Quando uma sociedade deixa de pensar no modelo de futuro que pretende e se deixa vaguear ao sabor da maré, apenas ficará com o resto das escolhas de outros.
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Se existe algo que podemos retirar deste ataque tarifário dos EUA, tal consiste na confirmação de que é, de facto, extremamente perigoso ser-se “aliado” e “amigo” desta nação. Para além de todos os compromissos absolutamente autodestrutivos a que os seus aliados estão adstritos, e que podem implicar desde uma declaração de guerra a potências como a Federação Russa, à aceitação e normalização da prática de genocídio, ou à aplicação de suicidas sanções e tarifas contra blocos económicos como a China, passando pela “partilha” dos melhores negócios e das mais avançadas tecnologias, também na área aduaneira a relação é perigosamente mortal.
É como se os EUA dissessem aos seus vassalos: “já não chega a vassalagem”; “já não chegam todas as vantagens comerciais, militares, económicas e políticas que a vassalagem nos concede”; “agora têm de pagar pelo direito a serem nossos vassalos”; “um tributo pelo direito a pagar tributo”.
O preço do “direito à vassalagem”, o “direito” a assistir à própria decadência económica, à transformação de economias avançadas em meros sucedâneos económicos é pago com tarifas assimétricas. “Para aqui venderes, tens de pagar tarifas elevadas e, para além das tarifas que entravam a tua economia, ainda tens de transferir para cá o resultado económico desse comércio e todo o potencial económico indirecto que o mesmo origine no teu território”, ou seja “é tudo nosso”. A este pacto leonino, a este acto de bombardeamento e de sabotagem económica, a Comissão Europeia chamou de “acordo equilibrado”. E todos assistiram, uns mais impávidos, outros menos serenos, mas aceitaram como ruminantes num cordato rebanho. Será assim?
Continuo, apesar de tudo o que disse, a ter muitas dúvidas de que possamos ler, na atitude submissa de Von der Leyen perante Trump, uma capitulação efectiva da economia europeia à vontade da casa branca. Não que essa não seja a sua vontade, ou não seja por este tipo de atitudes que a ex-Ministra da Defesa de Merkel e estudante em Stanford ocupe o lugar de Presidente da Comissão Europeia. Contudo, parece-me que este “acordo abrangente”, no quadro do que tem sido a actuação desta comissão europeia e à falta das competências necessárias para negociar tudo o que foi anunciado, visa cumprir outro tipo de desideratos.
Não tenhamos dúvidas do papel que cumpre esta Comissão Europeia no que respeita à captura da economia europeia, pelos EUA, tornando-a pouco mais do que uma extensão mercantil dependente das estratégias da metrópole. São inúmeras as situações em que ficou evidente a actuação de Von Der Leyen como broker negocial dos EUA e promotora dos interesses norte-americanos no continente europeu, em especial, todos os que impliquem uma concorrência directa com a Federação Russa, visando o seu enfraquecimento económico e posterior destruição. Não é nada de que nunca tenhamos falado neste espaço.
Ao predomínio de energia russa na União Europeia e ao importante papel que o acesso fácil, rápido e barato a quantidades enormes de gás assumiu na economia de países como a Alemanha, Von der Leyen respondeu com o silencio apologético da destruição do nordstream, o sancionamento de mecanismos de pagamento que visaram dificultar a compra de energia russa ou a promoção efusiva do GNL e petróleo norte americanos, como o voltou a fazer recentemente, ao referir-se mentirosamente à energia “melhor e mais barata” dos EUA.
Para ferir a economia da Federação Russa, von der Leyen não se preocupou em aniquilar a economia europeia, o que, considerado o passado familiar do seu marido Heiko von der Leyen e as ligações familiares da família von der Leyen ao terceiro Reich e à Galícia, não nos deve descansar nem um pouco, por mais que tentem mascarar estas ligações ancestrais com supostas confusões entre diferentes ramos da família).
Mas, se o ódio russofóbico poderia justificar a submissão face ao Gás e ao Petróleo norte-americanos, o mesmo já não explicaria a submissão face a outros interesses, como o armamento, a grande Pharma, os semicondutores e toda a economia digital. Como é que uma Alemã, nascida na Bélgica, sente todo este patriotismo norte-americano? A explicação estará algures na origem familiar de Úrsula, nomeadamente na família “Albrecht”, família aristocrata proeminente, da área dos negócios, cultura e medicina. A bisavó de Ursula Von der Leyen (Mary Ladson-Robertson), casada com o seu bisavô “Carl Albrecht”, era de uma família esclavagista que explorava a cultura de algodão na Carolina do Sul). Quem pensar que ao nível da aristocracia estas coisas se perdem… Está muito enganado. Se do lado de Heiko existe uma histórica ligação à Ucrânia, nomeadamente à Galícia, arrebatada por Staline, já no lado de Úrsula, as ligações familiares remontam aos sulistas esclavagistas dos estados da Confederação.
