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Raphael Machado
July 6, 2025
© Photo: Public domain

Há muitos modelos ou propostas de multipolaridade, mas as mais equilibradas preveem pelo menos um polo para cada continente ou civilização.

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Um dos aspectos fundamentais da ideia de multipolaridade é precisamente que alguns países estariam imbuídos de uma certa responsabilidade histórica de alcançar o patamar de “polos” nessa nova ordem. Ou seja, que alguns países deverão tornar-se centros aglutinadores regionais ou continentais e, com isso, lideranças em um horizonte internacional no qual, por mais que se respeite as soberanias nacionais, um novo realismo impõe a primazia de determinados países que poderiam ser lidos à luz do conceito de “Estado-Civilização”, desenvolvido pelo filósofo chinês Zhang Weiwei.

Há muitos modelos ou propostas de multipolaridade, mas as mais equilibradas preveem pelo menos um polo para cada continente ou civilização. Se o lugar da Rússia, China, Índia e EUA é óbvio nesse contexto, algumas outras zonas planetárias têm um destino menos incerto.

O conceito de pseudomorfose de Oswald Spengler ajuda a explicar por que o Brasil, apesar de seu potencial, enfrenta dificuldades para se consolidar como uma potência autônoma. Desde sua formação, o país vive sob o peso de formas culturais e institucionais importadas, que distorcem seu desenvolvimento orgânico e perpetuam uma dependência estrutural. A Europa encontrará o próprio caminho ou ficará a reboque dos EUA? Em que direção a balança penderá no Oriente Médio? Na direção do Irã, da Turquia, da Arábia Saudita ou de Israel? E de que forma a África Subsaariana se reorganizará para encarar o desafio da multipolaridade?

Outro caso é o da América Ibérica, do México à Argentina. Essa região conheceu interessantes projetos geopolíticos, como o capitaneado pelo argentino Juan Domingo Perón em meados do século XX e mais recentemente o bolivariano conduzido pelo venezuelano Hugo Chávez. Mas podemos retroceder no passado para refletir sobre o esforço de Simón Bolívar de manter unidas as repúblicas recém-libertadas de Madri. O projeto imperial brasileiro de unificação com a Argentina. As pretensões regionalistas jamais concretizadas do Império Mexicano. E assim por diante.

Mas entre todas essas hipóteses e possibilidades sempre se destacou a expectativa de que o Brasil desempenharia um papel de liderança pelo menos na América do Sul, e talvez em toda a América Ibérica. O próprio fato de que o Brasil permaneceu unificado após sua independência de Portugal, enquanto a América Espanhola se fragmentou, colocou o país em uma certa situação de vantagem.

No entanto, poderíamos dizer que o Brasil está plenamente preparado para assumir a posição de um dos polos em um mundo multipolar?

Uma afirmativa aqui pareceria duvidosa. O país carece de armas nucleares e possui forças armadas antiquadas e dependentes da doutrina e tecnologia dos EUA, não é autossuficiente economicamente e não é industrializado; ainda pior: no âmbito cultural, acadêmico e mesmo psicológico, o Brasil é integralmente pautado por aquilo que é produzido entre Nova Iorque, Londres e Paris.

Aqui, neste último ponto, talvez tenhamos encontrado uma chave importante para entender as dificuldades brasileiras.

Uma nova ordem multipolar estaria, potencialmente, estruturada ao redor dos chamados Estados-Civilizações, tal como descritos por Zhang Weiwei e repetido por Alexander Dugin, em superação à figura pós-vestfaliana do Estado-nação. E apesar de não ser nossa pretensão aqui definir o que seria, então, uma “civilização”, podemos apontar para a necessidade de um horizonte cultural autônomo dotado do seu próprio ritmo de desenvolvimento.

Como o Brasil se sai neste quesito?

Aqui de início devemos rechaçar a noção de que o Brasil seria intrinsecamente ocidental. A realidade é que os portugueses fundaram, com a sua colonização, um “povo novo” (nos termos do teórico brasileiro Darcy Ribeiro) que não é mero transplante do povo português, nem mera soma de elementos portugueses, indígenas e africanos, tampouco mera continuação da civilização pré-colombiana tupi-guarani.

