém, dizem que a Seuptiaginta foi feita para os judeus não sabiam mais hebraico porque tinham o grego como primeira língua. Uma explicação não exclui a outra e é possível que haja dois motivos.
Por outro lado, o ramo do judaísmo que migrou para a Babilônia, o dos fariseus, iniciou o judaísmo rabínico, que desde o século IV considera o converso uma psoríase no corpo de Israel. Os judeus da tradição universalista de Alexandria aproveitaram o Império Romano para fazer mais proselitismo, e este teve o seu ápice no século III. No entanto, o ramo universalista do judaísmo perdeu para o cristianismo, e o judaísmo atual é herdeiro da Babilônia.
Sand trata da origem de pelo menos três grupos étnicos judaicos atuais: os sefarditas e norte-africanos, os iemenitas e os asquenazitas e russos. O primeiros grupo provavelmente descende dos fenícios e berberes que os prosélitos judeus converteram na Antiguidade. Há indícios de uma relevante conversão de fenícios ao judaísmo após a destruição de Cartago em II a.C. Assim, essa população conversa teria migrado do Norte da África para a Península Ibérica junto com outros berberes. Mais uma vez, um mesmo grupo étnico se dividiu em religiões e línguas diferentes: o grosso dos que ficaram na terra se submeteram primeiro aos cristãos e depois aos árabes, virando muçulmanos. Alguns judeus migraram do Norte da África para a Península Ibérica com o Califado Omíada e permaneceram lá na Reconquista. Daí surgiu o sefardita, o judeu ibérico.
As conversões de reinos
Quanto aos judeus iemenitas, sua história remonta a um reino independente do século II a. C.: o reino constituído por uma tribo árabe chamada “himiarita”, ao sul da Península Arábica. O reino duraria até o século VI, quando seria conquistado por muçulmanos e islamizado. O reino rival dos himiaritas era o reino cristão dos etíopes, que estava sob a esfera de influência do Império Bizantino, também cristão. Os governantes cristãos agiam em conjunto tentando controlar o acesso do Mar Vermelho ao resto do mundo conhecido. Os himiaritas queriam tomar o controle para si (como fazem os Houthis hoje). Possivelmente por se opor à concertação dos cristãos, os himiaritas, ao abandonarem o paganismo, adotaram a única religião monoteísta rival existente à época: o judaísmo. Fizeram isso no final do século IV. O grosso da população se converteu ao islã, mas parte persistiu no judaísmo, e esses são os ancestrais dos judeus iemenitas. Estes são, portanto, os verdadeiros judeus árabes. (Já os judeus do Levante devem descender ou dos antigos hebreus, ou das conversões forçadas de outras tribos levantinas pelos asmoneus.)
Uma história similar é a dos asquenazitas: eles também vêm de um reino que escolheu um credo monoteísta antagônico, mas foram bem tardios e fizeram isso quando já existia o islã. A Cazária, formada por uma miríade de tribos europeias orientais, turcas e hunas que começaram a se agregar no século II, fazia frente ao Império Bizantino e ao Califado Abássida. A Cazária estava espremida entre ambos; seu coração estava na atual Ucrânia, às margens do Volga. Entre o século VIII e IX, os cazares se converteram ao judaísmo, muito provavelmente rabínico.
Não faltam relatos históricos sobre a Cazária. As fontes mais abundantes são em língua árabe; mas até na China há registro desse império comercial que vendia escravos e cobrava impostos. A maior causa da sua decadência foi a guerra com os primeiros russos, os russos de Kiev.
Após a conversão ao cristianismo, sediado em Bizâncio, os russos de Kiev e o exército bizantino colaboraram para destruir os cazares, e deram seus golpes mais poderosos no século XI. Os cazares se dispersaram e no século XIII já não havia mais notícias deles. Talvez valha mencionar que é entre os cazares aparece pela primeira vez o costume de usar dias festivos (por exemplo, Pessah) como nome de gente. Esse costume foi mantido por judeus da Alemanha, Polônia etc. Outro costume herdado dos cazares é o uso do alfabeto hebraico para escrever em outro idioma, como o iídiche. Os judeus russos, tal como os judeus da Europa Central, também descendem de cazares que mantiveram a sua fé.
