Português
Raphael Machado
July 2, 2024
© Photo: Public domain

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

No dia 26 de junho unidades das Forças Armadas da Bolívia dão início a uma mobilização militar. Elas ocupam a Praça Murillo, principal praça da capital La Paz, que fica de frente para o Palacio Quemado, sede do governo. Vários outros edifícios governamentais são, também, cercados.

As unidades em questão eram lideradas por Juan José Zúñiga, Comandante do Exército da Bolívia, que fez um discurso inflamado na Praça Murillo, durante a tentativa de golpe, anunciando a iminente formação de um novo governo para solucionar os “problemas do país”.

Enquanto isso, o Presidente Luis Arce decretava estado de emergência, convocava uma mobilização popular contra a tentativa de golpe e chamava os movimentos sociais às ruas. Ele foi ecoado por várias outras figuras públicas bolivianas que denunciaram o golpe em andamento.

Um tanque derrubou as portas do palácio presidencial e, lá dentro, Zúñiga foi confrontado por Arce, que declarou não aceitar essa insubordinação. Para jornalistas presentes no locais, Zúñiga também afirmava pretender libertar todos os envolvidos no golpe de Estado de 2019.

Enquanto as condenações internacionais se sucediam e sindicatos e movimentos sociais tomavam as ruas e enfrentavam com violência as unidades golpistas, Arce nomeava um novo comando militar. Nenhuma autoridade boliviana relevante aderiu ao golpe e, logo, Zúñiga viu-se sem solução exceto pela fuga.

A fuga em um blindado pelas ruas de La Paz até o prédio Estado-Maior, típica de uma opereta, precedeu a prisão do líder golpista. E foi dessa maneira que acompanhamos, ao longo da quarta-feira, o fracassado intento de golpe de Estado na Bolívia.

Mas logo de sua prisão, o General Zuñiga produziu, com voz trêmula e insegura, a narrativa de que tudo havia sido uma tentativa de “autogolpe”. Arce o teria convocado alguns dias antes da intentona para orientá-lo a simular uma tentativa de golpe para elevar a própria popularidade.

Em paralelo, apareceram nas redes sociais, inclusive em alguns meios da mídia alternativa, um discurso sobre uma suposta “manobra” de Luis Arce para retirar Evo Morales da jogada. Segundo essa narrativa, ao organizar esse golpe, a intenção de Arce teria sido a de mostrar que Evo Morales não deveria disputar as eleições bolivianas de 2025 por ser um personagem político extremamente polarizante e carente de consenso entre as forças e instituições bolivianas.

Precisamos, agora, analisar essa narrativa.

É necessário entender o contexto das contradições políticas bolivianas. De fato, é possível ver no cenário político boliviano uma certa rivalidade dentro do próprio partido MAS entre uma facção mais próxima a Luis Arce e uma facção mais próxima ao ex-presidente Evo Morales.

O núcleo da controvérsia entre ambos é a disputa eleitoral de 2025, com Arce postulando a sua reeleição e Evo Morales buscando retornar à presidência. O problema é que em 2023, o Tribunal Constitucional Plurinacional decidiu pela inabilitação de Evo Morales para disputar as eleições presidenciais por considerar que isso contrariaria a Constituição da Bolívia e por entender que a “reeleição” não é um “direito humano”.

Nisso o Tribunal revisou o próprio entendimento anterior sobre o tema, em que se permitiu a Evo disputar e vencer eleições por quatro vezes – mas o Tribunal o fez à luz do próprio entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Nesse contexto, palavras ásperas foram trocadas publicamente entre Morales e Arce, as quais certamente não contribuíram para a estabilidade política boliviana.

Para além dessa contradição, existe também a contradição entre La Paz e Santa Cruz, com esforços de normalizar o sentimento separatista nessa importante região do país que se situa no Heartland sul-americano.

