A comemoração russa do Dia da Vitória sobre os nazistas, celebrada dia 9 de maio em Moscou, servirá para iluminar as reais divisões políticas no planeta.
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Como a maioria da população ocidental está acostumada a dividir sua política entre esquerda e direita, a comemoração russa do Dia da Vitória sobre os nazistas, celebrada dia 9 de maio em Moscou, servirá para iluminar as reais divisões políticas no planeta.
O fato mais significativo da comemoração dos 80 anos da derrota do nazismo é, sem dúvida, o banimento da Rússia pela Europa Ocidental. Já que a propaganda decretou que Putin é o novo Hitler, a própria Rússia deve ser cancelada, mesmo tendo desempenhado um papel crucial na vitória contra o Eixo, e mesmo que a guerra tenha custado aos soviéticos uma quantidade incomparável de soldados. Se até Dostoiévski foi cancelado na Europa Ocidental, cancelar o feito de Stalin é café pequeno. Nesse quintal VIP dos EUA que é a Europa Ocidental, o caráter geopolítico da nova divisão é mais visível: de um lado estão os europeístas de Bruxelas, que querem de volta os EUA de Biden, e de outro a Rússia e qualquer coisa que lhe seja minimamente simpática (o que inclui os BRICS, a despeito de todas as inconsistências internas).
Já o caráter político interno dessa divisão é mais difícil de identificar, tendo-se a Europa Ocidental em vista. A principal pauta dos anti-UE é o fim da imigração irrestrita. Ser “extrema-direita”, “antidemocrático” e, quiçá, “agente russo”, é ser anti-imigração. Não obstante, a pauta de costumes, que mobiliza muito as Américas, é deixada de lado pela “extrema-direita” europeia. A AfD é liderada por uma lésbica em união estável com uma imigrante, e não parece haver vivalma que se incomode com isso. Nas Américas, é inimaginável uma liderança antissistema com esse perfil (exceto, talvez, na Argentina, que é bem europeia nesse quesito). Pode-se dizer, então, que a Europa se liberalizou muito nos costumes, de modo que o conservadorismo social não é pauta relevante no cenário político-partidário.
Aquilo em que a Europa não se liberalizou muito é no gasto social. A Europa ainda tem Estados de Bem Estar. Como Estados de Bem Estar são difíceis de se manter numa economia cada vez mais desindustrializada, com natalidade colapsante e sem moeda nacional, não é difícil entender que um discurso à Milei encontre espaço na Europa. Ademais, a Argentina ensina que um Estado estúpido, cuja burocracia impõe wokismo, pode gerar um sentimento anarquista. Não é de admirar, então, que partidos anti-imigração de “extrema-direita” não raro sejam liberais na economia, como o português Chega. Por outro lado, a esquerda europeia se liberalizou tanto, que são pequenas ou periféricas as tentativas de construir uma alternativa econômica. O importante partido Tsipras é da enfraquecida Grécia; na poderosa Alemanha, Sahra Wagenknecht fundou seu próprio partido e não se reelegeu.
O Estado “grande” da esquerda woke, que gasta com cracudos na rua e imigrantes ilegais, está a serviço do neoliberalismo: por um lado, quanto maior o gasto estatal, maior o endividamento; e, por conseguinte, maior o controle por organismos supranacionais controlados por financistas. Por outro lado, quanto mais imigrantes, maior a oferta de trabalho barato. Assim o Estado fica enfraquecido, gastando mal e sendo odiado, enquanto um seleto setor privado ganha dinheiro com suas dívidas e com o trabalho barato.
Vamos agora a outro quintal dos EUA, o meu Brasil. Creio que daqui se possa ver com mais facilidade que a divisão entre esquerda e direita está colapsando – e, outra vez, nada melhor que a Rússia para dividir as águas.
Lula decidiu ir a Moscou participar dos festejos do Dia da Vitória. Foi o suficiente para que veículos liberais de direita o considerassem uma vergonha para a diplomacia.
