Português
Carlos Branco
October 4, 2023
© Photo: Public domain

Embora com atraso, ainda é tempo de os europeus pensarem seriamente numa nova arquitetura de segurança na Europa, que integre e concilie os legítimos interesses securitários de todos os atores.

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No ido ano de 1998, numa entrevista ao “Nouvel Observateur”o antigo Conselheiro de Segurança Nacional do Presidente Jimmy Carter, Zbigniew Brzezinski, explicava como a ajuda militar prestada aos mujahedin, em 1979, tinha levado à intervenção militar soviética no Afeganistão. Segundo Brzezinski, aquela teve o “efeito de atrair os russos para a armadilha afegã”. “Aumentámos [os EUA] a probabilidade de a URSS invadir o Afeganistão”.

Para tornar isso possível, os EUA conspiraram ativamente com a Arábia Saudita e o Paquistão, sustentaram a resistência afegã, dando-lhe dinheiro e armas, assim como aconselhamento técnico; desenvolveram, em concertação com os países islâmicos, campanhas de propaganda e de apoio. Tudo isto com a finalidade de desestabilizar a União Soviética, envolvendo-a num conflito interminável no Afeganistão.

No dia em que os soviéticos cruzaram oficialmente a fronteira afegã, Brzezinski escreveu ao presidente Carter dizendo-lhe: “Agora temos a oportunidade de dar à URSS a sua Guerra do Vietname”. O resultado dessa intervenção é conhecido. Moscovo travou um combate inglório durante quase 10 anos, que se saldou por uma derrota humilhante, contribuindo para o fim da União Soviética.

Algo semelhante está a acontecer na Ucrânia. O golpe de estado promovido por Washington, em 2014, liderado por Victoria Nuland teve por finalidade pôr fim à política externa ucraniana de neutralidade estratégica (Non Block Policy), iniciada pelo presidente Viktor Yanukovych, e voltar a abraçar uma política externa conducente à integração do país na NATO, na sequência do convite efetuado na Cimeira da Aliança em Bucareste (2008).

Durante os oito anos que se seguiram, os EUA formaram, equiparam e armaram as forças ucranianas com o intuito de as capacitar para derrotarem militarmente as repúblicas rebeldes de Donetsk e Lugansk e voltar a colocá-las sob a égide do Kiev. Como sabemos hoje, os acordos de Minsk não serviram o propósito de acomodar politicamente Kiev e as repúblicas autónomas, mas o de ganhar tempo para a Ucrânia se armar e resolver militarmente o problema.

Washington ensaiava mais uma tentativa de controlar um país com o qual a Rússia, do antecedente a União soviética, partilha fronteira, algo inadmissível para Moscovo. Por isso, não será de estranhar que as propostas avançadas pelo Kremlin no final de 2021 para baixar a tensão na Europa e resolver diplomaticamente a crise na Ucrânia através de um acordo de segurança tivessem sido liminarmente rejeitadas por Washington e Bruxelas.

Tal como o apoio norte-americano aos mujahedin no Afeganistão durante a Administração Carter foi decisivo para “atrair os russos [soviéticos] para a armadilha afegã”, também o apoio militar ao regime instaurado em Kiev em 2014 foi crucial para atrair os russos para a “armadilha ucraniana”. A grande concentração de forças ucranianas no Donbass, na segunda metade de fevereiro de 2022, denunciava uma ação iminente contra as forças rebeldes. Como em 1979, Washington antevia uma resposta de Moscovo e não fez nada para a impedir.

A impreparação russa para uma operação daquela envergadura na Ucrânia levou muitos analistas, incluindo eu, a não considerar provável aquilo que veio a acontecer. Os russos estavam preparados para enfrentar sanções, mas não contavam com o apoio do Ocidente nos moldes em que se veio a verificar.

Como dizia a RAND, num texto entretanto desaparecido da circulação, “as nossas [EUA] ações futuras neste país [Ucrânia] conduzirão inevitavelmente a uma resposta militar da Rússia”. Os russos não serão obviamente capazes de não responder à pressão militar ucraniana massiva sobre as não reconhecidas repúblicas do Donbass. Este cálculo estratégico mostrou-se correto. Para isso, contribui também o anúncio feito por Zelenski na Conferência de Munique, a 19 de fevereiro de 2022, da intenção de abandonar o Memorando de Budapeste (1994) deixando implícita a intenção de se rearmar nuclearmente. Dificilmente Moscovo poderia ficar indiferente.

Os objetivos de Washington com a guerra na Ucrânia foram formulados de diversos modos. O Secretário da Defesa Lloyd Austin afirmou que “os EUA querem a capacidade militar russa enfraquecida.” Na prática, pretendia-se infligir uma derrota estratégica a Moscovo, que numa versão maximalista poderia passar por uma de mudança de regime e instalar uma liderança dócil no Kremlin.