Agora bem, Morales e Zuñiga possuem desentendimentos que antecedem a tentativa de golpe de Estado e que podem ter contribuído para a erupção golpista. Segundo o ex-presidente boliviano, Morales possui vínculos com grupos paramilitares ligados ao narcotráfico e que estariam infiltrados nas Forças Armadas e nas instituições, contribuindo para a desestabilização da Bolívia.

De fato, essas desavenças se desdobraram ao longo das últimas semanas, chegando-se a um ponto no qual Zuñiga afirmou que não aceitaria que Morales se apresentasse para reeleição e que ele seria preso se tentasse fazê-lo. Considerando essa declaração um atentado à democracia e atendendo a um pedido de Evo Morales, o Presidente Arce destituiu Zuñiga de seu cargo.

Esse é o evento que antecede imediatamente à tentativa de golpe de Estado.

Agora, vários outros elementos devem ser levados em consideração.

Em primeiro lugar, nunca se pode ignorar que o General Zuñiga vem especificamente do corpo de inteligência militar, sendo um oficial especializado em operações psicológicas. Nesse sentido, é descuidado simplesmente acreditar ou levar a sério quando ele afirma que tudo não passou de um plano de Arce.

A narrativa de Zuñiga, ademais, não se encaixa assim tão bem com a narrativa, também conspiratória, de que tudo era um plano para demonstrar a inviabilidade da candidatura de Evo Morales. E se Zuñiga sabia disso tudo, se tudo desdobrou-se como planejado e esperado, por que, afinal, revelar tudo assim que foi preso?

A sua prisão não estava planejada? Qual seria, neste caso, o final esperado?

Na verdade, considerando a especialização de Zuñiga em psyops e o fato de que boatos de “autogolpe” já circulavam em perfis bolivianos em redes sociais desde os primeiros minutos da tentativa de golpe, o mais provável é que Zuñiga tenha tentado difundir desinformação para espalhar dissenso, acirrar as contradições entre Morales e Arce e enfraquecer ainda mais a confiança nas instituições bolivianas. Uma típica operação psicológica que se enquadra nos marcos contemporâneos da guerra híbrida.

A narrativa do autogolpe, portanto, acaba sendo pouco substancial e serve ao interesse de desestabilização da Bolívia e acirramento de contradições políticas internas. A suspeita de uma influência estrangeira em tudo isso acaba parecendo muito mais digna de crédito, considerando eventos recentes e o histórico boliviano.

É interessante, por exemplo, que na véspera do golpe, o Ministério de Relações Exteriores da Bolívia convocou Debra Hevia, a encarregada de negócios da missão diplomática estadunidense na Bolívia (já que não há mais Embaixada dos EUA naquele país), por causa daquilo que o governo boliviano percebia como atuação subversiva de funcionários dos EUA dentro da Bolívia e que apontava para um possível projeto golpista.

Nesse sentido, considerando que o golpe se dá apenas alguns dias após a solicitação formal da Bolívia de ingressar nos BRICS, onde o lítio boliviano pode acabar desempenhando um papel estratégico no que concerne o desenvolvimento energético e industrial, é difícil acreditar que não houve qualquer envolvimento estrangeiro nessa tentativa de golpe.

Ainda que deva-se sempre ter cautela com declarações dadas nessas circunstâncias, não estamos, portanto, surpresos com a declaração do General Marcelo Zegarra, ex-Comandante da Força Aérea Boliviana e que, nos primeiros momentos, participou na mobilização, mas desistiu durante os eventos, de que Zuñiga teria dito contar com o apoio das representações diplomáticas dos EUA, da Líbia e da Comunidade Europeia.

Na prática, os EUA têm um longo histórico de envolvimento golpista na Bolívia, de modo que se for verdade que os EUA apoiaram a tentativa de golpe, seria mais um dos vários golpes apoiados desde os anos 60 do século XX até agora, o último dos quais tendo se dado em 2019, quando Evo Morales foi forçado a renunciar por pressão militar.