Não é então por acaso que Úrsula trepou como trepou a hierarquia europeia. Tudo leva a crer que, no domínio das relações de poder, os anos passados em Stanford com Heiko, a frequentar o seu doutoramento, não terão sido em vão. Por muito que tenham tentado mascarar as relações de Heiko com a Pfizer, como o fizeram órgãos de comunicação social proeminentes, a verdade é que a Orgenesis (companhia norte americana), dirigida pelo esposo da Presidente da Comissão Europeia, trabalhava com a Pfizer e a Biontech no desenvolvimento de vacinas de mRNA, como a do Covid-19. Como sabemos, a este nível, as coisas também não estão fáceis para a Comissão de von der Leyen, derrotada em tribunal no processo Pfizergate).
Mas poderíamos ir muito mais longe na função promotora dos interesses dos EUA, por parte de uma Presidente da Comissão Europeia que nem eleita é, o que diz muito do porquê de fazer o que faz, como faz e porque razão, numa suposta “democracia”, tal cargo é ocupado por alguém da aristocracia mais retrógrada, conservadora e cristalizada dos nossos tempos. Se fosse eleita, não teria um milésimo da capacidade destrutiva que tem. E o tanto que isso nos diz sobre a natureza pérfida da União Europeia e do seu papel subversivo, inimigo dos povos, da paz e do desenvolvimento.
Foi a Comissão de Úrsula quem criou o Chips Act que garante que, mesmo tendo acesso às melhores impressoras EUV de semicondutores, a EU continua a comprá-los aos EUA e a não fomentar a produção de semicondutores avançados de marca europeia; foi Úrsula quem promoveu o aumento das tarifas a painéis fotovoltaicos e carros eléctricos chineses, visando assim promover a indústria norte americana nestes sectores, afectando de morte a transição energética que a sua própria comissão proclama. São muitos os exemplos de promoção dos interesses dos EUA em solo europeu que têm a mão da Comissão presidida por Ursula von der Leyen, como o dissemos aqui).
Portanto, no caso do acordo tarifário e comercial “abrangente” com Donald Trump, o que está em causa não é a intenção de Von der Leyen em apaziguar os EUA e ajudar a salvar as suas pretensões hegemónicas, mesmo que à custa da qualidade e modo de vida dos povos europeus. Essa intenção é reconhecida. O que não lhe é reconhecido, certamente, é a tentativa de usar este acordo para ganhar tempo e sair de debaixo da pata do Tio Sam, como tenta fazer o Japão. Talvez alguns estados membros vejam neste acordo uma oportunidade para diversificarem mercados e diminuírem a sua exposição a Trump, casos da Espanha, Hungria, Eslováquia ou mesmo a França. Nenhuma destas dúvidas está, por razões opostas, em cima da mesa.
O que está em cima da mesa é a razão pela qual Von Der Leyen negoceia um acordo para o qual não tem competências, uma vez que as mesmas se resumem às suas capacidades na dimensão tarifária ou aduaneira. Podemos questionar-nos se Von der Leyen não o saberá, ou se os estados-membros e respectivos governos não o saberão. E se o sabem, porque o fazem ou deixam que se faça.
Estas são, de facto, as questões de mais difícil resposta. Dizer que tal “acordo” provocará danos infindáveis na economia europeia é tão redundante como estéril, face às limitações concretas que surgem na sua aplicação, por muitos e variados motivos. A grande questão a responder é: porque razão Von der Leyen, mesmo sabendo que os vários países europeus rejeitariam tais decisões negociais, mesmo assim insistiu na sua negociação. Alguém acredita que anda tudo a fazer de conta? Que se trata de uma enorme farsa? Esta também pode ser uma perspectiva de análise, face à importância que a aparência e a narrativa têm, hoje, na política ocidental.