Para todos os efeitos, portanto, essa colonização deveria ter dado início a um processo de evolução cultural próprio, especialmente a partir da Independência do país em 1822.

O problema é que nada disso aconteceu. A classe intelectual brasileira ao longo do século XIX tomou como referência a França e passou a importar todas as suas tendências. Mas a França do século XIX, particularmente pós-Napoleão, já era um país em vias de decadência, um país que avançava de forma acelerada no caminho de autonegação pavimentado pelo Iluminismo.

Aqui não se está criticando a recepção de influências estrangeiras, já que todos os povos e culturas se desenvolvem absorvendo e adaptando influxos vindos de outras regiões.

O que aconteceu com o Brasil, porém, é que sobre uma protocultura primaveril foi acoplada a cultura de um Ocidente já invertido e decaído: positivismo, materialismo, freudismo, relativismo – o Brasil mal havia nascido e já recebia as construções tardias de uma civilização europeia cansada e “virada de cabeça para baixo” pela Revolução Francesa.

Esse tipo de fenômeno é chamado de “pseudomorfose” pelo filósofo alemão Oswald Spengler. Segundo Spengler, a pseudomorfose era um fenômeno que acometia certas culturas jovens que, por determinadas circunstâncias, eram sobrepujadas por culturas mais maduras a ponto de perderem a capacidade de crescer por conta própria e realizar seu próprio potencial. A pseudomorfose é como um cabresto cultural que constrange e comprime culturas jovens e férteis a seguirem os passos de civilizações envelhecidas e calcificadas.

É por isso que sem ter passado realmente por um auge e sem ter realizado o seu próprio potencial, o Brasil já sofre com todas as manifestações e sintomas da decadência ocidental. Uma piada diz que o Brasil é um país com “infraestrutura do Haiti e progressismo da Suécia”. Parcialmente um exagero. Parcialmente.

Interessantemente, segundo Spengler a Rússia também havia sido vítima de uma pseudomorfose. Sendo uma cultura potencialmente original, ela havia sido “ocidentalizada” de cima para baixo, praticamente à força, a partir de Pedro o Grande. Boa parte das tensões intelectuais e artísticas da Rússia ao longo do século XIX e XX tiveram que ver com a disputa entre tendências ocidentalizantes (usualmente uma influência especificamente francesa) e tendências eurasiáticas. Em certo sentido, o que vemos nos últimos anos do governo Putin é, precisamente, uma retomada da Rússia-Eurásia como projeto civilizacional autônomo, em superação à pseudomorfose que vitimou a Rússia no passado.

O Brasil também viu essa pseudomorfose espalhando-se a partir do final do século XVIII e início do XIX, com a difusão do Iluminismo em nosso país. A partir de então, Paris passou a ser o referencial civilizacional do Brasil e o Império não foi capaz de oferecer um projeto alternativo. Os intelectuais da época tampouco foram capazes de se mobilizar culturalmente de uma maneira análoga aos intelectuais eurasianistas e eslavófilos russos.

Apenas nos anos 20, 30 e 40 do século XX – com a “Semana de Arte Moderna”, a “Revolução de 30” e o “Estado Novo”, o “integralismo”, a revista “Cultura Política”, etc. – o Brasil esteve diante de tendências que visavam repensar o Brasil de uma maneira mais autônoma, como propriamente uma civilização ou como o coração de uma civilização ibero-americana, nem europeia, nem africana, nem indígena.

A aliança com os EUA, porém, afastou uma vez mais essa possibilidade, reforçando a pseudomorfose. Nosso referencial deixou de ser Paris e passou a ser Nova Iorque.

Como um país pode, porém, se livrar desse dilema? A tarefa é necessária, porque as ações de um país serão ditadas pela fisionomia de sua cultura. Mas ela nem por isso é simples. É uma tarefa que cabe à classe intelectual, a eterna responsável por desbravar as selvas do espírito.

Até que o Brasil encare esse desafio permanecerá tendo dificuldade de reivindicar um papel de protagonismo numa ordem mundial multipolar.