Naturalmente não precisamos nem mesmo acreditar que foi tudo ordenado, preparado e coordenado pelos EUA. Em conflitos híbridos, muitas vezes os operadores ligados a interesses estrangeiros precisam apenas de sugestões e insinuações, ou da promessa de apoio após os fatos alcançarem o resultado desejado, ou ainda apenas a promessa de não atrapalhar os eventos. Agora é necessário fazer uma profunda investigação sobre todas as conexões e contatos de Zuñiga, inclusive a alegação recentemente divulgada de que ele teria adquirido uma propriedade no México recentemente e que sua família teria saído do país dias antes do golpe.

Agora, talvez o indício mais incriminador contra os EUA sejam o fato de que enquanto todos os países das Américas condenavam a tentativa de golpe, o governo dos EUA afirmava que estava “acompanhando a situação” e que estava “preocupado com a violência”, negando-se a condenar enfaticamente os eventos.

Foi como se os EUA estivessem esperando para ver o resultado, antes de decidir como se pronunciaria sobre os fatos.

Enquanto os EUA são pressionados ao redor do mundo e forçados a recuar e ceder posições na Europa Oriental, Oriente Médio, África e Leste Asiático, não devemos ficar surpresos se voltarmos à era dos golpes e assassinatos políticos na América Latina, conforme os EUA tentam compensar as suas perdas com os recursos dos nossos países.

Autogolpe na Bolívia? O problema das teorias conspiratórias

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No dia 26 de junho unidades das Forças Armadas da Bolívia dão início a uma mobilização militar. Elas ocupam a Praça Murillo, principal praça da capital La Paz, que fica de frente para o Palacio Quemado, sede do governo. Vários outros edifícios governamentais são, também, cercados.

As unidades em questão eram lideradas por Juan José Zúñiga, Comandante do Exército da Bolívia, que fez um discurso inflamado na Praça Murillo, durante a tentativa de golpe, anunciando a iminente formação de um novo governo para solucionar os “problemas do país”.

Enquanto isso, o Presidente Luis Arce decretava estado de emergência, convocava uma mobilização popular contra a tentativa de golpe e chamava os movimentos sociais às ruas. Ele foi ecoado por várias outras figuras públicas bolivianas que denunciaram o golpe em andamento.

Um tanque derrubou as portas do palácio presidencial e, lá dentro, Zúñiga foi confrontado por Arce, que declarou não aceitar essa insubordinação. Para jornalistas presentes no locais, Zúñiga também afirmava pretender libertar todos os envolvidos no golpe de Estado de 2019.

Enquanto as condenações internacionais se sucediam e sindicatos e movimentos sociais tomavam as ruas e enfrentavam com violência as unidades golpistas, Arce nomeava um novo comando militar. Nenhuma autoridade boliviana relevante aderiu ao golpe e, logo, Zúñiga viu-se sem solução exceto pela fuga.

A fuga em um blindado pelas ruas de La Paz até o prédio Estado-Maior, típica de uma opereta, precedeu a prisão do líder golpista. E foi dessa maneira que acompanhamos, ao longo da quarta-feira, o fracassado intento de golpe de Estado na Bolívia.

Mas logo de sua prisão, o General Zuñiga produziu, com voz trêmula e insegura, a narrativa de que tudo havia sido uma tentativa de “autogolpe”. Arce o teria convocado alguns dias antes da intentona para orientá-lo a simular uma tentativa de golpe para elevar a própria popularidade.

Em paralelo, apareceram nas redes sociais, inclusive em alguns meios da mídia alternativa, um discurso sobre uma suposta “manobra” de Luis Arce para retirar Evo Morales da jogada. Segundo essa narrativa, ao organizar esse golpe, a intenção de Arce teria sido a de mostrar que Evo Morales não deveria disputar as eleições bolivianas de 2025 por ser um personagem político extremamente polarizante e carente de consenso entre as forças e instituições bolivianas.

Precisamos, agora, analisar essa narrativa.

