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A cerimônia do Oscar, principal premiação do cinema ocidental, foi realizada no início de março. E entre os vários premiados encontra-se, finalmente, um filme brasileiro: “Ainda Estou Aqui”, filme que retrata a perseguição imposta pelo regime militar (que durou de 1964 até 1985) à família do engenheiro Rubens Paiva. O filme ganhou na categoria de Melhor Filme Internacional, e o resultado foi recebido de maneira dúbia no Brasil, a depender do posicionamento político.
Para esquerdistas é não apenas a consagração do cinema brasileiro, mas mais importantemente a consagração da memória negativa em relação ao regime militar, período que desempenha para eles a função de mito político mobilizador. Boa parte da liderança da esquerda brasileira possui algum vínculo com esse período, tal como boa parte da liderança esquerdista francesa se remete ao Maio de 68.
Por sua vez, para a direita, o filme não passa de uma peça de propaganda contra o período que eles consideram “áureo” na história brasileira. Para a direita bolsonarista, não houve ditadura no Brasil, e todo mundo que morreu naquele período… mereceu. O diretor do filme, Walter Salles, foi inclusive chamado de psicopata por Eduardo Bolsonaro por seu posicionamento político antibolsonarista.
Tomando distância em relação à polarização política e falando como brasileiro é sempre interessante quando o talento de nosso país é reconhecido internacionalmente. Ademais, é necessário reconhecer as qualidades de Fernanda Torres como atriz, bem como a competência do diretor Walter Salles, que também dirigiu clássicos como “Central do Brasil” e “Diários de Motocicleta”, além de ter produzido “Cidade de Deus” – todos esses filmes brasileiros conhecidos mundialmente.
Mas, simultaneamente, nossa suspeita natural em relação ao establishment cultural dos EUA nos impõe a pergunta: “Por que agora?”. Por que filmes melhores que “Ainda Estou Aqui”, como os já mencionados “Central do Brasil” e “Cidade de Deus” não ganharam a estatueta de ouro, e este filme tão específico sim?
Independentemente das diferenças que vemos ano após ano, o Oscar é, há décadas, tão somente a autocelebração das elites “letradas” dos EUA, bem como um dos meios pelos quais eles estabelecem uma bússola para o mundo do cinema. É, como sempre, o retrato atual da hegemonia globalista na esfera cultural.
E em 2025 não é muito diferente se compararmos com 2024. Existem algumas “arestas” aparadas, com a remoção de alguns exageros wokes na cerimônia em si, mas a linha seguida pela “Academia” segue sendo a mesma de todos os últimos anos. Sempre haverá ali uma veia subversiva voltada para a relativização de determinados valores basilares.
A premiação de “Anora” (em várias categorias) foi um esforço de uma escolha politicamente neutra, em uma era de saturação do progressismo, mas ela não deixa de ser uma celebração da “independência feminina”, a qual, aparentemente, tem como sua máxima expressão a prostituição. Tudo isso em um contexto no qual o status de “imigrante” da protagonista é central. Os vilões do filme, aliás, são “oligarcas russos”, o que certamente comporta uma mensagem voltada não apenas contra uma “ameaça russa”, mas também contra os vínculos russos de parte da elite estadunidense.
The Brutalist também possui aspectos razoavelmente neutros e tem a sua qualidade narrativa, mas tudo isso é empacotado necessariamente em dois mantos sagrados: o protagonista é um imigrante e, ao mesmo tempo, sobrevivente do Holocausto.
A premiação de uma biografia de um sobrevivente do Holocausto serve para a Academia compensar a premiação dada a um documentário sobre a situação de uma família palestina na Cisjordânia. É claro, necessário apontar que o olhar do documentário “No Other Land” é, também, israelense, mas o do “israelense piedoso”, e, portanto, não pode faltar simultaneamente “pena” pelos palestinos e uma veia crítica à Resistência Palestina armada, a qual aparece nos comentários dos diretores em redes sociais. Trata-se de um documentário que rodou os cinemas e festivais de quase todas as capitais europeias e serve para que a elite ocidental se sinta bem consigo mesma ao derramar lágrimas de crocodilo pelos palestinos.
O “Conclave” culmina com a eleição de um Papa hermafrodita e progressista, que ao final dá um discurso moralista tão genérico que poderia ter sido escrito pelo ChatGPT.
