Lula e o PT confiaram à burguesia brasileira a defesa da soberania nacional, escreve Eduardo Vasco.
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Lula e o PT confiaram à burguesia brasileira a defesa da soberania nacional. Ela está negociando as tarifas com os Estados Unidos e é para ela que o governo vai despejar dinheiro público, a fim de salvar os seus lucros em nome da “proteção da economia nacional”.
A esquerda não percebe, mas está entregando o cuidado do galinheiro às raposas.
Coerente com a política de alianças e crenças estabelecida desde o início do governo, o PT buscou o centrão e os capitalistas para lhe ajudar a solucionar a crise aberta com o anúncio de tarifas feito por Donald Trump. As relações com a burguesia estavam em seu pior nível desde o início da escalada golpista contra Lula e o espantalho bolsonarista caiu como uma luva neste momento.
Mas a luva caiu na mão do centrão, não de Lula. O 8 de janeiro foi a oportunidade de colocar uma camisa de força no governo e impedir que ele agisse de forma minimamente independente do centrão. O desgaste no primeiro semestre ameaçava uma ruptura precoce por parte do centrão, cujos partidos começavam a entregar os cargos no governo mais de um ano antes das eleições.
A burguesia percebeu que havia riscos em uma operação tão prematura. Institucionalmente, Lula sairia fragilizado, mas, por outro lado, aquela camisa de força já não estaria tão apertada. Lula poderia ficar mais livre dos compromissos com o centrão.
Com as tarifas e a atuação abertamente entreguista do bolsonarismo, a burguesia viu a chance de matar dois coelhos com uma cajadada só. Poderia afastar de vez as chances eleitorais da família Bolsonaro, garantindo o lugar de um ou mais candidatos do centrão, bem como apertar ainda mais forte o presidente Lula em sua camisa de força para se livrar dele em hora mais oportuna.
Desde o Judiciário parceiro do Deep State até Tarcísio de Freitas, o homem da BlackRock e do Bank of America, toda a direita brasileira (essa é o centrão) se tornou nacionalista num passe de mágica. Fala-se em uma união nacional em defesa da democracia e da soberania. Lula, então, deixou para Geraldo Alckmin cuidar das negociações com o governo americano. Ao mesmo tempo, abraçou os capitalistas, buscando apoio mútuo.
Mas os empresários em quem Lula busca se apoiar não estão nada satisfeitos com a sua abordagem da crise com Trump. A retórica nacionalista de Lula atrapalha (embora seja absurdamente rebaixada, e não passe de mera retórica). Eles não estão nem aí para a mínima soberania nacional. A Taurus, por exemplo, já cogita transferir sua produção para os Estados Unidos. A Embraer sinaliza uma ação em sentido semelhante, já que metade de seus aviões já são americanos.
Mas há também muita chantagem envolvida. Com as ameaças de quebra de empresas, suspensão da produção e demissões em massa, os grandes capitalistas exigem do governo um “plano de contingência” para salvar os seus lucros. A associação de produtores e exportadores de frutas – do agronegócio – diz que frutas como a manga vão ser deixadas para apodrecer no pé, devido à suposta falta de mercado. Os ruralistas do Vale do São Francisco dizem preferir deixar a uva apodrecer e arcar com os custos de colher a fruta estragada e enterrá-la para evitar pragas, ao invés de venderem a preços menores para a população. Quem nunca viu as fotos de toneladas de café sendo queimadas, logo após a crise de 1929, porque a oligarquia cafeeira preferiu desperdiçar o produto a disponibilizar para o povo brasileiro a preços baixos? A burguesia ameaça fazer o mesmo agora.
Mas Alckmin e Haddad já prometem salvar os capitalistas repetindo o que fez o governo Bolsonaro na pandemia, com uma gigantesca transferência de renda do povo para o bolso da burguesia, com linhas de crédito, compras governamentais e outros mecanismos que abrirão ainda mais os cofres públicos para os grandes empresários.
Ou seja, os mesmos que passaram os últimos meses reclamando dos gastos do governo com programas sociais e exigindo um ajuste fiscal que corte no salário mínimo e na aposentadoria, para “sanar as contas públicas”, agora pedem socorro ao governo. Haddad demonstra muita preocupação com os gastos acima da meta fiscal, mas se cala sobre o dinheiro intocável que vai direto para os credores da dívida pública e promete despejar o dinheiro do povo na conta dos exploradores do povo.