Embora o cálculo estratégico norte-americano fosse em ambos os casos muito semelhante e subordinado ao mesmo racional, não é claro que o plano de Biden na Ucrânia vá resultar como resultou o de Carter no Afeganistão. Não é óbvio que a tentativa de empurrar a Rússia para um pântano semelhante ao do Afeganistão esteja a atingir os objetivos pretendidos.

As analogias entre o caso afegão e ucraniano são muito interessantes. Tanto num caso como no outro, Washington socorreu-se de um proxy para atingir os seus objetivos estratégicos, sem ter de colocar soldados americanos no terreno, utilizando, assim, segundo Richard Haass e Andrzej Duda, um método barato.

Ao contrário dos mujahedin, os ucranianos não estão a conseguir prevalecer no campo de batalha. O anunciado objetivo de controlarem a Crimeia está longe de se concretizar. Uma operação de mudança de regime em Moscovo, sobretudo nos termos pretendidos por Washington, não passa de uma quimera.

Episódios como o ataque ao Capitólio ou marchas sobre Moscovo não passam de sobressaltos rocambolescos, que não colocam em causa o poder instalado. As sanções não estão a destruir a economia russa. Segundo o FMI, o PIB da Rússia contraiu 2,2% no ano passado (contra 3,4% esperado), e este ano, a organização espera que o PIB da Rússia suba 0,3% (contra queda de 2,3% esperada na previsão de outubro) e 2,1% em 2024.

Enquanto o plano gizado por Brzezinski contribuiu para criar as condições que levaram à derrota da União Soviética, e ao estabelecimento de uma Ordem unipolar, esta congeminação da RAND abraçada pelas Administrações Obama e Biden poderá não derrotar estrategicamente a Rússia e levar ao fim do momento unipolar e à afirmação de uma nova Ordem de cariz multipolar, cada vez com mais aderentes, nomeadamente, no designado “Sul Global”. A não materialização de um segundo Vietname russo poderá indiciar que a capacidade do Ocidente controlar o mundo se está a esvair.

A Europa insiste em não perceber o perigo do seu território se transformar num prolongamento do poderio militar norte-americana nas fronteiras da Rússia. Seja na Ucrânia, na Geórgia, na Polónia ou na Roménia. Isso será sempre um fator de instabilidade. Embora com atraso, ainda é tempo de os europeus pensarem seriamente numa nova arquitetura de segurança na Europa, que integre e concilie os legítimos interesses securitários de todos os atores.

Carter 1 – Biden 0 (jornaleconomico.pt)

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Carter 1 – Biden 0

Embora com atraso, ainda é tempo de os europeus pensarem seriamente numa nova arquitetura de segurança na Europa, que integre e concilie os legítimos interesses securitários de todos os atores.

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No ido ano de 1998, numa entrevista ao “Nouvel Observateur”o antigo Conselheiro de Segurança Nacional do Presidente Jimmy Carter, Zbigniew Brzezinski, explicava como a ajuda militar prestada aos mujahedin, em 1979, tinha levado à intervenção militar soviética no Afeganistão. Segundo Brzezinski, aquela teve o “efeito de atrair os russos para a armadilha afegã”. “Aumentámos [os EUA] a probabilidade de a URSS invadir o Afeganistão”.

Para tornar isso possível, os EUA conspiraram ativamente com a Arábia Saudita e o Paquistão, sustentaram a resistência afegã, dando-lhe dinheiro e armas, assim como aconselhamento técnico; desenvolveram, em concertação com os países islâmicos, campanhas de propaganda e de apoio. Tudo isto com a finalidade de desestabilizar a União Soviética, envolvendo-a num conflito interminável no Afeganistão.

No dia em que os soviéticos cruzaram oficialmente a fronteira afegã, Brzezinski escreveu ao presidente Carter dizendo-lhe: “Agora temos a oportunidade de dar à URSS a sua Guerra do Vietname”. O resultado dessa intervenção é conhecido. Moscovo travou um combate inglório durante quase 10 anos, que se saldou por uma derrota humilhante, contribuindo para o fim da União Soviética.

Algo semelhante está a acontecer na Ucrânia. O golpe de estado promovido por Washington, em 2014, liderado por Victoria Nuland teve por finalidade pôr fim à política externa ucraniana de neutralidade estratégica (Non Block Policy), iniciada pelo presidente Viktor Yanukovych, e voltar a abraçar uma política externa conducente à integração do país na NATO, na sequência do convite efetuado na Cimeira da Aliança em Bucareste (2008).

Durante os oito anos que se seguiram, os EUA formaram, equiparam e armaram as forças ucranianas com o intuito de as capacitar para derrotarem militarmente as repúblicas rebeldes de Donetsk e Lugansk e voltar a colocá-las sob a égide do Kiev. Como sabemos hoje, os acordos de Minsk não serviram o propósito de acomodar politicamente Kiev e as repúblicas autónomas, mas o de ganhar tempo para a Ucrânia se armar e resolver militarmente o problema.