Os sionistas e a verdade
Pois bem: ao fim e ao cabo, o sionismo representa a volta dos que não foram, acompanhada pela expulsão dos que sempre estiveram lá. Os ancestrais dos sefarditas, iemenitas, asquenazitas, nunca habitaram o Levante. A descendência do antigo Povo Escolhido, que herdou a Terra Prometida, está lá mesmo: na Terra Prometida situada no Levante.
Os dois fatos históricos mais relevantes para o sionismo – a origem judaica dos palestinos e a origem pagã dos judeus brancos – eram razoavelmente conhecidos pelos sionistas na primeira metade do século XX. Na Rússia, estudiosos judeus gostavam de estudar a história da Cazária e entendiam que suas origens estavam ali. O gosto continuou na União Soviética até se tornar tabu com Stálin. Ele pretendeu forjar uma identidade única, russa, para toda a União Soviética; e incluir a história do antigo reino rival no seio nacional não convinha.
Já o lado ocidental da história é mais tortuoso. Os militantes sionistas diretamente envolvidos com a criação do Estado de Israel em geral eram asquenazitas (falantes de iídiche) ou russos; logo, parte tinha plena ciência das suas origens cazares e, portanto, não-semitas. Contudo, sionistas como Arthur Ruppin (alemão) confiavam muito na teoria da evolução e tinham certeza de que os asquenazitas eram racialmente muito evoluídos por terem sobrevivido às perseguições dos cristãos – mais evoluídos do que qualquer outro descendente atual dos antigos hebreus. Por isso, eles estenderiam as mãos de boa vontade aos judeus de língua árabe que estivessem em Israel, com a expectativa de que eles, laicizando-se, se expusessem à cultura evoluída dos asquenazitas e fossem aprimorados. Mas Ruppin era contrário ao casamento de asquenazitas com não-asquenazistas, fossem judeus ou não, para que a pureza de sua raça fosse preservada. Por isso, era contrário à imigração de outros judeus para Israel.
É verdade que o fundador do movimento sionista, Theodor Herzl, sempre teve por finalidade colocar os asquenazitas sozinhos num terreno limpo. No entanto, havia um movimento anterior de migração judaica para a Palestina liderado por certo Israel Belkind, ainda no século XIX. Ele era um judeu russo que estudou os camponeses palestinos e concluiu que eles não eram árabes, pois descendiam dos antigos hebreus. Logo, deveriam se integrar aos imigrantes judeus da Europa. Ninguém menos que Ben Gurion adotou essa ideia.
Em Nova Iorque, em 1918, Ben Gurion juntou-se com Ben Zvi (etnólogo que viria a ser o segundo presidente de Israel) para escrever a obra Eretz Israel no passado e presente e foi autor de dois terços dela. Seguindo o ensejo de Belkind e outros, Ben Gurion se empenhou em provar que os camponeses palestinos eram os descendentes mais puros dos hebreus, e portanto deveriam se integrar a Israel. Ben Gurion achava louvável o seu milenar apego à terra. Além disso, Ben Gurion e Ben Zvi pensavam que o Islã era uma religião compatível com a democracia, ao contrário do cristianismo. No entanto, o massacre de Hebron e as revoltas árabes de 1938 os fizeram mudar de ideia. Aí passaram a dizer que os palestinos eram árabes e não autóctones. E Ben Gurion foi o principal planejador e executor da limpeza étnica da Palestina, que pela primeira vez em milênios afastou aquela gente de sua terra.
Nisso, as conversões em massa foram apagadas da história judaica. A afirmação de que os judeus asquenazitas e russos descendem dos cazares, não dos antigos hebreus, passou a ser considerada antissemita. O sionismo decidiu-se permanentemente pelo lastro na raça e precisa falsificar a história para se manter de pé.