“Emilia Pérez”, que chegou a ter algum favoritismo para várias categorias, era uma história sobre cirurgia de redesignação de gênero, mas a equipe meteu tanto os pés pelas mãos e se envolveu em tantas polêmicas que acabou sepultando a maioria de suas chances de premiação.
Naturalmente falta comentar sobre “Ainda Estou Aqui”.
O filme brasileiro, dirigido pelo bilionário ongueiro Walter Salles, ganhou a premiação de Melhor Filme Estrangeiro.
Nos meses que antecederam a premiação criou-se todo um movimento nas redes sociais em prol do filme brasileiro – com muita gente inclusive costurando argumentos “nacionalistas” para defendê-lo.
Sobre esse tipo de “nacionalismo” de defensor de premiação do Oscar, me recordo a distinção feita no âmbito das identidades entre “identidade difusa”, “identidade extrema” e “identidade profunda”. A primeira sendo aquela do apego a expressões externas e superficiais (torcer pela seleção, comemorar premiação internacional para a Anitta, etc.), a segunda é o tipo de identidade artificial que assume feições intransigentes e excludentes, o que pode ir desde uma mera obtusidade social até a violência (“se você prefere [insira qualquer banda estrangeira] a Caetano Veloso você não é brasileiro de verdade”), e a terceira sendo a compreensão íntima do que é “ser” do seu povo, o que passa pela absorção do que há de melhor na filosofia, na literatura, na música, nos mitos e nos símbolos de seu povo.
Essa galera do “culto a Fernanda Torres” (ótima atriz por sinal) e que se descabelou com a vitória de “Ainda Estou Aqui” transita, naturalmente, entre a identidade difusa e a identidade extrema. Na verdade, praticamente todo o nacionalismo brasileiro contemporâneo não vai além disso, em sua perpétua emulação do Policarpo Quaresma.
Mas sempre há uma agenda no Oscar e a agenda no que concerne a premiação do Ainda Estou Aqui já foi indicada também pelas redes sociais: não tem nada a ver com a memória histórica da ditadura, e sim com a difusão de narrativas contrárias aos “autoritarismos”, onde a Academia claramente situa o atual governo dos EUA.
A própria entrevista dada pelo diretor após a premiação revela o caráter ideológico da escolha:
“A gente está vivendo algo aqui que eu não esperei tão cedo. A gente está vendo um processo de fragilização crescente da democracia e esse processo está se acelerando cada vez mais. Então, a única coisa que eu posso atestar é o quanto o filme, que fala de uma ditadura militar, se tornou próximo de quem o viu nos Estados Unidos. Eu acho que isso explica, inclusive, a maneira crescente que ele foi sendo abraçado nos Estados Unidos. […] As pessoas vieram falar comigo sobre isso, sobre como o filme se pareceu próximo de uma realidade hoje, do momento presente, nos Estados Unidos. E eu diria que não é só aqui, porque, de certa forma, ele ecoa o perigo autoritário que hoje grassa no mundo como um todo. A gente está vivendo um momento de extrema crueldade, da prática da crueldade como forma de exercício do poder. A gente está no meio disso, e é profundamente inquietante”, comentou Walter Salles
Pode parecer surreal, mas sim, há pessoas que comparam uma ditadura militar que prendia, torturava e assassinava dissidentes em uma situação de estado de exceção com o governo Trump que…deporta imigrantes ilegais e pretende dispensar pessoas trans das Forças Armadas.
Mas é precisamente no contexto dessa disputa entre supostas “democracias” e supostas “autocracias” – narrativa muito presente no discurso dos Democratas e dos intelectuais progressistas contemporâneos – que se insere o filme. O filme, portanto, é mais sobre Trump, Bolsonaro e, evidentemente, Putin, Xi, Orban, Maduro, e todos os “autocratas” do mundo (segundo a categorização liberal) do que um filme histórico sobre a ditadura militar. Ou pelo menos é pela possibilidade dessa analogia que ele foi premiado.
Independentemente dos méritos da Fernanda Torres, ou mesmo dos méritos do Walter Salles, a premiação de “Ainda Estou Aqui” só foi possível porque ela se presta à função de ajudar a construir a narrativa ideológica de Hollywood para os próximos anos.