Comecemos pelo início: porque razão interessa à Comissão Europeia e aos seus apoiantes (como Frederick Merz) entrar neste jogo com Donald Trump? Porque é que interessa às elites oligárquicas da União Europeia entrar numa negociação inquinada, desequilibrada, prescindindo de todas as vantagens que se pudessem ter? Nos casos de Úrsula e Merz podemos partir do princípio que as suas ligações umbilicais, profissionais, corporativas, emocionais, aos EUA e a tudo o que seja anti-russo, explique grande parte da intenção e submeter a EU ao sapato pesado dos EUA, para que esta não volte a resvalar para o leste europeu. Mas e o resto dos países europeus?
Na minha opinião, a resposta já a havia dado neste artigo, quando falei da fábrica de crises que é a Comissão Europeia e a forma como utiliza as crises produzidas ou assumidas, para esmagar os direitos dos povos, dos trabalhadores, das suas famílias). Para as elites oligárquicas europeias, a crise “tarifária” é mais um momento para assustar e com ela esmagar os interesses das massas trabalhadoras da EU. Umas horas depois do “acordo” e já a ministra alemã Katerine Reiche vem dizer-nos para “olhar para os EUA” e dizer que “os alemães precisam de trabalhar mais”. Ou seja, ao mesmo tempo que falam em Inteligência Artificial, em digitalização, da forma como aumentarão a produtividade, num momento em que os mais ricos nunca concentraram tanta riqueza como em outro momento da história, as elites oligárquicas e os seus moços de recados vêm dizer-nos que não chega. Mais tempo de trabalho, menos de escando, ataque às pensões e tudo sem explicar porque é que o que funcionou antes, deixou de funcionar, logo agora, que temos à disposição tecnologias que nunca tivemos. Agora que podíamos viver quase sem trabalhar, vêm dizer-nos que afinal “não”, afinal temos de “trabalhar muito mais”.
Já os empresários portugueses vieram dizer que “15% são geríveis e melhores que 30%”. E por essa ordem de ideias 30% seria melhor que 100 e 100 melhor que 1000. É o que se pode designar de “lógica da batata”, mas que revela muito da natureza ultima da chantagem e submissão trumpista. O objectivo fundamental não são as tarifas, mas tudo o que levam a reboque com elas. Quando se trata de aumentar salários, diminuir o tempo de trabalho, conciliar a vida com o trabalho com tempo para a família e o lazer, tudo isso é impossível, “a economia não aguenta”, mas acomodar mais 15% de custos nas exportações, já é “gerível”!
Trump provocou assim mais uma crise perfeita. Se o neoliberalismo e as instituições que o promovem (Washington, Wallstreet, FMI, EU, Banco Mundial) são peritos em criar crises, também o são em aproveitá-las. Todos se recordam de como o subprime foi aproveitado para introduzir a austeridade em toda a EU, sob a farsa de uma crise da dívida soberana que foi implantada para salvar o Deutche Bank e, indirectamente, a banca estado-unidense. A verdade é que a cada crise, fabricada ou aproveitada, todos saímos mais pobres. Esta não será excepção. O comunicado de Von der Leyen diz-nos tudo o que precisamos: turbulência, instabilidade e é preciso estabilizar e dar previsibilidade.
Ao ameaçar com 30% de tarifa aduaneira, Trump despoletou o cenário ideal para o medo e para o seu aproveitamento. Não apenas criou as condições para a submissão final dos interesses económicos europeus aos dos EUA, como providenciou a justificação para a sua entrega pelas submissas elites políticas e económicas europeias. O medo que provocou, a chantagem que iniciou, exigindo o pagamento de um autêntico tributo pelo direito a ser-se vassalo e economicamente capturado pelos EUA e a sua oligarquia imperialista, não apenas lhe fez ganhar 15% em tarifas para os seus cofres, como permitiu a Von der Leyen aparecer como a salvadora quando, antes, à entrada de 2025, a EU contava com tarifas de 1 a 2%.
No fundo, todos estes meses de discussão em torno das tarifas visaram apenas criar o cenário de instabilidade a que a Presidente da Comissão Europeia se agarrou para poder obter o grande ganho, que é o que vem acoplado e a reboque do acordo tarifário: as compras de armas e energia, o investimento directo estrangeiro nos EUA. Se à entrada de Trump na casa branca nada faria supor tal deslocação de capital, para mais tendo em conta todas as que já tinham ocorrido sob Biden, com o medo gerado e a submissão à chantagem, chega a justificação para a possibilidade de uma pilhagem sem precedentes.
Mas o que pensarão estados como a França, a Itália ou a Espanha de tal acordo, quando as suas economias se viram paulatinamente para oriente, continuam a comprar energia russa e as suas economias necessitam urgentemente dos recursos que agora a EU quer transferir para os EUA? Será que vão prescindir de todos os Fundos Estruturais Plurianuais?