Washington ensaiava mais uma tentativa de controlar um país com o qual a Rússia, do antecedente a União soviética, partilha fronteira, algo inadmissível para Moscovo. Por isso, não será de estranhar que as propostas avançadas pelo Kremlin no final de 2021 para baixar a tensão na Europa e resolver diplomaticamente a crise na Ucrânia através de um acordo de segurança tivessem sido liminarmente rejeitadas por Washington e Bruxelas.

Tal como o apoio norte-americano aos mujahedin no Afeganistão durante a Administração Carter foi decisivo para “atrair os russos [soviéticos] para a armadilha afegã”, também o apoio militar ao regime instaurado em Kiev em 2014 foi crucial para atrair os russos para a “armadilha ucraniana”. A grande concentração de forças ucranianas no Donbass, na segunda metade de fevereiro de 2022, denunciava uma ação iminente contra as forças rebeldes. Como em 1979, Washington antevia uma resposta de Moscovo e não fez nada para a impedir.

A impreparação russa para uma operação daquela envergadura na Ucrânia levou muitos analistas, incluindo eu, a não considerar provável aquilo que veio a acontecer. Os russos estavam preparados para enfrentar sanções, mas não contavam com o apoio do Ocidente nos moldes em que se veio a verificar.

Como dizia a RAND, num texto entretanto desaparecido da circulação, “as nossas [EUA] ações futuras neste país [Ucrânia] conduzirão inevitavelmente a uma resposta militar da Rússia”. Os russos não serão obviamente capazes de não responder à pressão militar ucraniana massiva sobre as não reconhecidas repúblicas do Donbass. Este cálculo estratégico mostrou-se correto. Para isso, contribui também o anúncio feito por Zelenski na Conferência de Munique, a 19 de fevereiro de 2022, da intenção de abandonar o Memorando de Budapeste (1994) deixando implícita a intenção de se rearmar nuclearmente. Dificilmente Moscovo poderia ficar indiferente.

Os objetivos de Washington com a guerra na Ucrânia foram formulados de diversos modos. O Secretário da Defesa Lloyd Austin afirmou que “os EUA querem a capacidade militar russa enfraquecida.” Na prática, pretendia-se infligir uma derrota estratégica a Moscovo, que numa versão maximalista poderia passar por uma de mudança de regime e instalar uma liderança dócil no Kremlin.

Embora o cálculo estratégico norte-americano fosse em ambos os casos muito semelhante e subordinado ao mesmo racional, não é claro que o plano de Biden na Ucrânia vá resultar como resultou o de Carter no Afeganistão. Não é óbvio que a tentativa de empurrar a Rússia para um pântano semelhante ao do Afeganistão esteja a atingir os objetivos pretendidos.

As analogias entre o caso afegão e ucraniano são muito interessantes. Tanto num caso como no outro, Washington socorreu-se de um proxy para atingir os seus objetivos estratégicos, sem ter de colocar soldados americanos no terreno, utilizando, assim, segundo Richard Haass e Andrzej Duda, um método barato.

Ao contrário dos mujahedin, os ucranianos não estão a conseguir prevalecer no campo de batalha. O anunciado objetivo de controlarem a Crimeia está longe de se concretizar. Uma operação de mudança de regime em Moscovo, sobretudo nos termos pretendidos por Washington, não passa de uma quimera.

Episódios como o ataque ao Capitólio ou marchas sobre Moscovo não passam de sobressaltos rocambolescos, que não colocam em causa o poder instalado. As sanções não estão a destruir a economia russa. Segundo o FMI, o PIB da Rússia contraiu 2,2% no ano passado (contra 3,4% esperado), e este ano, a organização espera que o PIB da Rússia suba 0,3% (contra queda de 2,3% esperada na previsão de outubro) e 2,1% em 2024.

Enquanto o plano gizado por Brzezinski contribuiu para criar as condições que levaram à derrota da União Soviética, e ao estabelecimento de uma Ordem unipolar, esta congeminação da RAND abraçada pelas Administrações Obama e Biden poderá não derrotar estrategicamente a Rússia e levar ao fim do momento unipolar e à afirmação de uma nova Ordem de cariz multipolar, cada vez com mais aderentes, nomeadamente, no designado “Sul Global”. A não materialização de um segundo Vietname russo poderá indiciar que a capacidade do Ocidente controlar o mundo se está a esvair.

A Europa insiste em não perceber o perigo do seu território se transformar num prolongamento do poderio militar norte-americana nas fronteiras da Rússia. Seja na Ucrânia, na Geórgia, na Polónia ou na Roménia. Isso será sempre um fator de instabilidade. Embora com atraso, ainda é tempo de os europeus pensarem seriamente numa nova arquitetura de segurança na Europa, que integre e concilie os legítimos interesses securitários de todos os atores.

Carter 1 – Biden 0 (jornaleconomico.pt)