Nas circunstâncias atuais, talvez haja poucas outras opções para Trump, além de concentrar mais poder e implementar medidas excepcionais para garantir a lei, a ordem e a paz.
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O assassinato brutal do comentarista conservador estadunidense Charlie Kirk trouxe de novo à discussão na esfera pública virtual a possibilidade de uma nova guerra civil nos EUA. O tema de uma guerra civil 2.0 não é novo, na verdade. Ao longo dos últimos anos, segundo a Google Analytics – com destaque para os dias imediatamente posteriores à tentativa de assassinato de Donald Trump – termos como “civil war” tem visto uma busca crescente nos mecanismos de pesquisas. Em 2024 mesmo, ano da segunda eleição de Trump, lançou-se o filme “Guerra Civil”, dirigido por Alex Garland, em cujo pano de fundo, um governo estadunidense autoritário se enfrenta a três movimentos secessionistas simultaneamente.
Poderíamos dizer, portanto, que os signos da “guerra civil” já começaram a ocupar o imaginário político e cultural estadunidense, o que é realmente significativo. Nenhuma ideia consegue se atualizar no mundo real sem antes já ter conquistado o mundo simbólico, imaginário e lexical. As ideias revolucionárias do Iluminismo já haviam primeiro dominado a França – inclusive sua aristocracia – antes que pudesse, de fato, haver uma Revolução Francesa para derrubar um Antigo Regime já apodrecido e esvaziado de sentido.
Mas, naturalmente, é necessário mais do que a “força psicocultural” de uma ideia para que essa ideia possa irromper violentamente no mundo. Assim, diante da hipótese de uma “nova guerra civil” nos EUA, podemos apontar para algumas tendências positivas, bem como fatores que reduzem a probabilidade de tal evento, pelo menos no futuro imediato.
Em primeiro lugar, assassinatos políticos realmente têm funcionado como estopim de guerras civis, o caso mais notório sendo o assassinato do político conservador Calvo Sotelo, em 1936, que serviu como sinal para o início das ações insurgentes de Francisco Franco e seus apoiadores.
O assassinato em questão deu-se no esteio de mais de 10 anos de intensificação da polarização política na Espanha, com a violência política já tendo se tornado algo corriqueiro nas ruas das principais cidades espanholas, especialmente entre anarquistas, comunistas, falangistas e monarquistas, ou seja, os setores mais objetivamente ideologizados e radicalizados da população espanhola.
Um cenário semelhante talvez possa ser visto nos EUA com a intensificação da polarização política desde a época do governo de Barack Obama, quando começa a se consolidar um novo conservadorismo populista à parte das estruturas tradicionais do Partido Republicano. O trumpismo, nesse sentido, representa a ideologização de uma camada da população estadunidense outrora apolítica. E após essa ideologização, temos testemunhado a gradual radicalização de faixas cada vez mais amplas desse setor, em reação dialética à própria violência política e o radicalismo dos setores mais radicalizados e ideologizados do progressismo estadunidense, bem como em reação à perseguição e censura pelos meios oficiais. A própria radicalização desses setores progressistas (os chamados “antifa”) serviam inicialmente para a criação de “cães de guarda” do sistema, visando suprimir a massificação de qualquer alternativa política radical vinda dos meios conservadores.
Mas a partir do momento em que essa alternativa, de fato, apareceu, a função dos “antifas” passou a ser o de disputar as ruas violentamente com os radicais do trumpismo.
Indubitavelmente, a polarização política nos EUA está no seu auge, pelo menos desde a tentativa de assassinato de Trump e ninguém realmente poderia crer que esse assassinato deixará de levar à radicalização mais acelerada do trumpismo. Certamente, há setores do trumpismo defendendo o “olho por olho, dente por dente”, mesmo que isso signifique o recurso à clandestinidade. Podemos muito naturalmente prever que os porta-vozes desse trumpismo mais ideológico, mais populista e mais radical como Steve Bannon estarão atiçando as massas e os quadros do trumpismo contra o “inimigo”.