O impasse brasileiro: Um problema de pseudomorfose?

Há muitos modelos ou propostas de multipolaridade, mas as mais equilibradas preveem pelo menos um polo para cada continente ou civilização.

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Um dos aspectos fundamentais da ideia de multipolaridade é precisamente que alguns países estariam imbuídos de uma certa responsabilidade histórica de alcançar o patamar de “polos” nessa nova ordem. Ou seja, que alguns países deverão tornar-se centros aglutinadores regionais ou continentais e, com isso, lideranças em um horizonte internacional no qual, por mais que se respeite as soberanias nacionais, um novo realismo impõe a primazia de determinados países que poderiam ser lidos à luz do conceito de “Estado-Civilização”, desenvolvido pelo filósofo chinês Zhang Weiwei.

Há muitos modelos ou propostas de multipolaridade, mas as mais equilibradas preveem pelo menos um polo para cada continente ou civilização. Se o lugar da Rússia, China, Índia e EUA é óbvio nesse contexto, algumas outras zonas planetárias têm um destino menos incerto.

O conceito de pseudomorfose de Oswald Spengler ajuda a explicar por que o Brasil, apesar de seu potencial, enfrenta dificuldades para se consolidar como uma potência autônoma. Desde sua formação, o país vive sob o peso de formas culturais e institucionais importadas, que distorcem seu desenvolvimento orgânico e perpetuam uma dependência estrutural. A Europa encontrará o próprio caminho ou ficará a reboque dos EUA? Em que direção a balança penderá no Oriente Médio? Na direção do Irã, da Turquia, da Arábia Saudita ou de Israel? E de que forma a África Subsaariana se reorganizará para encarar o desafio da multipolaridade?

Outro caso é o da América Ibérica, do México à Argentina. Essa região conheceu interessantes projetos geopolíticos, como o capitaneado pelo argentino Juan Domingo Perón em meados do século XX e mais recentemente o bolivariano conduzido pelo venezuelano Hugo Chávez. Mas podemos retroceder no passado para refletir sobre o esforço de Simón Bolívar de manter unidas as repúblicas recém-libertadas de Madri. O projeto imperial brasileiro de unificação com a Argentina. As pretensões regionalistas jamais concretizadas do Império Mexicano. E assim por diante.

Mas entre todas essas hipóteses e possibilidades sempre se destacou a expectativa de que o Brasil desempenharia um papel de liderança pelo menos na América do Sul, e talvez em toda a América Ibérica. O próprio fato de que o Brasil permaneceu unificado após sua independência de Portugal, enquanto a América Espanhola se fragmentou, colocou o país em uma certa situação de vantagem.

No entanto, poderíamos dizer que o Brasil está plenamente preparado para assumir a posição de um dos polos em um mundo multipolar?

Uma afirmativa aqui pareceria duvidosa. O país carece de armas nucleares e possui forças armadas antiquadas e dependentes da doutrina e tecnologia dos EUA, não é autossuficiente economicamente e não é industrializado; ainda pior: no âmbito cultural, acadêmico e mesmo psicológico, o Brasil é integralmente pautado por aquilo que é produzido entre Nova Iorque, Londres e Paris.

Aqui, neste último ponto, talvez tenhamos encontrado uma chave importante para entender as dificuldades brasileiras.

Uma nova ordem multipolar estaria, potencialmente, estruturada ao redor dos chamados Estados-Civilizações, tal como descritos por Zhang Weiwei e repetido por Alexander Dugin, em superação à figura pós-vestfaliana do Estado-nação. E apesar de não ser nossa pretensão aqui definir o que seria, então, uma “civilização”, podemos apontar para a necessidade de um horizonte cultural autônomo dotado do seu próprio ritmo de desenvolvimento.

Como o Brasil se sai neste quesito?

Aqui de início devemos rechaçar a noção de que o Brasil seria intrinsecamente ocidental. A realidade é que os portugueses fundaram, com a sua colonização, um “povo novo” (nos termos do teórico brasileiro Darcy Ribeiro) que não é mero transplante do povo português, nem mera soma de elementos portugueses, indígenas e africanos, tampouco mera continuação da civilização pré-colombiana tupi-guarani.