É necessário entender o contexto das contradições políticas bolivianas. De fato, é possível ver no cenário político boliviano uma certa rivalidade dentro do próprio partido MAS entre uma facção mais próxima a Luis Arce e uma facção mais próxima ao ex-presidente Evo Morales.

O núcleo da controvérsia entre ambos é a disputa eleitoral de 2025, com Arce postulando a sua reeleição e Evo Morales buscando retornar à presidência. O problema é que em 2023, o Tribunal Constitucional Plurinacional decidiu pela inabilitação de Evo Morales para disputar as eleições presidenciais por considerar que isso contrariaria a Constituição da Bolívia e por entender que a “reeleição” não é um “direito humano”.

Nisso o Tribunal revisou o próprio entendimento anterior sobre o tema, em que se permitiu a Evo disputar e vencer eleições por quatro vezes – mas o Tribunal o fez à luz do próprio entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Nesse contexto, palavras ásperas foram trocadas publicamente entre Morales e Arce, as quais certamente não contribuíram para a estabilidade política boliviana.

Para além dessa contradição, existe também a contradição entre La Paz e Santa Cruz, com esforços de normalizar o sentimento separatista nessa importante região do país que se situa no Heartland sul-americano.

Agora bem, Morales e Zuñiga possuem desentendimentos que antecedem a tentativa de golpe de Estado e que podem ter contribuído para a erupção golpista. Segundo o ex-presidente boliviano, Morales possui vínculos com grupos paramilitares ligados ao narcotráfico e que estariam infiltrados nas Forças Armadas e nas instituições, contribuindo para a desestabilização da Bolívia.

De fato, essas desavenças se desdobraram ao longo das últimas semanas, chegando-se a um ponto no qual Zuñiga afirmou que não aceitaria que Morales se apresentasse para reeleição e que ele seria preso se tentasse fazê-lo. Considerando essa declaração um atentado à democracia e atendendo a um pedido de Evo Morales, o Presidente Arce destituiu Zuñiga de seu cargo.

Esse é o evento que antecede imediatamente à tentativa de golpe de Estado.

Agora, vários outros elementos devem ser levados em consideração.

Em primeiro lugar, nunca se pode ignorar que o General Zuñiga vem especificamente do corpo de inteligência militar, sendo um oficial especializado em operações psicológicas. Nesse sentido, é descuidado simplesmente acreditar ou levar a sério quando ele afirma que tudo não passou de um plano de Arce.

A narrativa de Zuñiga, ademais, não se encaixa assim tão bem com a narrativa, também conspiratória, de que tudo era um plano para demonstrar a inviabilidade da candidatura de Evo Morales. E se Zuñiga sabia disso tudo, se tudo desdobrou-se como planejado e esperado, por que, afinal, revelar tudo assim que foi preso?

A sua prisão não estava planejada? Qual seria, neste caso, o final esperado?

Na verdade, considerando a especialização de Zuñiga em psyops e o fato de que boatos de “autogolpe” já circulavam em perfis bolivianos em redes sociais desde os primeiros minutos da tentativa de golpe, o mais provável é que Zuñiga tenha tentado difundir desinformação para espalhar dissenso, acirrar as contradições entre Morales e Arce e enfraquecer ainda mais a confiança nas instituições bolivianas. Uma típica operação psicológica que se enquadra nos marcos contemporâneos da guerra híbrida.

A narrativa do autogolpe, portanto, acaba sendo pouco substancial e serve ao interesse de desestabilização da Bolívia e acirramento de contradições políticas internas. A suspeita de uma influência estrangeira em tudo isso acaba parecendo muito mais digna de crédito, considerando eventos recentes e o histórico boliviano.

É interessante, por exemplo, que na véspera do golpe, o Ministério de Relações Exteriores da Bolívia convocou Debra Hevia, a encarregada de negócios da missão diplomática estadunidense na Bolívia (já que não há mais Embaixada dos EUA naquele país), por causa daquilo que o governo boliviano percebia como atuação subversiva de funcionários dos EUA dentro da Bolívia e que apontava para um possível projeto golpista.