A prioridade nesse programa seriam as empresas que mais dependem da exportação para os Estados Unidos. As madeireiras do sul do país não querem papo: já estão demitindo milhares de operários. Esses capitalistas, que exportam quase tudo para os EUA, estariam entre os privilegiados do plano de Haddad e Alckmin. Assim como os usineiros de Minas Gerais.
Ainda está em aberto qual será o resultado das negociações com os Estados Unidos. Até agora, Trump tem sido irredutível. Mas, pela disposição da burguesia brasileira e pelos exemplos internacionais de acordos tarifários com Trump, tudo indica que o estrago será muito feio. Até países e blocos poderosos como Japão e União Europeia tiveram de se curvar perante as imposições de Trump, com a abertura sem precedentes de seus mercados para os produtos e serviços americanos, sem verdadeira reciprocidade.
Conforme passarem os primeiros dias de agosto e nada tenha sido decidido, todos os canhões se voltarão para um único culpado: Lula. Mesmo que um acordo seja alcançado, o mais provável é que ele seja ainda mais humilhante para o Brasil que o da União Europeia foi para Bruxelas. Mas o governo irá apresentá-lo como o melhor dos mundos possíveis, que pelo menos salvou a soberania e a democracia. A burguesia brasileira, que, desde o primeiro momento, já deixou claro que quer ceder o que for preciso, vai elevar exponencialmente a pressão contra Lula, acusando-o de intransigência, ideologia e incompetência por ter demorado e possibilitado a piora da crise. Ninguém mais lembrará da sabotagem bolsonarista.
Lula e o PT sairão enfraquecidos, a soberania aniquilada, o centrão fortalecido e o bolsonarismo protegido.
Em editorial publicado dias atrás e intitulado “Brasil paga a conta da imprudência de Lula”, O Estado de S. Paulo ecoa a opinião que deverá conquistar os banqueiros e grandes empresários daqui para a frente. Recordando as ameaças de Trump aos membros do BRICS, o Estadão afirma: “tudo isso evidencia a imprudência do presidente Lula da Silva de alinhar o Brasil à China e à Rússia a pretexto de fortalecer o Brics contra os EUA de Trump. A única forma de poupar o Brasil dos efeitos deletérios dessa decisão seria abandonar esse bloco, que se presta unicamente aos projetos chineses e russos, sem qualquer ganho concreto e de longo prazo para o País.” O jornal ainda chamou Lula de vassalo da China e criticou a ideia da desdolarização.
Como já havia feito anteriormente (a exemplo do Estadão), O Globo voltou, esta semana, a clamar, em editorial, que “o governo Lula precisa aproveitar a oportunidade para promover a abertura da economia brasileira, uma das mais fechadas do mundo (!)”. É a velha cartilha neoliberal, aplicada em sua plenitude na década de 1990, reforçada após o golpe de 2016 e exigida novamente agora. É exatamente o que quer Trump e o conjunto da burguesia imperialista americana – e internacional. Esse é o propósito central das tarifas.
Essa abertura econômica favorecida pela tensão tarifária é uma extensão dos resultados que a burguesia brasileira – orientada pela burguesia internacional – quer alcançar com um novo e robusto ajuste fiscal. A prova de que trata-se de uma exigência dos banqueiros imperialistas está em um artigo publicado no Valor Econômico duas semanas atrás, “O ajuste que o Brasil não pode mais adiar”. Segundo o artigo, “o foco do ajuste fiscal deveria estar no controle, ou idealmente na redução, das despesas correntes, especialmente nas rubricas que mais pressionam o orçamento. A principal delas é a de benefícios previdenciários e assistenciais […]. Esse gasto é majoritariamente destinado a idosos por meio do Regime Geral de Previdência Social (RGPS), dos regimes próprios de servidores e do Benefício de Prestação Continuada (BPC)”. A peça é assinada por Cornelius Fleischhaker, economista sênior do Banco Mundial para o Brasil, e Andreza da Conceição, consultora do Banco Mundial para o Brasil.
Mas, mesmo que tente agradar o capital internacional, Lula não tem jeito para aplicar uma política como essa. Tanto é assim que deixou as negociações para os membros do governo melhor relacionados com os grandes capitalistas. Quem realmente tem jeito para isso, porém, são Tarcísio, Zema, Caiado, Ratinho Jr. e Leite. Eles, aliás, passaram à frente do governo e já anunciaram seus respectivos planos de contingência para o empresariado em seus estados. A política econômica que está sendo desenhada por todos os patriotas e nacionalistas de dentro e de fora do governo para atender às exigências do imperialismo americano é, afinal de contas, a política tradicional do centrão. É ele quem tem o know-how, desenvolvido desde Collor, passando por Itamar Franco e FHC, até Michel Temer, para desmontar definitivamente a soberania brasileira.