Para todos os efeitos, portanto, essa colonização deveria ter dado início a um processo de evolução cultural próprio, especialmente a partir da Independência do país em 1822.

O problema é que nada disso aconteceu. A classe intelectual brasileira ao longo do século XIX tomou como referência a França e passou a importar todas as suas tendências. Mas a França do século XIX, particularmente pós-Napoleão, já era um país em vias de decadência, um país que avançava de forma acelerada no caminho de autonegação pavimentado pelo Iluminismo.

Aqui não se está criticando a recepção de influências estrangeiras, já que todos os povos e culturas se desenvolvem absorvendo e adaptando influxos vindos de outras regiões.

O que aconteceu com o Brasil, porém, é que sobre uma protocultura primaveril foi acoplada a cultura de um Ocidente já invertido e decaído: positivismo, materialismo, freudismo, relativismo – o Brasil mal havia nascido e já recebia as construções tardias de uma civilização europeia cansada e “virada de cabeça para baixo” pela Revolução Francesa.

Esse tipo de fenômeno é chamado de “pseudomorfose” pelo filósofo alemão Oswald Spengler. Segundo Spengler, a pseudomorfose era um fenômeno que acometia certas culturas jovens que, por determinadas circunstâncias, eram sobrepujadas por culturas mais maduras a ponto de perderem a capacidade de crescer por conta própria e realizar seu próprio potencial. A pseudomorfose é como um cabresto cultural que constrange e comprime culturas jovens e férteis a seguirem os passos de civilizações envelhecidas e calcificadas.

É por isso que sem ter passado realmente por um auge e sem ter realizado o seu próprio potencial, o Brasil já sofre com todas as manifestações e sintomas da decadência ocidental. Uma piada diz que o Brasil é um país com “infraestrutura do Haiti e progressismo da Suécia”. Parcialmente um exagero. Parcialmente.

Interessantemente, segundo Spengler a Rússia também havia sido vítima de uma pseudomorfose. Sendo uma cultura potencialmente original, ela havia sido “ocidentalizada” de cima para baixo, praticamente à força, a partir de Pedro o Grande. Boa parte das tensões intelectuais e artísticas da Rússia ao longo do século XIX e XX tiveram que ver com a disputa entre tendências ocidentalizantes (usualmente uma influência especificamente francesa) e tendências eurasiáticas. Em certo sentido, o que vemos nos últimos anos do governo Putin é, precisamente, uma retomada da Rússia-Eurásia como projeto civilizacional autônomo, em superação à pseudomorfose que vitimou a Rússia no passado.

O Brasil também viu essa pseudomorfose espalhando-se a partir do final do século XVIII e início do XIX, com a difusão do Iluminismo em nosso país. A partir de então, Paris passou a ser o referencial civilizacional do Brasil e o Império não foi capaz de oferecer um projeto alternativo. Os intelectuais da época tampouco foram capazes de se mobilizar culturalmente de uma maneira análoga aos intelectuais eurasianistas e eslavófilos russos.

Apenas nos anos 20, 30 e 40 do século XX – com a “Semana de Arte Moderna”, a “Revolução de 30” e o “Estado Novo”, o “integralismo”, a revista “Cultura Política”, etc. – o Brasil esteve diante de tendências que visavam repensar o Brasil de uma maneira mais autônoma, como propriamente uma civilização ou como o coração de uma civilização ibero-americana, nem europeia, nem africana, nem indígena.

A aliança com os EUA, porém, afastou uma vez mais essa possibilidade, reforçando a pseudomorfose. Nosso referencial deixou de ser Paris e passou a ser Nova Iorque.

Como um país pode, porém, se livrar desse dilema? A tarefa é necessária, porque as ações de um país serão ditadas pela fisionomia de sua cultura. Mas ela nem por isso é simples. É uma tarefa que cabe à classe intelectual, a eterna responsável por desbravar as selvas do espírito.

Até que o Brasil encare esse desafio permanecerá tendo dificuldade de reivindicar um papel de protagonismo numa ordem mundial multipolar.