Nesse sentido, considerando que o golpe se dá apenas alguns dias após a solicitação formal da Bolívia de ingressar nos BRICS, onde o lítio boliviano pode acabar desempenhando um papel estratégico no que concerne o desenvolvimento energético e industrial, é difícil acreditar que não houve qualquer envolvimento estrangeiro nessa tentativa de golpe.

Ainda que deva-se sempre ter cautela com declarações dadas nessas circunstâncias, não estamos, portanto, surpresos com a declaração do General Marcelo Zegarra, ex-Comandante da Força Aérea Boliviana e que, nos primeiros momentos, participou na mobilização, mas desistiu durante os eventos, de que Zuñiga teria dito contar com o apoio das representações diplomáticas dos EUA, da Líbia e da Comunidade Europeia.

Na prática, os EUA têm um longo histórico de envolvimento golpista na Bolívia, de modo que se for verdade que os EUA apoiaram a tentativa de golpe, seria mais um dos vários golpes apoiados desde os anos 60 do século XX até agora, o último dos quais tendo se dado em 2019, quando Evo Morales foi forçado a renunciar por pressão militar.

Naturalmente não precisamos nem mesmo acreditar que foi tudo ordenado, preparado e coordenado pelos EUA. Em conflitos híbridos, muitas vezes os operadores ligados a interesses estrangeiros precisam apenas de sugestões e insinuações, ou da promessa de apoio após os fatos alcançarem o resultado desejado, ou ainda apenas a promessa de não atrapalhar os eventos. Agora é necessário fazer uma profunda investigação sobre todas as conexões e contatos de Zuñiga, inclusive a alegação recentemente divulgada de que ele teria adquirido uma propriedade no México recentemente e que sua família teria saído do país dias antes do golpe.

Agora, talvez o indício mais incriminador contra os EUA sejam o fato de que enquanto todos os países das Américas condenavam a tentativa de golpe, o governo dos EUA afirmava que estava “acompanhando a situação” e que estava “preocupado com a violência”, negando-se a condenar enfaticamente os eventos.

Foi como se os EUA estivessem esperando para ver o resultado, antes de decidir como se pronunciaria sobre os fatos.

Enquanto os EUA são pressionados ao redor do mundo e forçados a recuar e ceder posições na Europa Oriental, Oriente Médio, África e Leste Asiático, não devemos ficar surpresos se voltarmos à era dos golpes e assassinatos políticos na América Latina, conforme os EUA tentam compensar as suas perdas com os recursos dos nossos países.

Escreva para nós: info@strategic-culture.su

No dia 26 de junho unidades das Forças Armadas da Bolívia dão início a uma mobilização militar. Elas ocupam a Praça Murillo, principal praça da capital La Paz, que fica de frente para o Palacio Quemado, sede do governo. Vários outros edifícios governamentais são, também, cercados.

As unidades em questão eram lideradas por Juan José Zúñiga, Comandante do Exército da Bolívia, que fez um discurso inflamado na Praça Murillo, durante a tentativa de golpe, anunciando a iminente formação de um novo governo para solucionar os “problemas do país”.

Enquanto isso, o Presidente Luis Arce decretava estado de emergência, convocava uma mobilização popular contra a tentativa de golpe e chamava os movimentos sociais às ruas. Ele foi ecoado por várias outras figuras públicas bolivianas que denunciaram o golpe em andamento.

Um tanque derrubou as portas do palácio presidencial e, lá dentro, Zúñiga foi confrontado por Arce, que declarou não aceitar essa insubordinação. Para jornalistas presentes no locais, Zúñiga também afirmava pretender libertar todos os envolvidos no golpe de Estado de 2019.

Enquanto as condenações internacionais se sucediam e sindicatos e movimentos sociais tomavam as ruas e enfrentavam com violência as unidades golpistas, Arce nomeava um novo comando militar. Nenhuma autoridade boliviana relevante aderiu ao golpe e, logo, Zúñiga viu-se sem solução exceto pela fuga.