No Brasil, ser de direita em geral significa ser antipetista, de modo que há muito espaço para repetir as mesmas ideias de um Macron e ser considerado de “direita democrática”. Basta xingar o PT e condenar a corrupção. A direita liberal no Brasil apoia Israel e a Ucrânia incondicionalmente. Quando a Rússia entrou na Ucrânia, Bolsonaro ainda estava no poder – e a direita liberal fez um escândalo porque ele não quis sancionar a Rússia, cujos fertilizantes são fundamentais para a agricultura brasileira. Embora Bolsonaro tenha dado muito poder a um banqueiro abertamente liberal, que foi seu ministro da Economia, os liberais mesmo assim o condenavam por ser um líder populista. Às vezes acho que falta de carisma é um requisito essencial para o liberalismo.
Lula também entrega tudo e mais um pouco aos liberais. Sua rebeldia até então consistiu na referida viagem a Moscou e em uma declaração contra Netanyahu destituída de consequências práticas (ele bem poderia tirar o Brasil da condição de membro observador da IHRA, que faz lobby pela censura dos críticos do sionismo). No entanto, as ações do governo Lula têm desapontado muitíssimo seus vizinhos bolivarianos. O Brasil vetou o ingresso da Venezuela nos BRICS, exigiu atas para reconhecer a reeleição de Maduro (que é abertamente pró Rússia e anti-EUA) e reconheceu prontamente a reeleição de Daniel Noboa no Equador, não obstantes as denúncias de fraude pela candidata de esquerda. Tal como os europeístas de Bruxelas, Lula é um saudosista da Era Biden. Ficou para trás o tempo em que ele era um queridinho de Caracas.
Tanto a direita como a esquerda estão rachadas. De um lado, Bolsonaro é perseguido pelo establishment sem contar com o apoio de muitos políticos liberais de direita que ele ajudou a eleger. De outro, a esquerda racha por questões globais. A política externa de Lula tem sido, em geral, uma política mais pró-EUA que pró-BRICS. No âmbito interno, a esquerda woke, que é largamente financiada por ONGs e fundações do Atlântico Norte, preferiu silenciar-se quanto à questão palestina. Esse fato desmoralizador, somado aos cortes orçamentários do NED e da USAID, fez com que a crítica ao wokismo voltasse a ser feita dentro da esquerda em alto e bom som, depois de uns dez anos de autocensura. No presente momento, o partido de Lula está para escolher o seu presidente: o candidato favorito foi à embaixada dos EUA; outro, para contrapor-se, foi à da Palestina.
Além dos ongueiros woke, no Brasil há os ongueiros de direita, cujo ícone mais popular é o finado líder de seita Olavo de Carvalho (já expliquei aqui o que é o olavismo, movimento que inclui a difusão de propaganda neocon). Esse grupo ganhou cargos no governo Bolsonaro, mas foi, em geral, incapaz de governar, e se dedica a achincalhar o próprio Bolsonaro – ação que, indiretamente, contribui para a eleição de nomes da direita liberal.
No Brasil, há um cenário propício para trocar a divisão esquerda X direita pela divisão liberalismo pró OTAN X nacionalismo pró BRICS. A postura dos liberais de direita e esquerda em relação à Rússia é especialmente reveladora. Num debate com Dugin em 2011, o líder de seita Olavo de Carvalho defendeu a teoria maluca de que a Rússia estava mancomunada com os outros “metacapitalistas” ocidentais (classe que inclui Soros) e isso poderia ficar evidente no futuro. Longe de aceitarem o desmentido da realidade, os seguidores da seita repetem isso como realidade em incontáveis programas de Youtube. Já do lado esquerdo, um veículo midiático cujos quadros se confundem com o da TV Brasil no governo Lula, divulga-se a tradução do livro de Navalny, tratando esse supremacista étnico como um guerreiro da liberdade.
Dado que na Europa a esquerda e a direita são muito liberais nos costumes, e que só uma parcela minoritária ou periférica da esquerda tem apresentado uma reação ao liberalismo econômico, creio que o cenário seja menos propenso a reviravoltas políticas do que o Brasil.