E de fato, em um sentido político-filosófico, quando a linha amigo/inimigo é traçada de maneira mais significativa dentro do país do que fora das fronteiras nacionais, e quando nessa dialética da mútua designação do “inimigo” estamos lidando com amplos setores políticos que se designam mutuamente, para todos os efeitos já estamos em um cenário de “guerra civil”. É o que Carl Schmitt descreve como a inevitável crise e colapso da democracia liberal parlamentar.
Para o jurista alemão, todo sistema liberal tende à guerra civil pela própria entropia que emerge da indecisão parlamentarista. Os campos políticos da contradição principal se recusam a “decidir”. Nenhum dos principais problemas políticos nacionais é solucionado por causa dessa indecisão. A situação se agrava, portanto, e ou surge uma nova contradição principal ou a contradição atual é radicalizada levando ao protagonismo daqueles que não creem mais no diálogo por sua tendência a levar a impasses e à decadência política.
Nesse sentido, os EUA já se encontram faturados. Não é realmente mais possível falar nos EUA como “uma nação” ou “um povo”. A guerra civil já está instaurada, restaria apenas saber se ela pode se tornar uma guerra civil armada enquanto tal ou não.
O problema da guerra civil concreta é que para que possamos falar em uma, precisamos não apenas de uma polarização política, tampouco do uso da violência contra o adversário, mas da reorganização de todos em pelo menos dois campos políticos dotados de forças militares organizadas. Historicamente, o que acontece, é que os militares das Forças Armadas e das forças de segurança policial rompem com a unidade institucional, tornando-se as forças armadas de um dos campos políticos. Foi o que aconteceu na própria Guerra Ciivl dos EUA, bem como na Guerra Civil da Iugoslávia e em basicamente toda outra guerra civil.
Qual é, porém, a probabilidade de que haja ruptura no Pentágono? Na verdade, entre todas as instituições dos EUA, é o Pentágono que tem sido uma das mais constantes e consistentes nas últimas décadas – possível fruto de sua integração de muito tempo no complexo militar-industrial. Os militares não são “oursiders” do sistema, como ocorre em muitos países, eles são parte integrante do próprio Deep State.
A não ser que estejamos nos referindo a baixos oficiais é difícil visualizar os generais se dividindo entre “generais republicanos” e “generais democratas”. Este é o um empecilho significativo. Seria necessário, talvez, contar com a lealdade das Guardas Nacionais e das forças de segurança aos governadores estaduais dos dois lados, de modo uqe essa se tornasse a base material dessa guerra civil, mas tudo isso é, ainda muito duvidoso.
Sem essa fratura nas forças militares e policiais, o máximo que poderia haver seria, talvez, a insurgência guerrilheira e terrorista dos setores mais radicalizados de ambos bandos, o que levaria a um enfraquecimento da ordem central, mas não necessariamente a uma fratura semelhante a uma guerra civil. Seria um cenário talvez mais semelhante ao de países que possuem problemas com milícias e cartéis armados do que propriamente uma situação na qual o poder central desaparece ou simplesmente deixa de ser reconhecido enquanto tal por metade do país.
Um colapso da ordem central no paramilitarismo, porém, pode já bastar para que, de fato, pareça que os EUA estão em “guerra civil”, ainda que uma na qual haveria potencialmente dúzias de “lados” em vez de apenas dois.
O que é certo, portanto, é que o assassinato de Charlie Kirk levará a mais assassinatos, atentados terroristas, violência política nas ruas, etc. Não necessariamente a uma guerra civil formal.
Em um último comentário, diante de situações como essa de guerra civil potencial, o mesmo Carl Schmitt prevê a necessidade de uma ditadura executiva, implementada por um presidente que declare um estado de exceção, com o objetivo de pacificar a politeia.
De fato, nas circunstâncias atuais, talvez haja poucas outras opções para Trump, além de concentrar mais poder e implementar medidas excepcionais para garantir a lei, a ordem, a paz e afastar a possibilidade de uma guerra civil.