A fuga em um blindado pelas ruas de La Paz até o prédio Estado-Maior, típica de uma opereta, precedeu a prisão do líder golpista. E foi dessa maneira que acompanhamos, ao longo da quarta-feira, o fracassado intento de golpe de Estado na Bolívia.

Mas logo de sua prisão, o General Zuñiga produziu, com voz trêmula e insegura, a narrativa de que tudo havia sido uma tentativa de “autogolpe”. Arce o teria convocado alguns dias antes da intentona para orientá-lo a simular uma tentativa de golpe para elevar a própria popularidade.

Em paralelo, apareceram nas redes sociais, inclusive em alguns meios da mídia alternativa, um discurso sobre uma suposta “manobra” de Luis Arce para retirar Evo Morales da jogada. Segundo essa narrativa, ao organizar esse golpe, a intenção de Arce teria sido a de mostrar que Evo Morales não deveria disputar as eleições bolivianas de 2025 por ser um personagem político extremamente polarizante e carente de consenso entre as forças e instituições bolivianas.

Precisamos, agora, analisar essa narrativa.

É necessário entender o contexto das contradições políticas bolivianas. De fato, é possível ver no cenário político boliviano uma certa rivalidade dentro do próprio partido MAS entre uma facção mais próxima a Luis Arce e uma facção mais próxima ao ex-presidente Evo Morales.

O núcleo da controvérsia entre ambos é a disputa eleitoral de 2025, com Arce postulando a sua reeleição e Evo Morales buscando retornar à presidência. O problema é que em 2023, o Tribunal Constitucional Plurinacional decidiu pela inabilitação de Evo Morales para disputar as eleições presidenciais por considerar que isso contrariaria a Constituição da Bolívia e por entender que a “reeleição” não é um “direito humano”.

Nisso o Tribunal revisou o próprio entendimento anterior sobre o tema, em que se permitiu a Evo disputar e vencer eleições por quatro vezes – mas o Tribunal o fez à luz do próprio entendimento da Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Nesse contexto, palavras ásperas foram trocadas publicamente entre Morales e Arce, as quais certamente não contribuíram para a estabilidade política boliviana.

Para além dessa contradição, existe também a contradição entre La Paz e Santa Cruz, com esforços de normalizar o sentimento separatista nessa importante região do país que se situa no Heartland sul-americano.

Agora bem, Morales e Zuñiga possuem desentendimentos que antecedem a tentativa de golpe de Estado e que podem ter contribuído para a erupção golpista. Segundo o ex-presidente boliviano, Morales possui vínculos com grupos paramilitares ligados ao narcotráfico e que estariam infiltrados nas Forças Armadas e nas instituições, contribuindo para a desestabilização da Bolívia.

De fato, essas desavenças se desdobraram ao longo das últimas semanas, chegando-se a um ponto no qual Zuñiga afirmou que não aceitaria que Morales se apresentasse para reeleição e que ele seria preso se tentasse fazê-lo. Considerando essa declaração um atentado à democracia e atendendo a um pedido de Evo Morales, o Presidente Arce destituiu Zuñiga de seu cargo.

Esse é o evento que antecede imediatamente à tentativa de golpe de Estado.

Agora, vários outros elementos devem ser levados em consideração.

Em primeiro lugar, nunca se pode ignorar que o General Zuñiga vem especificamente do corpo de inteligência militar, sendo um oficial especializado em operações psicológicas. Nesse sentido, é descuidado simplesmente acreditar ou levar a sério quando ele afirma que tudo não passou de um plano de Arce.

A narrativa de Zuñiga, ademais, não se encaixa assim tão bem com a narrativa, também conspiratória, de que tudo era um plano para demonstrar a inviabilidade da candidatura de Evo Morales. E se Zuñiga sabia disso tudo, se tudo desdobrou-se como planejado e esperado, por que, afinal, revelar tudo assim que foi preso?