Há muitos modelos ou propostas de multipolaridade, mas as mais equilibradas preveem pelo menos um polo para cada continente ou civilização.

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Um dos aspectos fundamentais da ideia de multipolaridade é precisamente que alguns países estariam imbuídos de uma certa responsabilidade histórica de alcançar o patamar de “polos” nessa nova ordem. Ou seja, que alguns países deverão tornar-se centros aglutinadores regionais ou continentais e, com isso, lideranças em um horizonte internacional no qual, por mais que se respeite as soberanias nacionais, um novo realismo impõe a primazia de determinados países que poderiam ser lidos à luz do conceito de “Estado-Civilização”, desenvolvido pelo filósofo chinês Zhang Weiwei.

Há muitos modelos ou propostas de multipolaridade, mas as mais equilibradas preveem pelo menos um polo para cada continente ou civilização. Se o lugar da Rússia, China, Índia e EUA é óbvio nesse contexto, algumas outras zonas planetárias têm um destino menos incerto.

O conceito de pseudomorfose de Oswald Spengler ajuda a explicar por que o Brasil, apesar de seu potencial, enfrenta dificuldades para se consolidar como uma potência autônoma. Desde sua formação, o país vive sob o peso de formas culturais e institucionais importadas, que distorcem seu desenvolvimento orgânico e perpetuam uma dependência estrutural. A Europa encontrará o próprio caminho ou ficará a reboque dos EUA? Em que direção a balança penderá no Oriente Médio? Na direção do Irã, da Turquia, da Arábia Saudita ou de Israel? E de que forma a África Subsaariana se reorganizará para encarar o desafio da multipolaridade?

Outro caso é o da América Ibérica, do México à Argentina. Essa região conheceu interessantes projetos geopolíticos, como o capitaneado pelo argentino Juan Domingo Perón em meados do século XX e mais recentemente o bolivariano conduzido pelo venezuelano Hugo Chávez. Mas podemos retroceder no passado para refletir sobre o esforço de Simón Bolívar de manter unidas as repúblicas recém-libertadas de Madri. O projeto imperial brasileiro de unificação com a Argentina. As pretensões regionalistas jamais concretizadas do Império Mexicano. E assim por diante.

Mas entre todas essas hipóteses e possibilidades sempre se destacou a expectativa de que o Brasil desempenharia um papel de liderança pelo menos na América do Sul, e talvez em toda a América Ibérica. O próprio fato de que o Brasil permaneceu unificado após sua independência de Portugal, enquanto a América Espanhola se fragmentou, colocou o país em uma certa situação de vantagem.

No entanto, poderíamos dizer que o Brasil está plenamente preparado para assumir a posição de um dos polos em um mundo multipolar?

Uma afirmativa aqui pareceria duvidosa. O país carece de armas nucleares e possui forças armadas antiquadas e dependentes da doutrina e tecnologia dos EUA, não é autossuficiente economicamente e não é industrializado; ainda pior: no âmbito cultural, acadêmico e mesmo psicológico, o Brasil é integralmente pautado por aquilo que é produzido entre Nova Iorque, Londres e Paris.

Aqui, neste último ponto, talvez tenhamos encontrado uma chave importante para entender as dificuldades brasileiras.

Uma nova ordem multipolar estaria, potencialmente, estruturada ao redor dos chamados Estados-Civilizações, tal como descritos por Zhang Weiwei e repetido por Alexander Dugin, em superação à figura pós-vestfaliana do Estado-nação. E apesar de não ser nossa pretensão aqui definir o que seria, então, uma “civilização”, podemos apontar para a necessidade de um horizonte cultural autônomo dotado do seu próprio ritmo de desenvolvimento.

Como o Brasil se sai neste quesito?

Aqui de início devemos rechaçar a noção de que o Brasil seria intrinsecamente ocidental. A realidade é que os portugueses fundaram, com a sua colonização, um “povo novo” (nos termos do teórico brasileiro Darcy Ribeiro) que não é mero transplante do povo português, nem mera soma de elementos portugueses, indígenas e africanos, tampouco mera continuação da civilização pré-colombiana tupi-guarani.