A este respeito parto do princípio que a atitude é ambígua, cautelosa e cínica. Para não gerar conflitos na designada “coesão europeia”, cada vez mais posta em causa, estas nações olharão para este acordo como o que ele é: um instrumento de marketing da Comissão Europeia em prol da economia norte americana, negociado sem competências para o efeito, de forma autoritária, autocrática e leviana, que visa constituir simultaneamente um tecto e um catalisador de compras de energia e armas made in USA e de “convite” ao investimento naquele país, possibilitando, também, a produção de um quadro psicológico de instabilidade que assuste os trabalhadores europeus. Todos ganham qualquer coisa, excepto os trabalhadores europeus e os norte-americanos.
Consequentemente, a atitude terá sido: “deixem-na negociar, porque não aplicaremos nada do que ela pensou ter negociado”; “por outro lado, o medo gerado dá-nos jeito para governar, uma vez que tal medo pode ser utilizado para esmagar os direitos dos trabalhadores e suas famílias”; “portanto, vamos fazer de conta que tudo está bem”. A atitude típica que se fez sentir face à Ucrânia, em que a efusividade dos apoios verbais tantas vezes contrastou com as acções concretas, com a excepção de Viktor Orbán que, qual excepção ao hipócrita descalabro, insiste em dizer aquilo que sente e vê acontecer.
O facto é que as condições de aplicação do acordo são uma ilusão. Quem decide comprar ou não comprar armas, são os estados membros; quem decide comprar, ou não, energia dos EUA, são os estados membros; quem decide, ou não, investir nos EUA, são os estados membros. Ou seja, Úrsula von Der Leyen nada pode nesse aspecto, daí que tenha engendrado esta forma, tão torpe quanto abusada, de tentar enganar meio mundo, ao fazer crer que podia negociar, o que manifestamente não estava ao seu alcance. As razões que a levaram a tal coisa, prendem-se com a tentativa de utilizar os montantes acordados como tectos a atingir que possam ser utilizados, em sede de propaganda na média corporativa e nas reuniões institucionais, para convencer os governos dos estados membros de que é mesmo necessário cumprir o que ela acordou, e para que estes tenham os instrumentos para convencer os respectivos povos do mesmo. Trata-se de uma tentativa de criar uma certa convicção de obrigatoriedade, onde a mesma não existe.
Terá sido a consciência de que esta convicção de obrigatoriedade não existe que terá apaziguado estados como a Espanha, mais virada para Oriente, ou mesmo a Alemanha, interessada no medo que esmaga os direitos sociais, mas menos interessada nas compras forçadas. A tarifa torna-se despicienda para a maioria dos estados, na medida em que podem usar as tarifas e a necessidade de comprar o que não pretendem comprar, pelo menos nos níveis anunciados, para esmagar direitos sociais que pouparão milhões aos estados e aos patrões. As tarifas ficarão largamente compensadas.
Não apenas estamos perante mais uma das crises de que Von der Leyen é tão reconhecidamente fértil, para transferir recursos para os EUA, como perante mais uma farsa que visa enganar os mesmos de sempre. Uma coisa é certa, no final ficaremos todos com energia mais cara, nem que seja para engordar os lucros das energéticas europeias, mais armamento para fazer face ao caminho de guerra já traçado e menos direitos laborais, pensões mais baixas e serviços públicos e infra-estruturas ainda mais deteriorados. A acompanhar esta decadência ficaremos também mais expostos à repressão, pois será necessário apaziguar, nem que seja pela força, as pressões sociais que daqui advirão.
Caso este acordo tarifário não seja, para a EU, tudo isto que eu aqui referi, então o resultado é ainda mais grave. É que se não se tratar de uma mera de ferramenta, por um lado, da pressão que Úrsula Von der Leyen exercerá sobre os estados membros para atingir os resultados económicos pretendidos, por outro lado, um aproveitamento da maioria dos governos ocidentais para esmagarem direitos sociais e democráticos, e, por fim, uma hipocrisia por parte dos que já sabem não o ir cumprir e nada fazem porque, para além de poderem retirar vantagens do enquadramento causado, não quererem causar ainda mais danos à já fraudulenta “coesão europeia”… Então, só sobram duas respostas mais.
Como é que ficamos? O “acordo” é uma farsa, ou somos nós que vivemos numa farsa, com aparência de sistema sufrágico? A estratégia trumpista é apenas uma questão de óptica, para obtenção de resultados eleitorais e respectivas vantagens económicas, ou vivemos numa república das bananas?