A sua prisão não estava planejada? Qual seria, neste caso, o final esperado?

Na verdade, considerando a especialização de Zuñiga em psyops e o fato de que boatos de “autogolpe” já circulavam em perfis bolivianos em redes sociais desde os primeiros minutos da tentativa de golpe, o mais provável é que Zuñiga tenha tentado difundir desinformação para espalhar dissenso, acirrar as contradições entre Morales e Arce e enfraquecer ainda mais a confiança nas instituições bolivianas. Uma típica operação psicológica que se enquadra nos marcos contemporâneos da guerra híbrida.

A narrativa do autogolpe, portanto, acaba sendo pouco substancial e serve ao interesse de desestabilização da Bolívia e acirramento de contradições políticas internas. A suspeita de uma influência estrangeira em tudo isso acaba parecendo muito mais digna de crédito, considerando eventos recentes e o histórico boliviano.

É interessante, por exemplo, que na véspera do golpe, o Ministério de Relações Exteriores da Bolívia convocou Debra Hevia, a encarregada de negócios da missão diplomática estadunidense na Bolívia (já que não há mais Embaixada dos EUA naquele país), por causa daquilo que o governo boliviano percebia como atuação subversiva de funcionários dos EUA dentro da Bolívia e que apontava para um possível projeto golpista.

Nesse sentido, considerando que o golpe se dá apenas alguns dias após a solicitação formal da Bolívia de ingressar nos BRICS, onde o lítio boliviano pode acabar desempenhando um papel estratégico no que concerne o desenvolvimento energético e industrial, é difícil acreditar que não houve qualquer envolvimento estrangeiro nessa tentativa de golpe.

Ainda que deva-se sempre ter cautela com declarações dadas nessas circunstâncias, não estamos, portanto, surpresos com a declaração do General Marcelo Zegarra, ex-Comandante da Força Aérea Boliviana e que, nos primeiros momentos, participou na mobilização, mas desistiu durante os eventos, de que Zuñiga teria dito contar com o apoio das representações diplomáticas dos EUA, da Líbia e da Comunidade Europeia.

Na prática, os EUA têm um longo histórico de envolvimento golpista na Bolívia, de modo que se for verdade que os EUA apoiaram a tentativa de golpe, seria mais um dos vários golpes apoiados desde os anos 60 do século XX até agora, o último dos quais tendo se dado em 2019, quando Evo Morales foi forçado a renunciar por pressão militar.

Naturalmente não precisamos nem mesmo acreditar que foi tudo ordenado, preparado e coordenado pelos EUA. Em conflitos híbridos, muitas vezes os operadores ligados a interesses estrangeiros precisam apenas de sugestões e insinuações, ou da promessa de apoio após os fatos alcançarem o resultado desejado, ou ainda apenas a promessa de não atrapalhar os eventos. Agora é necessário fazer uma profunda investigação sobre todas as conexões e contatos de Zuñiga, inclusive a alegação recentemente divulgada de que ele teria adquirido uma propriedade no México recentemente e que sua família teria saído do país dias antes do golpe.

Agora, talvez o indício mais incriminador contra os EUA sejam o fato de que enquanto todos os países das Américas condenavam a tentativa de golpe, o governo dos EUA afirmava que estava “acompanhando a situação” e que estava “preocupado com a violência”, negando-se a condenar enfaticamente os eventos.

Foi como se os EUA estivessem esperando para ver o resultado, antes de decidir como se pronunciaria sobre os fatos.

Enquanto os EUA são pressionados ao redor do mundo e forçados a recuar e ceder posições na Europa Oriental, Oriente Médio, África e Leste Asiático, não devemos ficar surpresos se voltarmos à era dos golpes e assassinatos políticos na América Latina, conforme os EUA tentam compensar as suas perdas com os recursos dos nossos países.

The views of individual contributors do not necessarily represent those of the Strategic Culture Foundation.

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