O centrão está muito bem afinado com os interesses tanto da burguesia nacionalista, democrata e antifascista brasileira quanto de Trump e do imperialismo. No dia 13 de agosto, Tarcísio, Zema, Caiado e Ratinho Jr. participarão de um evento com 500 líderes das principais empresas do Brasil. Outro convidado é ninguém mais, ninguém menos, que Javier Milei. O nome do evento demonstra qual é o seu caráter: President’s Day!
A burguesia patriótica brasileira quer um presidente que sirva aos Estados Unidos, como serve Javier Milei na Argentina.
Aqui entramos no ponto sobre a proteção ao bolsonarismo. Milei aplica a política dos sonhos dos banqueiros internacionais, tanto é assim que ele é elogiado quase todos os dias pelas principais publicações do capital financeiro. E não importa que ele seja fascista, que tenha um discurso e uma prática repressiva, autoritária, que governe por decretos, que persiga opositores e que fale bobagens politicamente incorretas. Afinal, como muitos consideram, ele é uma espécie de Bolsonaro portenho.
A embaixada dos EUA na Argentina tem interferido diretamente na política local. O embaixador, Peter Lamelas, disse com todas as letras em uma audiência no Senado americano: um de seus objetivos é “garantir que Cristina Fernández de Kirchner receba a justiça que merece”. Ele também prometeu viajar por todo o país para impedir que os governadores façam negócios com a China. Em Cuba, o encarregado de negócios da embaixada dos Estados Unidos também está viajando o país para se encontrar com contrarrevolucionários, a fim de articular mais uma tentativa de gerar o caos na ilha.
Já no Brasil, a embaixada americana, pela primeira vez na história, emitiu uma nota crítica ao governo e apoiadora do principal opositor. Dias depois, o encarregado de negócios afirmou que os EUA querem as terras raras brasileiras, que já são exploradas pelos americanos (Trump está conseguindo até as da China e da Rússia!). Os seus contatos – que incluem as pessoas mais poderosas do Brasil – já estão trabalhando para garantir os interesses do governo Trump, que, em vários aspectos, são iguais aos do Deep State e do Partido Democrata. Os EUA são o maior investidor de capitais no Brasil, representando quase um terço de todos esses investimentos. O nosso país não é nem um pouco soberano, ao contrário do que prega a propaganda do governo e da burguesia.
A ofensiva dos Estados Unidos sobre praticamente todos os países do mundo, pela qual estão dobrando as maiores potências, arrancando as empresas para que produzam nos EUA e abrindo os diferentes mercados nacionais, demonstra que Trump não vai largar o osso do Brasil até conseguir o que quer. Ele já disse o que quer: a submissão econômica do Brasil. Vê nos bolsonaristas os mais fiéis agentes internos que possam trabalhar para assegurar essa submissão. De fato, apesar de os membros do centrão serem os mais profissionais e experientes, os bolsonaristas são os mais engajados, defendem os EUA abertamente. E, para o trumpismo, são também os mais fiéis. Por isso os está protegendo tanto. Ainda que Jair Bolsonaro possa não ter salvação imediata, o seu grande trunfo é o apoio de Trump para que o candidato do centrão que, alinhado com a burguesia brasileira, receba o apoio do imperialismo para governar o Brasil, livre Bolsonaro e os bolsonaristas a fim de criar um ambiente propício para a entrega do país ao imperialismo. O bolsonarismo, como é o fascismo, sempre foi a tropa de choque da burguesia e sempre atuou nos momentos decisivos para defender o seu saque das riquezas dos trabalhadores.
A conciliação de Lula e do PT com a burguesia e o centrão pode até ter levado a uma trégua com esses setores. Mas a política que está vencendo é a do centrão, não importa quem a aplique. Se a esquerda acha que sua aliança com o centrão colocou o bolsonarismo de escanteio, é melhor ver quem realmente ganha politicamente com isso. O bolsonarismo não se resume a Jair Bolsonaro e sua família. O centrão, o bolsonarismo, o trumpismo e o imperialismo estão trabalhando, no fundo, pelo mesmo interesse: espoliar o Brasil. E a esquerda, acreditando defender a soberania nacional, está apoiando um desses atores sem perceber que facilita a conquista do objetivo comum de todos eles.