Para todos os efeitos, portanto, essa colonização deveria ter dado início a um processo de evolução cultural próprio, especialmente a partir da Independência do país em 1822.

O problema é que nada disso aconteceu. A classe intelectual brasileira ao longo do século XIX tomou como referência a França e passou a importar todas as suas tendências. Mas a França do século XIX, particularmente pós-Napoleão, já era um país em vias de decadência, um país que avançava de forma acelerada no caminho de autonegação pavimentado pelo Iluminismo.

Aqui não se está criticando a recepção de influências estrangeiras, já que todos os povos e culturas se desenvolvem absorvendo e adaptando influxos vindos de outras regiões.

O que aconteceu com o Brasil, porém, é que sobre uma protocultura primaveril foi acoplada a cultura de um Ocidente já invertido e decaído: positivismo, materialismo, freudismo, relativismo – o Brasil mal havia nascido e já recebia as construções tardias de uma civilização europeia cansada e “virada de cabeça para baixo” pela Revolução Francesa.

Esse tipo de fenômeno é chamado de “pseudomorfose” pelo filósofo alemão Oswald Spengler. Segundo Spengler, a pseudomorfose era um fenômeno que acometia certas culturas jovens que, por determinadas circunstâncias, eram sobrepujadas por culturas mais maduras a ponto de perderem a capacidade de crescer por conta própria e realizar seu próprio potencial. A pseudomorfose é como um cabresto cultural que constrange e comprime culturas jovens e férteis a seguirem os passos de civilizações envelhecidas e calcificadas.

É por isso que sem ter passado realmente por um auge e sem ter realizado o seu próprio potencial, o Brasil já sofre com todas as manifestações e sintomas da decadência ocidental. Uma piada diz que o Brasil é um país com “infraestrutura do Haiti e progressismo da Suécia”. Parcialmente um exagero. Parcialmente.

Interessantemente, segundo Spengler a Rússia também havia sido vítima de uma pseudomorfose. Sendo uma cultura potencialmente original, ela havia sido “ocidentalizada” de cima para baixo, praticamente à força, a partir de Pedro o Grande. Boa parte das tensões intelectuais e artísticas da Rússia ao longo do século XIX e XX tiveram que ver com a disputa entre tendências ocidentalizantes (usualmente uma influência especificamente francesa) e tendências eurasiáticas. Em certo sentido, o que vemos nos últimos anos do governo Putin é, precisamente, uma retomada da Rússia-Eurásia como projeto civilizacional autônomo, em superação à pseudomorfose que vitimou a Rússia no passado.

O Brasil também viu essa pseudomorfose espalhando-se a partir do final do século XVIII e início do XIX, com a difusão do Iluminismo em nosso país. A partir de então, Paris passou a ser o referencial civilizacional do Brasil e o Império não foi capaz de oferecer um projeto alternativo. Os intelectuais da época tampouco foram capazes de se mobilizar culturalmente de uma maneira análoga aos intelectuais eurasianistas e eslavófilos russos.

Apenas nos anos 20, 30 e 40 do século XX – com a “Semana de Arte Moderna”, a “Revolução de 30” e o “Estado Novo”, o “integralismo”, a revista “Cultura Política”, etc. – o Brasil esteve diante de tendências que visavam repensar o Brasil de uma maneira mais autônoma, como propriamente uma civilização ou como o coração de uma civilização ibero-americana, nem europeia, nem africana, nem indígena.

A aliança com os EUA, porém, afastou uma vez mais essa possibilidade, reforçando a pseudomorfose. Nosso referencial deixou de ser Paris e passou a ser Nova Iorque.

Como um país pode, porém, se livrar desse dilema? A tarefa é necessária, porque as ações de um país serão ditadas pela fisionomia de sua cultura. Mas ela nem por isso é simples. É uma tarefa que cabe à classe intelectual, a eterna responsável por desbravar as selvas do espírito.

Até que o Brasil encare esse desafio permanecerá tendo dificuldade de reivindicar um papel de protagonismo numa ordem mundial multipolar.

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