Ainda sou do tempo das negociações do célebre TTIP (Trans-atlantic Trade and Investment Partnership), entre EUA e EU, sob a égide de Obama e que Trump interrompeu. Este acordo começou a ser negociado em Julho de 2013, mas já estava em preparação (de forma secreta) há mais tempo, representando a peça com que Obama contava poder recuperar – também à conta da EU – os EUA. A preparação e estudo das propostas, no lado europeu, envolveram centenas de grandes corporações (as maiores beneficiárias) e todos os parceiros sociais. Lembro-me bem de os técnicos e chefes de gabinete das várias direcções gerais da Comissão envolvidas nas negociações, surgirem em reuniões bilaterais entre patronato e sindicatos europeus, conferências de alto nível e outros eventos, para apresentarem o TTIP e convencerem os diversos actores de que este era muito vantajoso. Em causa estavam trocas comerciais no valor de 210 mil milhões de euros (120 para a EU, 90 para os EUA). O texto foi escrutinado, estudos sectoriais foram produzidos e muitas críticas surgiram.
O facto é que, tomando a sério o que é sério, o TTIP constitui um exemplo bem recente de como estas coisas acontecem e das forças materiais com que implicam. A garantia de que o TTIP – como o CETA com o Canadá – era para aplicar, não resultava apenas do texto escrito, mas da profundidade da discussão, do empenhamento dos atores e do convencimento das forças económicas vivas na sua aplicação. O texto seria um reflexo disso mesmo. Se era para cumprir, então tinha de se levar a sério.
Ora, o que aconteceu entre Trump e Ursula Von der Leyen é bem diferente e, visto sob esta luz, absolutamente desconcertante. Um acordo com tal extensão sem se discutir, estudar, planear, orientar a aplicação no terreno e a forma como a economia real vai responder a cada um dos trâmites envolvidos. Nem um documento escrito, um plano para escrutínio, um estudo ou uma previsão económica sobre os impactos possíveis?
Alguém acredita que se parte para uma negociação deste nível, sem um estudo profundo sobre impactos e consequências? Sem uma análise rigorosa, mesmo que com os nossos algozes, sobre as opções, vantagens e desvantagens, margens negociais e outras variáveis? Será que o novo normal é o que temos assistido em Istambul? Acordos à pressa, para mostrar á imprensa, não para resolver os problemas, mas para justificar determinadas opções perante a opinião publica? Será que estes acordos são apenas instrumentos de construção e narrativas e aparências?
Se esta for a resposta, então temos de admitir que, de facto, vivemos numa enorme farsa. Mas admitir o contrário, de que os estados-membros, onde se exerce o sufrágio eleitoral que ratifica os actos governamentais, assistem impávidos a uma negociação deste tipo, chefiada por alguém que, todos sabem e os actos demonstram-no, é mais fiel aos EUA do que aos europeus, diz-nos que vivemos numa plutocracia, em que alguém, por conta de quem agem os burocratas e tecnocratas da Comissão Europeia, assusta, manipula, decide e aplica, sem qualquer escrutínio, actuando apenas para justificar a pilhagem continuada dos recursos económicos que ainda se encontram na posse da classe trabalhadora, sejam as suas habitações próprias ou os direitos sociais que tratados, leis e constituições ainda consagram. A resposta andará algures no meio.
Contudo, No final serão os povos, a força da sua soberania, enquanto fonte de legitimidade democrática, e a sua luta que determinarão em que medida este acordo é aplicado, em que medida as empresas serão capazes de diluir os 15% de tarifas através do esmagamento dos salários ou se serão obrigadas a procurar novos mercados, se a EU vai continuar nesta senda de diabolização e imprescindíveis parceiros como a Federação Russa e a China (agora Trump também está a diabolizar a India e o Canadá) e se a União Europeia vai ou não sobreviver, a esta onda de aniquilação do modo de vida europeu, para o trocar por um qualquer projecto de tipo argentino.
A alternativa a esta luta, a esta emancipação e libertação das garras globalistas que Trump também mobiliza, será a transformação da União europeia numa espécie de américa latina, mas para pior: com uma população mais envelhecida e sem recursos naturais.
Quando uma sociedade deixa de pensar no modelo de futuro que pretende e se deixa vaguear ao sabor da maré, apenas ficará com o resto das escolhas de outros. Eis o que é hoje a vida dos países submetidos a esta força centrifugadora de recursos que é a União Europeia.